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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

2249 - meus amigos

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4049                              Data: 21  de outubro de 2012
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JOÃO SALDANHA

Há pessoas com quem não convivemos, ou nunca vimos pessoalmente, mas que nos marcam mais do que aquelas do nosso cotidiano. Isso é um truísmo, mas deve ser dito. Uma dessas pessoas, no que diz respeito a mim, foi o João Saldanha.
A primeira vez que ouvi falar no João Saldanha foi como técnico da equipe do Botafogo na decisão do título carioca de 1957. Depois, folheando as páginas esportivas do jornal, as únicas que me interessavam quando eu tinha dez anos de idade, li que ele se afastou desse cargo. Pouco tempo depois, essa pessoa ainda abstrata para mim, se tornou quase visível para mim pela voz: era o comentarista dos jogos de domingo na Rádio Nacional, enquanto a locução cabia ao Jorge Cury.
Em seguida, eu sabia que João Saldanha era alto, magro com um rosto ora alegre, ora crispado, através da televisão. Ele era um dos componentes da Mesa Redonda Facit juntamente com Nélson Rodrigues, Armando Nogueira, Luís Mendes, José Maria Scassa, Mário Vianna e, para que houvesse um vascaíno, havia a presença bissexta do Sérgio Cabral e de outros menos votados, como o correspondente do periódico português “A Bola”, Jaime Luís.
 De todos, João Saldanha era quem detinha o maior conhecimento tático dos jogos, embora o Armando Nogueira, que chegara do Acre em 1948, e por isso se tornou botafoguense, não ficasse muito atrás. João Saldanha, contudo, expunha suas ideias sem rebuscamento, de uma maneira que o público o entendesse, enquanto o Armando Nogueira, que tinha veleidades literárias, não conseguia descer até as massas populares.
Quanto ao Nélson Rodrigues, declarou, em certo domingo, que, em matéria de futebol, João Saldanha era a sua Bíblia. Se o dramaturgo tricolor fazia tal afirmação, eu, que já torcia pelo Botafogo desde a derrota do Fluminense por 6 a 2, em 1957, não podia pensar diferentemente.
Como os cinéfilos brasileiros que não conseguiam emitir uma opinião sobre um filme sem ler antes o Cahier du Cinema, eu tinha de ouvir ou ler o parecer do João Saldanha sobre uma partida para analisá-la, com as minhas próprias palavras evidentemente, na tentativa de escamotear a minha influência.
O momento mais significativo do João Saldanha como comentarista, com outros desdobramentos, se deu na decisão do campeonato carioca de 1967 entre Botafogo e Bangu. O Botafogo fez 1 a 0, com Roberto Miranda e o Bangu empatou com um veterano que jogara no Santos de Pelé, Del Vecchio. A disputa estava acirradíssima quando o Botafogo conseguiu desempatar. A partir de então aquele combate se tornou dramático. O time da Estrala Solitária tinha craques como Leônidas, Gérson, Jairzinho, Roberto, Paulo César, mas o goleiro do Botafogo, Manga, deu de largar todas as bolas que lhe chegavam.
-O que está havendo com o goleiro da Copa do Mundo do ano passado? - perguntei-me, quando o Jorge Cúri narrou, prenhe de emoção, que Manga largara mais uma bola fácil.
Numa delas, Del Vecchio aproveitou o rebote, mas o beque Paulistinha, que se recusara a sair do campo machucado, salvou em cima da linha.
João Saldanha, que como dirigente do Botafogo trouxera o goleiro de Pernambuco para o seu clube de coração, declarou:
-Muito estranha a atuação do Manga.
Depois de muito sofrimento, a peleja terminou com a vitória do Botafogo por 2 a 1.
De noite, na Mesa Redonda, João Saldanha voltou a colocar sob suspeição o comportamento do Manga e afirmou que a derrota do Bangu significava  que os resultados das partidas de futebol não serão afixados  nos postes. Meia hora depois, o bicheiro Castor de Andrade, filho do poderoso contraventor Euzébio de Andrade, apareceu no programa. Apesar de apresentar-se sentado, como os demais, o cheiro de pólvora se fez sentir:
-Eu não pretendia assistir a programa de futebol algum, nesta noite, mas fui alertado por amigos que estava sendo insultado...
João Saldanha o interrompeu de maneira intempestiva. Castor de Andrade gritou que ele, Saldanha, vivia com a cabeça cheia de uca. E o programa saiu do ar.
No dia seguinte, li no jornal que a esposa do Dr. Hilton Gosling, médico da seleção e do Botafogo, desmaiara na plateia. Muitos anos depois, Luís Mendes, que chefiava aquela Mesa Redonda, informava que o revólver sacado pelo Castor era de material riquíssimo, mas que não fez recuar aquele que Nélson Rodrigues chamaria, em 1970, de João Sem Medo.
Se a memória não me falha quanto ao período, uma semana depois houve a festa, no Mourisco, pelo título conquistado. Seria mais uma festa, porém um fato a levou para as manchetes dos jornais: o goleiro Manga ao avistar o comentarista que colocou em dúvida seu caráter, avançou para cima dele com sua imensa envergadura. Mesmo os que não viveram essa época, mas acompanham o futebol, sabem o que aconteceu: João Saldanha sacou o revólver e atirou no chão que o goleiro pisaria caso avançasse, Manga, apavorado, deu meia volta e, segundo testemunhas, saltou, em desabalada carreira, um muro de quase dois metros de altura.
Ele, depois daquela decisão conturbada, jamais vestiu a camisa do Botafogo, enquanto o João Saldanha continuou como benemérito do clube e comentarista das partidas, enquanto a locução cabia ao Jorge Cúri.
Transcorrem dois anos e o mundo esportivo é sacudido por uma notícia: o presidente da CBD, João Havelange convoca o jornalista João Saldanha para ser o técnico da seleção brasileira de 1970, que responde com uma única palavra:
-Topo.
Nem deu tempo para os engraçadinhos fazerem trocadilho de “topo” com “copo”, pois ele, de cara, escalou a seleção brasileira. Aqui, cabe colocar os fatos no seu contexto. Na Copa de 1966, os cartolas da CBD, por interesses políticos, criaram quatro seleções. E o Brasil, bicampeão do mundo, foi eliminado nas oitavas de final sem que se soubesse o time titular, tantas foram as alterações. Agora, a Copa do Mundo do México se aproximava e ainda não se sabia quais eram os jogadores do escrete. Com Saldanha como técnico, conhecemos  na mesma hora o time.
Foi um fato positivo do João sem medo, mas isso bastava?







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