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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4050 Data: 22 de outubro de 2012
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JOÃO SALDANHA
2ª PARTE
Com a designação do João Saldanha como
técnico da seleção brasileira, Ricardo Serran, que comandava a equipe esportiva
do jornal o Globo, lhe disse
publicamente:
-Você deixou de ser estilingue para
virar vidraça.
Mas, antes, tudo foi festa.
Um participante da Mesa-Redonda de
domingo da TV Globo se tornou técnico da seleção brasileira, e, logicamente, um
programa foi dedicado a ele, enaltecendo-o de corpo presente.
E nesse programa (não digo que me lembro
como se fosse hoje porque a minha memória sobre fatos de ontem é bem mais
apurada) apareceu uma personalidade que, até então, eu julgava personagem do
Nélson Rodrigues: Salim Simão. Segundo o
cronista tricolor, Salim Simão valia por uma multidão, torcendo pelo Botafogo
vibrava mais do que toda a torcida do Flamengo. Agora, na televisão, em carne e
osso, Salim Simão não desmentiu aquele que o divulgou; depois de colocar Nélson
Rodrigues, como dramaturgo, acima de Tennessee Williams e de demais autores
(esqueceu-se de Shakespeare, felizmente) deteve-se no homenageado da noite.
Com a veemência daqueles que se apoderam
da verdade, Salim Simão declarou que o João Saldanha se tornava, agora, o homem
mais importante do Brasil. O que me assustou foi o silêncio do João Saldanha ao
ouvir esse disparate. Ele que, como cronista, sempre colocou o craque acima de
tudo e de todos em se tratando de futebol, não retrucou com uma só palavra,
como se concordasse que um técnico de futebol estivesse acima dos grandes
jogadores e demais personalidades de um país.
Recordo-me que levaram, nesse programa,
um filho do João Saldanha, que eu acredito que seja, hoje, o talentoso
cenógrafo que, na época, estava com uns 10 anos de idade O menino, torcedor do
Botafogo, como o pai, quis saber por que ele não convocara o Cao. Aqui, um
parêntese: Cao foi o goleiro que sucedeu o Manga depois daquela tumultuada
decisão de 1967 contra o Bangu. Prossigamos.
O técnico respondeu ao filho que ainda
faltavam alguns predicados ao goleiro do Botafogo e, para arrematar como um bom
pai, disse que já era hora de ele ir para casa dormir.
Na Rádio Mauá, o locutor Orlando
Batista, com a sua voz de tuba, segundo o Rui Castro, afirmava que o presidente
João Havelange foi maquiavélico; nomeou um jornalista como técnico do escrete
brasileiro para calar a oposição da imprensa.
Bem, vieram as eliminatórias para a Copa
do Mundo de que o Brasil não participava desde 1957. João Saldanha, ainda
assim, não deixou de escrever no Globo. Redigiu um artigo intitulado do “Chuí
ao Oiapoque” em que esclarece que, como gaúcho, diferentemente dos outros
brasileiros, se refere aos extremos do Brasil começando pelo sul. Gostaria de
relê-lo, pois, na ocasião, teci entusiasmados elogios aquele texto tão
inspirado.
Nos jogos das eliminatórias, o Brasil
não teve contemplação na primeira fase: goleou todos os adversários, inclusive
o Paraguai, que recebeu os brasileiros com hostilidade. Os torcedores
hiperbólicos, como Nélson Rodrigues, falaram em segunda guerra do Paraguai.
Vencemos de 3 a
0 e se consolidou ainda mais a expressão “Feras do Saldanha”.
Vale reproduzir um caso ocorrido numa
dessas pelejas pelo craque do meio de campo, Gérson, há uns dois meses. Contou
ele que, indignado, com o primeiro tempo sem gol das suas “feras” contra a
Venezuela (ou Colômbia), João Saldanha jogou a chave do vestiário fora porque
eles, os jogadores, não mereciam tomar banho e relaxar. Tiveram os responsáveis
pelo estádio, segundo o Gérson, de ordenar o arrombamento da porta do
vestiário. No segundo tempo, saíram os
gols do nosso escrete em número de 4 ou 5.
Gérson não fez essa narrativa com laivos
de saudosismo e não criticou o técnico por esse gesto tresloucado. Mas João
Saldanha aumentaria o diapasão, era só esperar.
Com o ego hipertrofiado, declarou que
Pelé, celebrado como o maior jogador do mundo, tinha problemas de visão. Os
jogadores não eram submetidos a oftalmologistas? Sim, mas o nosso técnico se
imiscuía em todas as áreas e, o grande drama, sem humildade alguma. Ele
entendia de tudo, o que é assustador quando se tem um cargo de comando.
Enquanto isso, Yustrich treinava o
Flamengo e conseguia ótimos resultados com uma equipe de jogadores de categoria
mediana. Ele considerava que o comandante da seleção deveria ser ele e não um
jornalista; concedeu, então, uma entrevista em que ofendeu desenfreadamente aquele
que julgava um intruso. Resumindo a ópera de libreto siciliano: João Saldanha
invadiu a concentração do Flamengo de revólver em punho para tomar satisfações
com o seu desafeto, não o encontrando, deu uma pernada no jovem goleiro Adão e
foi embora.
Pelo conjunto da obra, o nosso estimado
cronista de outrora tinha de ser demitido do cargo, mas não foi.
Sucederam-se outras rusgas com ele, uma
delas com o General Médici que, com veleidades de populista, opinou que o
artilheiro Dario deveria ser convocado para o escrete nacional. Saldanha, que
capitaneava “feras”, reagiu:
“Ele não me consultou na hora de
escolher os ministros.”
A esquerda vibrou, mas ela, sabem os que
têm memória, declarou que torceria contra o Brasil na Copa do México.
João Havelange, que afirmara que
impediria até fisicamente o “João -sem-medo” de sair do cargo de técnico,
depois do caso Yustrich, demitiu-o. Veio
o Zagalo e os tempos de destempero no escrete canarinho passaram; a
rivalidade prosseguiu, pois o bairrismo
de cariocas e paulistas era histórico. Vem-me à lembrança comumente uma frase
do Nélson Rodrigues (mais uma), quando a equipe de 70 partiu para a campanha do
México: “Terminou o exílio da seleção brasileira”.
João Saldanha voltava agora à crônica
esportiva e a minha admiração por ele, também.
Quando trabalhei no Jornal do Brasil em
1977, vi-o pessoalmente pela primeira e única vez: alto, barrigudo e o sorriso
simpático que lhe iluminava o rosto.
Na Rádio JB, havia umas mesas-redondas
sobre os mais diversos assuntos e, às vezes, ele participava e eu ouvia.
Como torcedor, previu, com uma fúria
bíblica, devido à incúria dos cartolas, que o Botafogo se tornaria o São
Cristóvão da zona sul e, por vinte e um anos, a sua previsão se concretizou.
Comentando as pelejas pelos anos 80, várias
vezes era interrompido pela tosse; o enfisema pulmonar estendia os seus
domínios.
As crises de tosse aumentavam, durante
seus comentários, até que, nas proximidades da Copa de 90, na Itália, ele foi
internado. Não era, porém, de perder in locum a maior competição do
mundo futebolístico e, de cadeira de rodas, acompanhado por uma enfermeira,
partiu para a Itália. Lá, morreu.
João Saldanha foi um bravo,
inegavelmente.
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