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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4319 Data: 29 de novembro
de 2013
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FALTA ALGUÉM NO ALENTEJANO
Depois de marchas e
contramarchas, finalmente o almoço no Alentejano, onde o Elio presentearia o
Luca, foi marcado para o dia 26, às 12h 30min. O evento poderia acontecer antes
para eles, não para mim, mas os dois exigiram a minha presença, talvez, por
superstição, pois algumas duplas se desfizeram com estremecimentos emocionais,
como Dumas e Auguste Maquet, Jerry Lewis e Dean Martin, João Bosco e Aldir
Blanc. É verdade que trios também, mas os dois não levaram isso em
consideração.
Se somos três astros,
pode-se dizer que nos ajustamos à precisão cósmica: Luca já estava à porta do
restaurante quando cheguei, e a mesa do fundo, com quatro lugares fora
previamente reservada por ele. Seria como antes: eu, sentado de frente para a
entrada, com o Elio à minha esquerda e ele à nossa frente, consequentemente, de
costas para a porta. Era “poule” de dez ele pedir a panelinha de arroz com
camarão para três com chope na pressão; por isso, antecipei-me à solicitação
que seria feita tão logo o Elio aparecesse.
-Luca, vou pedir peixe.
-Como você quiser,
Carlinhos.
Para que o tempo de
espera não se arrastasse, tratamos de prosear.
-E a bola fora do Chico
nesse caso das censuras às biografias...
O seu semblante era de
decepção, o meu não, o compositor de “Apesar de você”, jamais se mostrou
crítico do seu partido político quando, através, dos anos, este tomou medidas
autoritárias, como a expulsão de três deputados que deram seus votos, no
Colégio Eleitoral, ao Tancredo Neves, como a expulsão da ex-prefeita Luiza
Erundina, que aceitou um cargo de ministro no governo Itamar Franco, entre
outros incontáveis atos arbitrários.
Vieram-me esses
acontecimentos, mas não eram próprios para uma conversa descompromissada.
-Disso tudo, Luca, eu
me surpreendi com a posição do Caetano Veloso.
-Fizeram uma paródia
com trechos compostos pelos dois: “É Proibido Proibir”, do Caetano Veloso, e
“Quem te viu, Quem te vê”, do Chico Buarque.
-Um biógrafo, por mais
mal intencionado que esteja, não poderia ir mais a fundo do que a Paula
Lavigne, que já declarou à imprensa que teve relações sexuais com Caetano
Veloso, ela com 13, ele com 40 anos e que abortou com 16. E ela é a presidente
desse grupo de censores das biografias, “Procure Saber”. - manifestei-me.
-O Roberto Carlos não
perde nada com isso, porque sempre se omitiu na época da ditadura, mas o Chico
e Caetano sim, pois têm um passado de luta contra a falta de liberdade. - disse
ele ainda com a expressão de desiludido.
-O que vocês querem?
Eu queria mudar de
assunto, porém a pergunta partiu do garçom.
-Um bolinho de bacalhau
apenas. - respondi.
-Eu também só quero um.
Quando o garçom trouxe
o nosso pedido, contei que, na última vez em que estive no Alentejano, com uma
amiga, trouxeram três bolinhos, o que nos empanturraria antes do prato
principal e, com alguma insistência, conseguimos que nos deixassem com dois em
cada pratinho.
-E o pingue-pongue?
-Tenho jogado,
Carlinhos. O médico quer que eu faça musculação, pois só movimento um lado do
corpo.
-E as partidas lhe
exigem muito.
-Sabe aquele vizinho
que era o meu saco de pancadas?... Já não é mais, quando ele é meu adversário,
fico no meio do caminho.
-O seu jogo caiu de
qualidade?
-O dele é que melhorou.
Fico até contente, pois meu vizinho deve ter treinado bastante para alcançar
essa melhoria.
-”Lá vem o Elio”. -
falei com a mesma entonação que o locutor do Jockey Clube Brasileiro, Ernani
Pires Ferreira, dava quando vislumbrava o bridão Juvenal Machado da Silva, com
a sua montaria, ultrapassando um por um os cavalos à sua frente: “Lá vem o
Juvenal”.
-O peso do saber. -
foram as palavras do Elio ao largar sobre a mesa a sacola de plástico com dois
cartapácios sobre a língua ídiche, o prometido mimo ao amigo.
-Que beleza! - vibrou o
Luca, enquanto manuseava páginas e mais páginas.
-O que eu comprei para
você, comprei para mim. Depois, vou saber se você está estudando direitinho.
-Mas você já fala em
ídiche. - assinalou o Luca.
-Minha mãe, sim, mas eu
entendo apenas.
-O que aprendi, como
vocês já sabem, foi com os judeus da zona da Leopoldina com quem trabalhei,
quando rapaz. Eles escreviam erradamente, então, muitas palavras em ídiche, eu
falo, mas não sei escrever.
-Vai aprender agora com
estes livros, Luca.
Veio à tona com força a
sua curiosidade e o Elio tratou de satisfazê-la remontando ao surgimento da
língua no século X, na fronteira da Polônia com a Alemanha, que a palavra ídiche
se origina do alemão jüdisch, que significa judeu.
-Polônia... - frisou o
Luca, saindo do registro da sua mente mais uma vez que o seu aprendizado se deu
com judeus provenientes da Polônia.
Elio assinalou que o
ídiche foi se espalhando pela Europa através dos séculos.
Luca pediu explicações
sobre pronúncia e a escrita, que é sinistrosa, isto é, da direita para a
esquerda. Que, de uma maneira rombuda, diz-se que o ídiche é o idioma germânico
escrito com caracteres hebraicos.
-Minha mãe, nos
momentos mais reservados, fala em ídiche. De um modo geral, aqueles que conhecem
a língua, fazem o mesmo.
Nesse instante, eu
intervim com a “última flor do Lácio”:
-No Brasil, falavam-se
dois idiomas, o do colonizador e o tupi-guarani. O Marquês de Pombal, então, proibiu
que se falasse ou se escrevesse em outro idioma que não fosse o português. Tal
proibição não ocorreu em alguns países da América do Sul.
E concluí rapidamente
antes de ter a minha palavra cassada, pois falas longas estavam fora de questão
ali.
-Colegas meus de
trabalho que foram discutir acordos bilaterais de navegação nesses países,
contam que, nos momentos mais agudos, eles recorriam à língua indígena e
deixavam os brasileiros sem nada entender.
-Isso acontece muito. -
anuiu o Elio.
-Beleza! - permanecia o
Luca encantado, quando folheava o seu presente.
-O que vai beber?
Luca ainda degustava o
seu chope tirado na pressão, eu ainda tinha a metade de uma jarrinha com suco
de laranja, Elio, que deveria estar sedento depois de carregar da Rua Uruguaiana
até lá o peso do saber, pediu um copo de água mineral e um bolinho de bacalhau.
Olhei para a garrafa de
azeite sobre a mesa e constatei que era extravirgem de uma marca que não estava
na relação daquelas que foram denunciadas como enganosas.
Se encontrar virgem é
difícil, imagine extravirgem. - pensei, sem verbalizar meu pensamento.
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