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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

2546 - Os adúlteros



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4346                            Data: 12  de janeiro  de 2014
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172 ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

Entrei no táxi 017, que deixou o rádio sintonizado na Central da Cooperativa. Ouvi, sem prestar muita atenção, que solicitavam carro para um lugar que não era rua, praça, avenida, travessa, beco, nada que me fosse familiar.
-Não vou lá nem por um cacete. - manifestou-se o 017 num espasmo de irritação que lhe é peculiar.
-E que lugar é esse? - expressei a minha curiosidade.
-Um motel aqui perto.
-Ah, sim; o Cachambi e redondezas progrediram nos últimos anos, então surgiram muitos templos religiosos e motéis. Esse motel é onde?
-Perto do Shopping Nova América, numa ruazinha escalafobética que, além de íngreme, é estreita; só dá para um carro.
-Casais apressados e um carro de cada vez... - comentei marotamente.
-Levei, certa vez, uma passageira ao Shopping e, logo que ela saltou, um casal entrou no meu carro pedindo para ser levado ao motel.
E, numa ira regressiva, explodiu:
-Por que eles não foram a pé?
-Seria um aquecimento... tentei descontraí-lo, mesmo sabendo que a missão era impossível.
-Geralmente, esses casais não querem ser vistos.  Muitos só pegam táxis com insulfilm; ou é marido enganando a mulher, ou é a mulher enganando o marido.
Devido aos sortilégios da mente, pensei na Madame Bovary traindo o marido dentro de um fiacre, mas saí logo do século XIX com seus fiacres de discretos cocheiros para o século XXI com o neurastênico 017.
-Não deu para recusar esse casal do Nova América?
-Sou obrigado a levar os passageiros aonde eles querem ir.
E acrescentou sem pausar:
-Mas, uma vez, recusei uma passageira.
-Como?
-Ela quase que parou na frente do meu táxi, com risco de ser atropelada, apontou para um FIAT e disse: “Siga aquele carro”.
-E o senhor seguiu?
-Claro que não; eu vi logo que ela queria ir atrás do marido.
E justificou-se:
-Sou taxista; ela que contrate um detetive se quer dar um flagrante no marido.
-E o senhor se arrisca com isso.
-Claro que me arrisco.
E o diálogo se encerrou por aí, pois chegamos à Rua Modigliani.

No dia subsequente, lá estava ponteando a fila do ponto da Domingo de Magalhães, para a minha satisfação, o Paizão.
Normalmente tranquilo, demonstrando boa saúde, embora tenha completado 80 anos de idade e esteja acima do peso, o que revela a sua atração por pratos cheios, ele se aborreceu:
-Olha como esse carro vai?... Além de parecer uma tartaruga, o motorista não sabe se fica na esquerda ou na direita.
-O 017 já teria explodido. - observei.
-Ele é todo esquisito. - comentou com o rosto crispado.
-Sim, ele é muito tenso.
-Já discuti com ele e o chamei de parvo.
-Parvo?!,,, É um bom xingamento. E ele sabia o que era parvo?
-Pela minha cara, ele viu que não era boa coisa.
E prosseguiu:
-O irmão dele é completamente o contrário; o Chagas.
E voltou-se para mim:
-Conhece o Chagas?
-Não sei.
-Ele é uma espécie de chefe de nós todos, o táxi dele é o 052.
-Chagas... - fiz um esforço evocativo.
-Ele faz ponto do outro lado, na Suburbana.
-Então não conheço pessoalmente.
Eu disse isso, desconfiando que se tratava daquele que chamou a atenção de um taxista que, no rádio, se identificava com a voz elevada. “Você está fora da modulação”.
-E o calor? - mudei de assunto.
-Um maçarico sobre nós.
-Na Austrália, a sensação térmica de 50 graus matou dezenas de milhares de morcegos.
-Por aqui, há muitos morcegos por causa das árvores frutíferas. - aparteou-me.
-Que os morcegos tenham longa vida, pois nos protegem de muitas doenças. Assisti a um documentário em que as crianças de um desses países do Caribe passaram a matar os morcegos; com isso, o índice de malária aumentou dramaticamente. As autoridades intervieram para impedir a matança dos morcegos. - comentei.
-Vamos proteger nossos morcegos. - disse-me ele, enquanto eu pagava a corrida, já na Rua Modigliani.

-Tudo bem, tirando o calor? - perguntei logo que sentei no banco do Vereador.
-Tudo bem nada! O sujeito mandou arrancar o insulfilm dos carros. - respondeu-me inflamadamente.
Presumi que o sujeito fosse o prefeito Eduardo Paes, mas nada falei, por mim, o sujeito permaneceria oculto.
-Ele começou 2014 com essa gracinha. - prosseguiu.
-Há medidas gregorianas, que são tomadas  com a passagem do ano, principalmente as inflacionárias. - comentei.
-Já tirei o insulfilm de um vidro, de outro, ainda não tive tempo.
Às suas palavras, torci o corpo e constatei que todos os vidros do táxi estavam sem essa película de proteção... dos casais adúlteros (lembrei-me do 017).
-E, com isso, um desses guardas ordinários me multou.
Enquanto desabafava, tratando-me de Carlos – é o único taxista que me perguntou o nome nesses quase quatro anos de corridas na Cooperativa Metrô – eu matutava: não seriam apenas as Kombi e as Vans que seriam obrigadas a arrancarem o insulfilm?...
Parece que ouviu o meu pensamento.
-Os táxis também terão de rodar com os vidros transparentes.
-Ah, sim, ele deve ter uma frota de Kombi, no mínimo, e já foi multado. - pensei sem me manifestar.
-O sujeito quer que os taxistas tenham GPS e que falem inglês...
E, desacelerando o ritmo da sua indignação, fez uma ressalva:
-Inglês, eu falo.
Quase lhe dei os parabéns, não o fiz porque transpareceria a minha ironia, já que duvidava da sua intimidade com o idioma de Shakespeare.
E o Vereador foi adiante no seu discurso.
-Quando houve Copa do Mundo nos Estados Unidos, os taxistas de lá foram obrigados a aprender português, Carlos?
Não respondi por se tratar de uma pergunta retórica, se não teria dito que muitos taxistas nos Estados Unidos são hispânicos e mesmo brasileiros.
Nesse instante, diminuiu drasticamente a velocidade do seu carro, porque vira o 081 andando pelo asfalto.
-Será que roubaram o táxi dele? - suspeitou.
E abordou o 081.
-O que houve?
-Caminhando. - foi a resposta.
Fez um gesto de desaprovação, e engatou a terceira marcha.
-Tem 77 anos de idade, poderia estar em casa, mas anda com um sol desses na cabeça. Você sabia que ele é dono que quase todos esses imóveis de Maria da Graça?
-Sei. - respondi.
-Cada doido com sua mania. - bradou.
E prosseguiu até a Rua Modigliani desancando as medidas das autoridades competentes do Rio de Janeiro que são, para ele, incompetentes.

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