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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4061 Data: 11 de novembro de 2012
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72ª VISITA À MINHA CASA
-Deus, me defenda dos meus amigos, que
dos inimigos cuido eu.
Mal eu bradei essa frase, para os meus
ouvidos apenas, Voltaire surgiu à minha frente.
-Essa frase não me é estranha. - disse
com a expressão zombeteira, pois ela é da sua lavra.
Depois de me refazer da surpresa,
fiz-lhe uma pergunta:
-Você se lembra de tudo que escreveu?
-De muita coisa.
-A sua obra é vastíssima; romances,
ensaios, estudos sobre ciência e história, peças de teatro, cerca de dois mil
panfletos, de vinte mil cartas...
-E poesias. Um mérito inegável da
poesia: ela diz mais e em menor número de palavras que a prosa.
-Elaborou algum livro ou opúsculo sobre a metafísica, Voltaire?
-O estudo da metafísica consiste em
procurar, num quarto escuro, um gato preto que não está lá.
-É evidente que, para ser tornar uma das
mentes mais brilhantes do século XVIII você recebeu uma boa educação escolar.
-Sou filho de uma opulenta família
burguesa, por isso, estudei com os jesuítas no Collège Louis-le-Grand,
onde fui um ótimo aluno porque era por demais curioso, queria aprender tudo.
-Embora estudasse com jesuítas, você foi
o paladino na luta contra a intolerância religiosa.
-Combati com a minha pena todos os
dogmas; o homem tem de ser livre para
pensar.
-Lendo um romance de Alexandre Dumas, na
minha juventude, ele conta uma piada. Quando você estava moribundo, levaram um
padre até o seu leito, que lhe perguntou se você reconhecia Jesus como filho de
Deus; você respondia que não, mas ele insistia com a pergunta; então, você se
levantou, deu um soco na cabeça do padre e morreu.
-Infelizmente, na hora da minha morte,
com 84 anos de idade, eu não tinha força para socar um padre.
-A França só se desenvolveria se o
último nobre fosse enforcado nas tripas do último padre?????
-Pois é, muitos atribuem essa frase a
mim, como outras frases, mas a autoria pertence a Diderot.
-Você acredita em Deus, Voltaire?
-O relógio prova a existência do
relojoeiro, o universo prova a existência de Deus.
-Você também escreveu que se Deus não
existisse, seria necessário inventá-lo.
-Eu citei Deus exaustivamente, mas não
era o mesmo que foi inventado pelas inúmeras religiões espalhadas pelo mundo.
-Você, então, logo se desligou do credo
dos jesuítas?
-Sim. Ainda estudante, frequentei a Societé
du Temple, onde havia libertinos e livres pensadores.
-Em certa época da sua vida, você viveu na
fronteira da França com a Suíça.
-Era uma residência num local
estratégico. Quando os católicos franceses queriam me prender, eu fugia para a Suíça;
quando os calvinistas suíços queriam me prender, eu fugia para a França.
-A sua primeira prisão se deu por causa
dos seus versos irreverentes contra os privilégios da monarquia.
-Eu tinha 23 anos de idade; prenderam0me
na Bastilha de 1717 a
1718. Não foi um tempo perdido para mim, pois escrevi a tragédia “Édipo”.
Pouco depois, Voltaire, você lançou o
“poema da Liga”.
-Tornei-me célebre e porque desagradei a
um príncipe, vieram me prender e exilei-me na Inglaterra, eu tinha 30 anos, e
de lá saí com 33.
-Consta em todas as suas biografias que
você ficou encantado com o avanço das instituições inglesas.
-A Inglaterra era bem diferente da
França, que sofria com os reis absolutistas e os privilégios do clero e da
nobreza. Encontrei, nos três anos em que lá estive, uma Inglaterra dinâmica,
com livre comércio, sem os grilhões de uma religião sufocante, e um rei com o
poder limitado pela Magna Carta.
-Era o país que se elevaria sobre todos
no futuro.
-Sim, por causa da liberdade que os seus
habitantes usufruíam.
-Você previu o que aconteceu. Marx, por
exemplo, que nasceu algumas décadas depois da sua morte, foi expulso da
Alemanha e da França, por causa dos seus textos. Só encontrou sossego para
escrever quando se mudou para Inglaterra, e ele criticava justamente o
capitalismo que despontava nesse país.
-Na minha estada em terras inglesas,
tomei conhecimento do trabalho de John Locke, morto em 1704, que muito me
influenciou.
-O filósofo e teórico político? Nos o
estudamos nas escolas, mas superficialmente.
-Eu me debrucei sobre a sua obra. Ensaio
sobre o entendimento humano e Dois Tratados sobre o governo, em que
se coloca do lado do liberalismo político; Cristianismo Racional,
em que combate a intolerância religiosa. Também li Em pensamentos sobre
educação, em que propõe um ensino que partisse dos fatos, embasados nas
ciências da natureza.
-Eram praticamente as suas ideias,
Voltaire.
-Sim, minhas ideias, mas em estado
embrionário, pois eu era relativamente jovem, agora eu as via consolidadas.
-Na Inglaterra, você viu o Hamlet de
Shakespeare e declarou que se tratava de uma peça de teatro saída da mente de
um bêbado.
-Eu conhecia teatro, já escrevera
algumas peças, mas o que vi em cena era inteiramente estapafúrdio para mim.
-No fim do século XIX, um escritor russo
consagrado, Leon Tolstoi, desancou todas as peças de Shakespeare. E mais:
criticou seu amigo Tchekhov, porque elaborava peças de teatro, quando deveria
escrever apenas contos, pois, para ele, seu talento era de contista. Li,
recentemente, que as peças de Tchekhov superam, nos últimos anos, em encenações
a de Shakespeare na cidade de Londres.
E concluí minha garrulice:
-Mas os créditos seu e de Tolstoi são
tão imensos que esses deslizes são pequenos.
-Na Inglaterra, recebi a bússola que me guiaria na confecção do meu
trabalho intelectual. Lá, solidificou-se o meu pensamento para uma filosofia
reformadora.
-Em 1730, pouco depois de deixas as
terras britânicas, você redigiu Brutus.
-Com a tragédia Brutus, eu celebrei a
liberdade. No ano seguinte, critiquei as guerras na História de Carlos XII.
Em Epístola a Urânio, de 1733, nela ataco os dogmas cristãos. Neste
mesmo ano, desanco as falsas glórias literárias em O templo do gosto.
-Vieram em seguida, Voltaire, os dois
livros que o projetaram ainda mais: Cartas Filosóficas e Cartas sobre
os ingleses.
-Em Cartas sobre os ingleses, ataquei o regime político francês e, com o
meu estilo irreverente, comparei a liberdade inglesa com o atraso da França
absolutista, clerical e obsoleta.
-E a França seguia pelo caminho errado.
-A nobreza e o clero não queriam perdeu
seus privilégios, e o povo se acomodava na pobreza, até na miséria. - afirmou
François Marie Arouet, Voltaire.
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