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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4034 Data: 24 de
setembro de 2012
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ESCAPANDO DO DILÚVIO DE TÁXI
Quando vi o céu tão carregado, imaginei
que Noé vira algo parecido enquanto construía a sua arca. Eu tinha de chegar à
estação Carioca do metrô, na saída do trabalho, antes que a ameaça das nuvens
se concretizasse.
Os pingos da chuva já caíam e muitos já
se protegiam, enquanto os camelôs, que sempre aparecem nessa hora, apregoavam a
plenos pulmões guarda-chuvas por cinco “real”.
Preferi me molhar um pouco a levar na
mão, dentro da composição do metrô, um incômodo guarda-chuva que, assim,
continuou na mochila.
Dentro da estação Carioca, chovia era
gente, porque demorava o trem em direção da Pavuna, além de as pessoas
procurarem esse meio de transporte quando uma tempestade está a caminho. Nesse
tumulto, vi que um vigilante trouxera um cego para embarcar, mas duvidei que
conseguisse, tantos eram os passageiros que se apinhavam na plataforma. Acertei
na minha previsão: mal despontou a composição rumo a Pavuna, o cego ouviu o
conselho do guarda: “Deixe para o próximo...”
Como coube tanta gente naquele trem!... Consolei-me com os vídeos que recebo, na
internet, que mostram as piscinas, os metrôs e os apartamentos de alguns países
do extremo oriente.
Espremeram-me na porta que abriria na
estação da Central e eu tinha menos de cinco minutos para me posicionar de uma
maneira tal que a enxurrada de gente não me transferisse para o trem da
Supervia. Assim, empurrando muitos daqui e muitos de lá, aproximei-me da porta
oposta com a dificuldade que um jogador de futebol americano consegue um touchdown.
A poucos segundos da Central, um
passageiro me fez uma pergunta inteiramente insana:
-Você vai saltar na Central?
Só se eu for de marcha a ré. - tive
vontade de lhe responder.
O fluxo e refluxo foi terrível: saltaram
cinquenta e entraram cinquenta, ou seja, o nosso vagão permaneceu superlotado a
caminho da estação da Cidade Nova.
Será que a chuva está mais amena na zona
norte? - foi a minha vã esperança por alguns minutos. Olhando pelo vidro do trem,por onde a água
escorria, vislumbrei ônibus e carros no meio do trânsito congestionado.
-Bem ou mal, estou protegido aqui.
E conjecturei:
O que farei quando saltar em Maria da
Graça?...
Muitos estavam na mesmíssima situação;
pisaram a plataforma da estação de Maria da Graça indecisos e assustados.
Tirei, finalmente, o guarda-chuva da
mochila e subi a escada em busca da saída; poucos passageiros, no entanto, se
arriscaram na chuva, o que provocava uma barreira no portal da estação. Ainda
assim, consegui abrir caminho e constatar que três táxis se encontravam no
ponto da Rua Domingo de Magalhães. Para
mim eram, na verdade, três tábuas de salvação, assim, enchi-me de coragem e
resolvi encarar o dilúvio.
Sete pessoas já haviam saído na minha
frente. Na segunda rampa, encontrei três que não seguiram adiante, na rampa
seguinte, havia uma enorme poça d' água que provocou a desistência dos quatro restantes.
Caramba, que água infectada!... Quantos
litros de mijo de rato temos aqui? - perguntei, enquanto mergulhava os pés até
o tornozelo naquele líquido asqueroso. Vencido o obstáculo, vi que dois táxis
partiram sem passageiros.
Se o outro partir também, estou perdido.
- pensei.
Controlando o guarda-chuva que queria
vergar com o vento, apressei as passadas até ver claramente que o táxi que
restara era o do Paizão.
-Eu não posso deixar meus passageiros na
mão. - disse ele, enquanto eu fechava o guarda chuva e abria a porta do seu
carro.
-Fui o único, desse metrô que chegou,
que seguiu em frente. - expressei um certo orgulho.
-Você foi mesmo corajoso.
-Terei de lavar-me com álcool para não contrair
uma leptospirose.
-Eu ensinei a minha filha a dirigir sob
temporal.
Nesse instante, veio-me à mente um
asterisco do Dieckmann sobre o fato de o Paizão ter tirado a carteira em 1955:
“aposto que o seu primeiro táxi foi um Chevrolet”.
-O senhor se tornou taxista em 1955, quando
tirou a carteira?
-Não, eu dirigi, primeiramente, lotação.
Você conheceu o lotação?... Era muito pequeno...
-Claro que conheci. O lotação
Méier-Penha, um foi arrastado pelo trem e o Carlos Lacerda construiu o viaduto
de Del Castilho.
Paizão prosseguiu:
-Os lotações acabaram em 1962 e eu tive
a sorte de conhecer o Seu Corrêa, um português que era dono de uma frota de
táxi. Comecei, então, a trabalhar como
taxista em 1962.
Era o momento de eu satisfazer a minha
curiosidade.
-Qual a marca do seu primeiro táxi?
-Um DKW.
Das Kleine Wunder, A Pequena Maravilha.
(*) - reportei-me, em silêncio, a um artigo da revista Seleções da década de
60, que eu lera.
-O meu cunhado tinha um DKW, isso, no
início dos anos 70. Em 1972, ele dirigia um TL novinho. Na época, valia a pena o financiamento, era o
chamado milagre brasileiro.
Paizão me interrompeu:
-O TL pertencia à Volkswagen; não
trabalhei com essa marca.
E continuou com a sua história.
-Em 1968, Seu Corrêa se foi desta para
melhor e eu fiquei sem táxi. Passei, por isso, a dirigir caminhão.
-O senhor ia para baixo e para cima de
caminhão?
-Dirigia na estrada, mas eu não negava
fogo.
Nesse instante, nós nos deparamos com um
bolsão d' água que tomava toda rua.
-Não é para menos, esta rua não é
nivelada. - resmungou, enquanto manobrava o seu carro para evitar a lagoa.
-Pelo menos, só há nós aqui. - ponderei.
-Vou ter de pegar aquele cruzamento de
que não gosto. - disse ao retomar a subida da Domingo de Magalhães.
E foi em frente:
-Dos caminhões, eu passei a dirigir
ônibus intermunicipais.
-Já é um trabalho mais ameno. -
comentei.
-Bem, a gente tem de usar uniforme, às
vezes, até boné, mas não existe moleza, não.
-Quando o senhor conseguiu voltar para o
táxi?
Não me respondeu de imediato porque se
encontrava no tal cruzamento de ruas, onde a visão é pouca e os motoristas que
vêm em sentido contrário costumam dobrar à esquerda sem abrir para pôr seu
veículo na pista correta. Com a chuvarada, naquela tarde de sexta-feira, poucos
veículos se aventuraram por ali e Paizão pôde seguir tranquilamente.
-Dei sorte, em 1972, e surgiu outra
oportunidade de eu dirigir táxi de novo. O dono da frota era outro português...
E o Paizão entusiasmado falou da sua
vida de taxista, mesmo quando já estava estacionado na Rua Modigliani.
-Na próxima corrida, o senhor me conta
mais. - disse, já abrindo o guarda-chuva para saltar.
-Contarei. - prometeu.
(*) Parece
que “A pequena maravilha é um aproveitamento mercadológico. As palavras
corretas eram Dampf Kraft Wagen que quer dizer carro movido a vapor.
Obviamente, nasceu assim e as letras foram reaproveitadas. Era legal o tempo do
DKW, que em alemão se diz exatamente como aqui: decavê. O V em alemão chama-se
FAU e é pronunciado como efe e por isso se chama Volkswagen por folksvagen.
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