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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4320 Data: 30 de novembro de 2013
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FALTA ALGUÉM NO ALENTEJANO
2ª PARTE
Bem, Luca, os seus
livros aqui estão. - disse o Elio, arrumando os dois volumes de volta na sacola
de plástico.
“Oh, bendito o que
semeia
Livros, livros à mão
cheia
E manda o povo pensar.
O livro caindo n' alma
É germe que faz a
palma,
É chuva que faz o mar.”
Mas não foram os versos
de Castro Alves que eles trouxeram para a penumbra do Alentejano, e sim as
letras do cancioneiro popular brasileiro.
-Elio, conhece
“Molambo”?
-Como não, Luca; foi
gravado pela Elizeth Cardoso.
À minha frente, ele
recitou um trecho da composição de Meira e Mesquita:
“Eu sei que vocês vão
dizer
que é tudo mentira,
que não pode ser,
porque depois de tudo
que ela me fez,
eu jamais deveria
aceitá-la outra vez....”
E o Elio completou:
“Ficou para impedir que
a loucura
fizesse de mim um
molambo qualquer.
Ficou desta vez para
sempre,
se Deus quiser.”
Fez, em seguida, este
comentário.
-Para mim, é a canção
que melhor retrata a carência afetiva.
-Durante muito tempo,
eu considerava também “Molambo”, até que surgiu “Atrás da Porta”, do Chico
Buarque. - disse o Luca.
-E do Francis Hime
também. - dei a César o que é de César.
Elio, por outro
lado, manteve a sua fidelidade ao
“Molambo”. Bem, nada temos a objetar, mas quanto “Atrás da Porta”, sim. Chico Buarque escreveu um verso nessa
composição que, a nosso ver, destoa; julgamos até que, caso o Tom Jobim fosse o
seu parceiro, em vez do Francis Hime, ele seria retirado da letra: “no tapete
atrás da porta”. Quem teve cachorros transitando livremente pela casa, entende
o que dissemos.
Elio voltou a recitar.
Por que os dois apenas recitavam?... Talvez, poupassem a voz para alguma
apresentação com plateia mais numerosa. Ele recitava, agora, “Hoje quem paga sou”, de Herivelto Martins e
David Nasser.
“... Mas se passa pela
rua algum amigo
Em cuja porta a
desgraça não bateu,
grito que entre neste
bar, beba comigo.
Hoje quem paga sou eu.”
Levado pela surpresa
incoercível, abordei o Elio.
-Eu ouvia esse tango
brasileiro, mas só não saíram do registro da minha mente as palavras “Hoje,
quem paga sou eu”, mas você se lembra de tudo.
-Meu pai era cantor de
banheiro, eu ouvia e guardava tudo na memória. - explicou.
Enquanto ele se
dedicava a esse desespero canoro do Nélson Gonçalves, impediu que o garçom
interrompesse aquele momento de dor.
-Falta alguém aqui. -
disse o Elio para nós dois.
-O Dieckmann. - não
tive dificuldades alguma em adivinhar.
-O Dieckmann não sabe o
que está perdendo. - frisou o Luca, sentindo o delicioso pungir de acerbo
espinho, como o poeta luso Almeida Garret.
-O Dieckmann, no Rádio
Memória, pediu para tocar “Casa no Campo”, numa gravação da Márcia e o Jonas
Vieira entendeu Marisa Gata Mansa. Disse-me o Dieckmann que prefere a
interpretação da Márcia, porque é luminosa. Ele não quer nada para baixo. -
manifestei-me.
Agora, os dois
recitavam “Nervos de Aço”. E eu aparteei para assinalar que, caso estivéssemos
no “Brasserie Rorário”, seria obrigatória a lembrança da canção que é o ponto
inalcançável da paixão contrariada: “Ne me quitte pas”.
-”Laissez-moi devenir
l' ombre de ton ombre
l' ombre de ta main
l' ombre de ton chien.”
Finalmente, o garçom
atravessou o vale de lágrimas e trouxe a panelinha de camarão com arroz e
brócolis para os dois, para mim, o meu cherne acompanhado de verduras e legumes
mais cinco batatas taludas, que eram demais para o meu apetite, pois nem súdito
do Rei Momo eu sou.
Após os primeiros
movimentos masticatórios, o gói Luca voltou ao judaísmo com a entrevista do
rabino norte-americano Henry Sobel no programa da TV Cultura, “Roda Viva”.
-Eu não vi. - disse o
Elio.
-Ele já está aqui há
mais de quarenta nos e ainda fala com sotaque carregado.
-Fala assim por charme,
Luca.
Percebi na reação do
Elio que nutria uma ponta de antipatia por ele.
-O rabino apontou o
Fernando Henrique Cardoso como uma das pessoas que mais lutaram pelos direitos
humanos.
A implicância do Elio
pelo Henry Sobel passou para o Fernando Henrique Cardoso, que redigira o
prefácio da sua autobiografia.
-O Fernando Henrique se
autoexilou no Chile para se fazer de vítima.
-Elio, o Fernando
Henrique foi aposentado, com 38 anos de idade, compulsoriamente pela ditadura
militar. Lá, no Chile, deu aulas.
-O Chico Buarque se
autoexilou na Itália porque já estivera lá, onde o pai trabalhou, com a
família.
E prosseguiu o Luca com
aquele que foi um dos principais colaboradores do livro “Brasil: Nunca Mais”.
-Houve aquele caso do
furto das gravatas, mas ele estava sob efeito de medicamentos psiquiátricos que
tomou por conta própria.
-Quando jovem, o rabino
foi pego com as calças na mão. - esfriou o Elio o entusiasmo do Luca.
Elio seria um ótimo
autor de biografias não autorizadas. - pensei sem me manifestar.
Depois de risos
maliciosos sobre a situação em que uma pessoa se vê, quando pega com as calças
na mão, Luca trouxe de volta à seriedade ao diálogo.
-Henry Sobel se recusou
a enterrar o Wladimir Herzog na ala dos suicidas do cemitério israelita; ele
rejeitou a versão da ditadura que o jornalista tinha se suicidado.
-Essas entrevistas no
“Roda Viva” podem ser resgatadas no youtube.- manifestei-me.
-Eu já estou
satisfeito, o Luca também, falta o Carlos.
Olhei as enormes
batatas no meu prato. Aos vencedores as batatas; eu, porém, depois de tantas
canções tristes, sentia-me derrotado, não fiquei, por isso, com elas, e também
me dei por satisfeito.
-Tenho uma entrevista
no escritório com uma velhinha às 14h 30min.
-Falta pouco, Elio. -
apressei-o olhando o relógio.
Ele, no entanto,
manteve o mesmo ritmo tranquilo e avisou o Luca que, dali a uns dias, eles mais
a Dona Sarita, conversariam, num encontro a ser agendado, na língua ídiche.
-Vamos sim, o Carlos, também.
- acrescentou.
Voltando, de carona no
carro do Luca, não consegui me manter calado quando passamos pela Faculdade
Celso Lisboa.
-Duas netas, com pouco
mais de vinte anos de idade, reergueram com extraordinário êxito o colégio que o avô fundou;
-Eu li a reportagem. -
disse o Lucas, seguindo em frente com o carro.
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