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terça-feira, 18 de setembro de 2012

2224 - eu não poderia fugir à minha natureza

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4024                                       Data: 08 de setembro de 2012
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68ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE

-Como uma pessoa tão arisca como você, Noel Rosa, caiu na teia do casamento?
-Nem eu sei, camarada. Eu tinha 23 anos de idade.
-Já era um boêmio escolado. - aparteei.
-Minha sogra veio do norte, anos atrás, com os filhos pequenos. Arrumou emprego e levava consigo a filha, que ficava no pátio da fábrica, e transcorridos os anos, também se tornaria operária da fábrica de tecidos Confiança.
-Já sei: você casou com a inspiradora de ”Três apitos”.
-Para arrumar um rima com pano, tive de trocar o meu violão pelo piano. - sorriu sem se deter em mais uma obra-prima da sua lavra.
-E o casamento com Lindaura?
-A diferença é que saiu a cama estreita do meu quarto e entrou uma cama de casal.
-Seu primo Jacy escreveu que, mesmo casado, o dinheiro que entrava de dia no seu bolso era todo gasto de noite. Que você jamais entrou em casa com um embrulho de pão ou de qualquer outra espécie. Sua bagagem era o violão.
-Eu voltava para a casa comumente às cinco horas da manhã, mas não ia direto para ela. Eu vinha com os bolsos abarrotados de pedaços de carne, linguiça, queijo, e uma procissão de cães e gatos ficava à minha espera, na Teodoro da Silva. Depois de alimentá-los, eu atravessava o portão do meu chalé.
-Sua esposa, acredito, lhe cobrava um comportamento de chefe de família?
-Foi muito influenciada pela mãe. Se o médico não conseguia frear a minha índole de notívago, mesmo a minha má saúde lhe dando razão, como eu iria me ajustar a uma vida burguesa? Minha sogra, com sua influência sobre a Linda, só conseguia me irritar e impedir ainda mais de eu permanecer mais tempo em casa.
-A tuberculose já ulcerava o seu peito inexoravelmente?
-Eu só falava dessa doença com o médico, por isso amigos e parentes apenas desconfiavam da minha saúde debilitada. Fui um doente rebelde, mas, no término de 1934, não houve jeito, tive de viajar para Minas Gerais em busca de tratamento, mas não larguei a composição de sambas e o futebol de botão, em que eu era um mestre consumado.
-Soube que foram oito meses em Belo Horizonte onde você foi paparicado por sua esposa, transformada em enfermeira, e pela sua tia, Carmem Corrêa de Azevedo Brown, convertida em sua mãe.
-Engordei doze quilos; até o meu rosto engordou, escondendo um pouco a hipoplasia da mandíbula.
Era a primeira vez que ele se referia ao desenvolvimento limitado da sua mandíbula, que o fez sofrer com o apelido de “Queixinho”, na escola, e a ser chamado de “Frankenstein” por Wilson Batista, num samba, que só é lembrado porque integra a polêmica entre os dois compositores.
-Minas Gerais lhe fez bem. - afirmei.
-Eu disse para o meu tio, sem ser mal agradecido, que preferia sobreviver mais dois anos no Rio de Janeiro do que dez em Belo Horizonte. O marido da irmã da minha mãe até que me arranjou um emprego na Rádio Mineira.  Mas eu pulava a janela de madrugada e batia o ponto nos botequins e cabarés da capital de Minas Gerais. Lá, conheci Hervé Cordovil, e compusemos “Triste cuíca”. Criei lá “João Ninguém”, inspirado no caso em que um guarda noturno quis me prender  como vagabundo, porque eu adormecera no Viaduto da Floresta depois de uma noite de boemia.
-De qualquer maneira, o ar das Alterosas lhe fez bem, e você retornou ao Rio de Janeiro com um aspecto que animou Dona Marta, sua mãe.
-Conhece a história do sapo que leva um escorpião sobre a carcaça por um rio e, no meio da travessia, o escorpião lhe crava o ferrão?...
Sem esperar resposta, prosseguiu:
-Antes de afundar com a picada, o sapo perguntou ao escorpião: “Não sabia que eu morrendo, você também morre?” -  “Sabia” - respondeu o escorpião - “mas eu não podia fugir da minha natureza”.
-No Rio de Janeiro, Noel, você voltou a frequentar os cabarés da Lapa?
-Eu acordava às cinco horas da tarde, antes, era impossível, como advertia o meu irmão a quem me procurava. Depois de me arrumar no banheiro, eu encontrava a refeição especial da minha mãe: ovos, leite, geleia de mocotó, alimentos de sustância para o filhinho que era fraco do pulmão. Eu fazia careta, mas comia para não desapontar a minha mãe.
-Nesse tempo, você jantava e saía perto das oito horas da noite rumo à Rádio Mayrink Veiga, na Rua do Acre, para se apresentar no programa César Ladeira. Depois, seu destino era a Lapa.
-Por lá andava a minha grande amada, Juraci Correia de Araújo, a Ceci.
-Você teve muitas namoradas, foi amante de mulheres casadas, casou com uma moça de família, mas sua grande paixão foi a prostituta de cabaré, Ceci.
-Ela me inspirou “Último Desejo”.
-Uma das obras com maior carga emotiva do cancioneiro popular brasileiro. - afirmei.
-Coloquei a paixão que me dominava em cada sílaba, em cada nota musical.
-Seu primo Jacy Pacheco conta que, depois da sua volta de Minas Gerais, o acompanhou numa ida a um cabaré da Lapa. Escreveu ele que junto a você a expressão da prostituta se modificava; desapareciam as marcas dos dissabores; havia tons de pureza no rosto dela, ar de felicidade recuperada.
-No dia em que apresentei meu primo a Ceci, um marujo sem engraçou por com ela... Insultei-o e me preparei para a porrada, meu primo tentou contemporizar, dizendo para o fulano que eu não estava bem de saúde.
-Li sobre isso; quando o marinheiro soube que você era o filósofo do samba afirmou que jamais brigaria com Noel Rosa.
-Com a Ceci do meu lado, eu enfrentava qualquer um numa briga.
-E a morte já se aproximava de você.
-Desde o início de maio de 1936 que a minha respiração se tornou ruidosa. Eu acalmava o pessoal de casa, minha mãe, meu irmão... Orestes Barbosa veio me visitar...
-E Lamartine Babo, Ari Barroso?
-Esses apareceram no meu funeral. Fui um dia agressivo com Lamartine Babo, disse que Ari Barroso não roubava músicas, e que ele, Lamartine,  enganava...
-Mas, na hora extrema, todas essas desavenças ficam esquecidas, Noel.
-Era 4 de abril de 1937, eu tinha 26 anos. O vizinho da frente, Vicente Sabonete, tinha programado uma festa. Eu disse que não adiassem a festa porque estava bem. Eu queria morrer ouvindo pessoas festeiras cantando algumas das minhas canções. E assim foi.
-A Rua Teodoro da Silva foi tomada pelo povo, no dia seguinte à sua morte, que queria se despedir do seu ... 
Não terminei a frase, porque Noel Rosa se desmaterializou à minha frente.

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