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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4024 Data: 08
de setembro de 2012
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68ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-Como uma pessoa tão arisca como você,
Noel Rosa, caiu na teia do casamento?
-Nem eu sei, camarada. Eu tinha 23 anos
de idade.
-Já era um boêmio escolado. - aparteei.
-Minha sogra veio do norte, anos atrás,
com os filhos pequenos. Arrumou emprego e levava consigo a filha, que ficava no
pátio da fábrica, e transcorridos os anos, também se tornaria operária da
fábrica de tecidos Confiança.
-Já sei: você casou com a inspiradora de
”Três apitos”.
-Para arrumar um rima com pano, tive de
trocar o meu violão pelo piano. - sorriu sem se deter em mais uma obra-prima da
sua lavra.
-E o casamento com Lindaura?
-A diferença é que saiu a cama estreita
do meu quarto e entrou uma cama de casal.
-Seu primo Jacy escreveu que, mesmo
casado, o dinheiro que entrava de dia no seu bolso era todo gasto de noite. Que
você jamais entrou em casa com um embrulho de pão ou de qualquer outra espécie.
Sua bagagem era o violão.
-Eu voltava para a casa
comumente às cinco horas da manhã, mas não ia direto para ela. Eu vinha com os
bolsos abarrotados de pedaços de carne, linguiça, queijo, e uma procissão de
cães e gatos ficava à minha espera, na Teodoro da Silva. Depois de
alimentá-los, eu atravessava o portão do meu chalé.
-Sua esposa, acredito, lhe cobrava um
comportamento de chefe de família?
-Foi muito influenciada pela mãe. Se o
médico não conseguia frear a minha índole de notívago, mesmo a minha má saúde
lhe dando razão, como eu iria me ajustar a uma vida burguesa? Minha sogra, com
sua influência sobre a Linda, só conseguia me irritar e impedir ainda mais de
eu permanecer mais tempo em casa.
-A tuberculose já ulcerava o seu peito
inexoravelmente?
-Eu só falava dessa doença com o médico,
por isso amigos e parentes apenas desconfiavam da minha saúde debilitada. Fui
um doente rebelde, mas, no término de 1934, não houve jeito, tive de viajar
para Minas Gerais em busca de tratamento, mas não larguei a composição de
sambas e o futebol de botão, em que eu era um mestre consumado.
-Soube que foram oito meses em Belo Horizonte onde
você foi paparicado por sua esposa, transformada em enfermeira, e pela sua tia,
Carmem Corrêa de Azevedo Brown, convertida em sua mãe.
-Engordei doze quilos; até o meu rosto
engordou, escondendo um pouco a hipoplasia da mandíbula.
Era a primeira vez que ele se referia ao
desenvolvimento limitado da sua mandíbula, que o fez sofrer com o apelido de
“Queixinho”, na escola, e a ser chamado de “Frankenstein” por Wilson Batista,
num samba, que só é lembrado porque integra a polêmica entre os dois
compositores.
-Minas Gerais lhe fez bem. - afirmei.
-Eu disse para o meu tio, sem ser mal
agradecido, que preferia sobreviver mais dois anos no Rio de Janeiro do que dez
em Belo Horizonte. O
marido da irmã da minha mãe até que me arranjou um emprego na Rádio Mineira. Mas eu pulava a janela de madrugada e batia o
ponto nos botequins e cabarés da capital de Minas Gerais. Lá, conheci Hervé
Cordovil, e compusemos “Triste cuíca”. Criei lá “João Ninguém”, inspirado no
caso em que um guarda noturno quis me prender como vagabundo, porque eu adormecera no
Viaduto da Floresta depois de uma noite de boemia.
-De qualquer maneira, o ar das Alterosas
lhe fez bem, e você retornou ao Rio de Janeiro com um aspecto que animou Dona
Marta, sua mãe.
-Conhece a história do sapo que leva um
escorpião sobre a carcaça por um rio e, no meio da travessia, o escorpião lhe crava
o ferrão?...
Sem esperar resposta, prosseguiu:
-Antes de afundar com a picada, o sapo
perguntou ao escorpião: “Não sabia que eu morrendo, você também morre?” - “Sabia” - respondeu o escorpião - “mas eu não
podia fugir da minha natureza”.
-No Rio de Janeiro, Noel, você voltou a
frequentar os cabarés da Lapa?
-Eu acordava às cinco horas da tarde,
antes, era impossível, como advertia o meu irmão a quem me procurava. Depois de
me arrumar no banheiro, eu encontrava a refeição especial da minha mãe: ovos,
leite, geleia de mocotó, alimentos de sustância para o filhinho que era fraco
do pulmão. Eu fazia careta, mas comia para não desapontar a minha mãe.
-Nesse tempo, você jantava e saía perto
das oito horas da noite rumo à Rádio Mayrink Veiga, na Rua do Acre, para se
apresentar no programa César Ladeira. Depois, seu destino era a Lapa.
-Por lá andava a minha grande amada,
Juraci Correia de Araújo, a Ceci.
-Você teve muitas namoradas, foi amante
de mulheres casadas, casou com uma moça de família, mas sua grande paixão foi a
prostituta de cabaré, Ceci.
-Ela me inspirou “Último Desejo”.
-Uma das obras com maior carga emotiva
do cancioneiro popular brasileiro. - afirmei.
-Coloquei a paixão que me dominava em cada
sílaba, em cada nota musical.
-Seu primo Jacy Pacheco conta que,
depois da sua volta de Minas Gerais, o acompanhou numa ida a um cabaré da Lapa.
Escreveu ele que junto a você a expressão da prostituta se modificava;
desapareciam as marcas dos dissabores; havia tons de pureza no rosto dela, ar
de felicidade recuperada.
-No dia em que apresentei meu primo a
Ceci, um marujo sem engraçou por com ela... Insultei-o e me preparei para a
porrada, meu primo tentou contemporizar, dizendo para o fulano que eu não estava
bem de saúde.
-Li sobre isso; quando o marinheiro
soube que você era o filósofo do samba afirmou que jamais brigaria com Noel
Rosa.
-Com a Ceci do meu lado, eu enfrentava
qualquer um numa briga.
-E a morte já se aproximava de você.
-Desde o início de maio de 1936 que a
minha respiração se tornou ruidosa. Eu acalmava o pessoal de casa, minha mãe,
meu irmão... Orestes Barbosa veio me visitar...
-E Lamartine Babo, Ari Barroso?
-Esses apareceram no meu funeral. Fui um
dia agressivo com Lamartine Babo, disse que Ari Barroso não roubava músicas, e
que ele, Lamartine, enganava...
-Mas, na hora extrema, todas essas
desavenças ficam esquecidas, Noel.
-Era 4 de abril de 1937, eu tinha 26
anos. O vizinho da frente, Vicente Sabonete, tinha programado uma festa. Eu
disse que não adiassem a festa porque estava bem. Eu queria morrer ouvindo
pessoas festeiras cantando algumas das minhas canções. E assim foi.
-A Rua Teodoro da Silva foi tomada pelo
povo, no dia seguinte à sua morte, que queria se despedir do seu ...
Não terminei a frase, porque Noel Rosa
se desmaterializou à minha frente.
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