Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de outubro de 2012

2250 - meus amigos 2


----------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4050                              Data: 22  de outubro de 2012
---------------------------------------------------------------------

JOÃO SALDANHA
2ª PARTE

Com a designação do João Saldanha como técnico da seleção brasileira, Ricardo Serran, que comandava a equipe esportiva do jornal o Globo, lhe disse  publicamente:
-Você deixou de ser estilingue para virar vidraça.
Mas, antes, tudo foi festa.
Um participante da Mesa-Redonda de domingo da TV Globo se tornou técnico da seleção brasileira, e, logicamente, um programa foi dedicado a ele, enaltecendo-o de corpo presente.
E nesse programa (não digo que me lembro como se fosse hoje porque a minha memória sobre fatos de ontem é bem mais apurada) apareceu uma personalidade que, até então, eu julgava personagem do Nélson Rodrigues: Salim Simão.  Segundo o cronista tricolor, Salim Simão valia por uma multidão, torcendo pelo Botafogo vibrava mais do que toda a torcida do Flamengo. Agora, na televisão, em carne e osso, Salim Simão não desmentiu aquele que o divulgou; depois de colocar Nélson Rodrigues, como dramaturgo, acima de Tennessee Williams e de demais autores (esqueceu-se de Shakespeare, felizmente) deteve-se no homenageado da noite.
Com a veemência daqueles que se apoderam da verdade, Salim Simão declarou que o João Saldanha se tornava, agora, o homem mais importante do Brasil. O que me assustou foi o silêncio do João Saldanha ao ouvir esse disparate. Ele que, como cronista, sempre colocou o craque acima de tudo e de todos em se tratando de futebol, não retrucou com uma só palavra, como se concordasse que um técnico de futebol estivesse acima dos grandes jogadores e demais personalidades de um país.
Recordo-me que levaram, nesse programa, um filho do João Saldanha, que eu acredito que seja, hoje, o talentoso cenógrafo que, na época, estava com uns 10 anos de idade O menino, torcedor do Botafogo, como o pai, quis saber por que ele não convocara o Cao. Aqui, um parêntese: Cao foi o goleiro que sucedeu o Manga depois daquela tumultuada decisão de 1967 contra o Bangu. Prossigamos.
O técnico respondeu ao filho que ainda faltavam alguns predicados ao goleiro do Botafogo e, para arrematar como um bom pai, disse que já era hora de ele ir para casa dormir.
Na Rádio Mauá, o locutor Orlando Batista, com a sua voz de tuba, segundo o Rui Castro, afirmava que o presidente João Havelange foi maquiavélico; nomeou um jornalista como técnico do escrete brasileiro para calar a oposição da imprensa.
Bem, vieram as eliminatórias para a Copa do Mundo de que o Brasil não participava desde 1957. João Saldanha, ainda assim, não deixou de escrever no Globo. Redigiu um artigo intitulado do “Chuí ao Oiapoque” em que esclarece que, como gaúcho, diferentemente dos outros brasileiros, se refere aos extremos do Brasil começando pelo sul. Gostaria de relê-lo, pois, na ocasião, teci entusiasmados elogios aquele texto tão inspirado.
Nos jogos das eliminatórias, o Brasil não teve contemplação na primeira fase: goleou todos os adversários, inclusive o Paraguai, que recebeu os brasileiros com hostilidade. Os torcedores hiperbólicos, como Nélson Rodrigues, falaram em segunda guerra do Paraguai. Vencemos de 3 a 0 e se consolidou ainda mais a expressão “Feras do Saldanha”.
Vale reproduzir um caso ocorrido numa dessas pelejas pelo craque do meio de campo, Gérson, há uns dois meses. Contou ele que, indignado, com o primeiro tempo sem gol das suas “feras” contra a Venezuela (ou Colômbia), João Saldanha jogou a chave do vestiário fora porque eles, os jogadores, não mereciam tomar banho e relaxar. Tiveram os responsáveis pelo estádio, segundo o Gérson, de ordenar o arrombamento da porta do vestiário.  No segundo tempo, saíram os gols do nosso escrete em número de 4 ou 5.
Gérson não fez essa narrativa com laivos de saudosismo e não criticou o técnico por esse gesto tresloucado. Mas João Saldanha aumentaria o diapasão, era só esperar.
Com o ego hipertrofiado, declarou que Pelé, celebrado como o maior jogador do mundo, tinha problemas de visão. Os jogadores não eram submetidos a oftalmologistas? Sim, mas o nosso técnico se imiscuía em todas as áreas e, o grande drama, sem humildade alguma. Ele entendia de tudo, o que é assustador quando se tem um cargo de comando.
Enquanto isso, Yustrich treinava o Flamengo e conseguia ótimos resultados com uma equipe de jogadores de categoria mediana. Ele considerava que o comandante da seleção deveria ser ele e não um jornalista; concedeu, então, uma entrevista em que ofendeu desenfreadamente aquele que julgava um intruso. Resumindo a ópera de libreto siciliano: João Saldanha invadiu a concentração do Flamengo de revólver em punho para tomar satisfações com o seu desafeto, não o encontrando, deu uma pernada no jovem goleiro Adão e foi embora.
Pelo conjunto da obra, o nosso estimado cronista de outrora tinha de ser demitido do cargo, mas não foi.
Sucederam-se outras rusgas com ele, uma delas com o General Médici que, com veleidades de populista, opinou que o artilheiro Dario deveria ser convocado para o escrete nacional. Saldanha, que capitaneava “feras”, reagiu:
“Ele não me consultou na hora de escolher os ministros.”
A esquerda vibrou, mas ela, sabem os que têm memória, declarou que torceria contra o Brasil na Copa do México.
João Havelange, que afirmara que impediria até fisicamente o “João -sem-medo” de sair do cargo de técnico, depois do caso  Yustrich, demitiu-o. Veio o Zagalo e os tempos de destempero no escrete canarinho passaram; a rivalidade  prosseguiu, pois o bairrismo de cariocas e paulistas era histórico. Vem-me à lembrança comumente uma frase do Nélson Rodrigues (mais uma), quando a equipe de 70 partiu para a campanha do México: “Terminou o exílio da seleção brasileira”.
João Saldanha voltava agora à crônica esportiva e a minha admiração por ele, também.
Quando trabalhei no Jornal do Brasil em 1977, vi-o pessoalmente pela primeira e única vez: alto, barrigudo e o sorriso simpático que lhe iluminava o rosto.
Na Rádio JB, havia umas mesas-redondas sobre os mais diversos assuntos e, às vezes, ele participava e eu ouvia.
Como torcedor, previu, com uma fúria bíblica, devido à incúria dos cartolas, que o Botafogo se tornaria o São Cristóvão da zona sul e, por vinte e um anos, a sua previsão se concretizou.
Comentando as pelejas pelos anos 80, várias vezes era interrompido pela tosse; o enfisema pulmonar estendia os seus domínios.
As crises de tosse aumentavam, durante seus comentários, até que, nas proximidades da Copa de 90, na Itália, ele foi internado. Não era, porém, de perder in locum a maior competição do mundo futebolístico e, de cadeira de rodas, acompanhado por uma enfermeira, partiu para a Itália. Lá, morreu.
João Saldanha foi um bravo, inegavelmente.









Nenhum comentário:

Postar um comentário