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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4049 Data: 21 de outubro de 2012
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JOÃO SALDANHA
Há pessoas com quem não convivemos, ou
nunca vimos pessoalmente, mas que nos marcam mais do que aquelas do nosso
cotidiano. Isso é um truísmo, mas deve ser dito. Uma dessas pessoas, no que diz
respeito a mim, foi o João Saldanha.
A primeira vez que ouvi falar no João
Saldanha foi como técnico da equipe do Botafogo na decisão do título carioca de
1957. Depois, folheando as páginas esportivas do jornal, as únicas que me
interessavam quando eu tinha dez anos de idade, li que ele se afastou desse
cargo. Pouco tempo depois, essa pessoa ainda abstrata para mim, se tornou quase
visível para mim pela voz: era o comentarista dos jogos de domingo na Rádio
Nacional, enquanto a locução cabia ao Jorge Cury.
Em seguida, eu sabia que João Saldanha
era alto, magro com um rosto ora alegre, ora crispado, através da televisão.
Ele era um dos componentes da Mesa Redonda Facit juntamente com Nélson
Rodrigues, Armando Nogueira, Luís Mendes, José Maria Scassa, Mário Vianna e,
para que houvesse um vascaíno, havia a presença bissexta do Sérgio Cabral e de
outros menos votados, como o correspondente do periódico português “A Bola”,
Jaime Luís.
De todos, João Saldanha era quem detinha o
maior conhecimento tático dos jogos, embora o Armando Nogueira, que chegara do
Acre em 1948, e por isso se tornou botafoguense, não ficasse muito atrás. João
Saldanha, contudo, expunha suas ideias sem rebuscamento, de uma maneira que o
público o entendesse, enquanto o Armando Nogueira, que tinha veleidades
literárias, não conseguia descer até as massas populares.
Quanto ao Nélson Rodrigues, declarou, em
certo domingo, que, em matéria de futebol, João Saldanha era a sua Bíblia. Se o
dramaturgo tricolor fazia tal afirmação, eu, que já torcia pelo Botafogo desde
a derrota do Fluminense por 6 a
2, em 1957, não podia pensar diferentemente.
Como os cinéfilos brasileiros que não
conseguiam emitir uma opinião sobre um filme sem ler antes o Cahier du
Cinema, eu tinha de ouvir ou ler o parecer do João Saldanha sobre uma
partida para analisá-la, com as minhas próprias palavras evidentemente, na
tentativa de escamotear a minha influência.
O momento mais significativo do João
Saldanha como comentarista, com outros desdobramentos, se deu na decisão do
campeonato carioca de 1967 entre Botafogo e Bangu. O Botafogo fez 1 a 0, com Roberto Miranda e o
Bangu empatou com um veterano que jogara no Santos de Pelé, Del Vecchio. A
disputa estava acirradíssima quando o Botafogo conseguiu desempatar. A partir
de então aquele combate se tornou dramático. O time da Estrala Solitária tinha
craques como Leônidas, Gérson, Jairzinho, Roberto, Paulo César, mas o goleiro
do Botafogo, Manga, deu de largar todas as bolas que lhe chegavam.
-O que está havendo com o goleiro da
Copa do Mundo do ano passado? - perguntei-me, quando o Jorge Cúri narrou,
prenhe de emoção, que Manga largara mais uma bola fácil.
Numa delas, Del Vecchio aproveitou o
rebote, mas o beque Paulistinha, que se recusara a sair do campo machucado,
salvou em cima da linha.
João Saldanha, que como dirigente do
Botafogo trouxera o goleiro de Pernambuco para o seu clube de coração,
declarou:
-Muito estranha a atuação do Manga.
Depois de muito sofrimento, a peleja
terminou com a vitória do Botafogo por 2 a 1.
De noite, na Mesa Redonda, João Saldanha
voltou a colocar sob suspeição o comportamento do Manga e afirmou que a derrota
do Bangu significava que os resultados
das partidas de futebol não serão afixados
nos postes. Meia hora depois, o bicheiro Castor de Andrade, filho do
poderoso contraventor Euzébio de Andrade, apareceu no programa. Apesar de
apresentar-se sentado, como os demais, o cheiro de pólvora se fez sentir:
-Eu não pretendia assistir a programa de
futebol algum, nesta noite, mas fui alertado por amigos que estava sendo
insultado...
João Saldanha o interrompeu de maneira
intempestiva. Castor de Andrade gritou que ele, Saldanha, vivia com a cabeça
cheia de uca. E o programa saiu do ar.
No dia seguinte, li no jornal que a
esposa do Dr. Hilton Gosling, médico da seleção e do Botafogo, desmaiara na
plateia. Muitos anos depois, Luís Mendes, que chefiava aquela Mesa Redonda,
informava que o revólver sacado pelo Castor era de material riquíssimo, mas que
não fez recuar aquele que Nélson Rodrigues chamaria, em 1970, de João Sem Medo.
Se a memória não me falha quanto ao
período, uma semana depois houve a festa, no Mourisco, pelo título conquistado.
Seria mais uma festa, porém um fato a levou para as manchetes dos jornais: o
goleiro Manga ao avistar o comentarista que colocou em dúvida seu caráter,
avançou para cima dele com sua imensa envergadura. Mesmo os que não viveram
essa época, mas acompanham o futebol, sabem o que aconteceu: João Saldanha
sacou o revólver e atirou no chão que o goleiro pisaria caso avançasse, Manga,
apavorado, deu meia volta e, segundo testemunhas, saltou, em desabalada
carreira, um muro de quase dois metros de altura.
Ele, depois daquela decisão conturbada,
jamais vestiu a camisa do Botafogo, enquanto o João Saldanha continuou como
benemérito do clube e comentarista das partidas, enquanto a locução cabia ao
Jorge Cúri.
Transcorrem dois anos e o mundo
esportivo é sacudido por uma notícia: o presidente da CBD, João Havelange
convoca o jornalista João Saldanha para ser o técnico da seleção brasileira de
1970, que responde com uma única palavra:
-Topo.
Nem deu tempo para os engraçadinhos
fazerem trocadilho de “topo” com “copo”, pois ele, de cara, escalou a seleção
brasileira. Aqui, cabe colocar os fatos no seu contexto. Na Copa de 1966, os
cartolas da CBD, por interesses políticos, criaram quatro seleções. E o Brasil,
bicampeão do mundo, foi eliminado nas oitavas de final sem que se soubesse o
time titular, tantas foram as alterações. Agora, a Copa do Mundo do México se
aproximava e ainda não se sabia quais eram os jogadores do escrete. Com
Saldanha como técnico, conhecemos na
mesma hora o time.
Foi um fato positivo do João sem medo,
mas isso bastava?
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