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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

2220 - vodca volátil


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4020                                Edição 02 de setembro de 2010
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67ª  VISITA  À  MINHA  CASA

-Há muito tempo que um grande compositor não me visita. - disse logo que Dimitri Shostakovitch se materializou à minha frente.
-No aquém-túmulo, há cigarros e vodca.
Tentando ser um bom anfitrião, servi-lhe cigarros e vodca sem deixar de registrar que esses vícios aceleraram a sua caminhada para o túmulo.
-Naquele clima gélido da Rússia, sobressaltado por uma prisão iminente, principalmente no tempo do Stalin, a única distração que eu tinha era beber e fumar.
-E a música.
-A música era uma fuga.
Repetiu a sua última frase, riu e comentou:
-Se eu fosse Bach, seria um trocadilho. Minha música é tonal e de tradição romântica, mas há elementos de atonalidade e cromatismo. Compus peças de estilo híbrido, incluindo o neoclacissismo e o pós-romântico. De Bach, eu apreciava muito as passacaglias. ????
-Há uns três ou quatro anos, Shostakovitch, eu ouvi a transmissão do Metropolitan Opera House da sua ópera “Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk”. Bela ópera! Você retratou musicalmente um orgasmo.
-Essa ópera me deu muita dor de cabeça, pois o Stalin foi com uma comitiva ao teatro para assisti-la. Conforme as cenas se desenrolavam, ele suspeitava que a sua pessoa estivesse retratada no palco.
-E estava?...
Dimitri Shostakovitch respondeu com um sorriso maroto.
-Perdi os favores oficiais. O Pravda publicou um artigo intitulado “Confusão ao Invés de Música” sobre a ópera, descrevendo-a como grosseira, primitiva e vulgar. As encomendas escassearam e meus rendimentos eram mínimos. Com o clima político tenebroso, tive de engavetar minha Quarta Sinfonia que acabara de compor.
-Stalin, nesse ano de 1936, mandou fuzilar 500 mil pessoas e prender nos Gulags 7 milhões.
-Ele dizia que matar poucas pessoas era assassinatos, centenas de milhares, era estatística.
 Dimitri Shostakovitch, há algumas semanas, um amigo entrevistou um representante da Orquestra Sinfônica Brasileira, na Rádio MEC, sobre o período que antecedeu a composição da sua Quinta Sinfonia.
-Sim... - demonstrou interesse.
-Foi dito que você travou amizade com um militar que lhe dedicava uma grande admiração. Como esse militar participaria de uma conspiração abortada para matar Stalin, você foi convocado por um comissário para prestar depoimento. Disse, então, que nada sabia e o comissário o enviou para casa com a garantia de retornar outro dia com a memória mais fresca. Em casa, você preparou as malas e avisou a mulher que seria enviado para a Sibéria a qualquer momento. A KGB não bateu à sua porta e você retornou ao comissariado para se apresentar ao tal interrogador. Lá, soube que ele havia sido preso e, assim, você escapou.
-Houve um tempo em que eu esperava pela minha prisão, à noite, na porta do elevador para que a minha família, mulher e filhos, não fosse perturbada.
-A sua Quinta Sinfonia alcançou um estrondoso sucesso.
-Eu a compus em 1937 e agradei a todos, principalmente os chefões soviéticos pelo conservadorismo da música; no entanto, lancei mensagens subliminares que eles, certamente, não captaram.
-Com a volta do filho pródigo, você passou a lecionar composição, em setembro de 1937, no conservatório, o que melhorou o seu orçamento.
-Mas me deixou com menos tempo para compor.
-Antes da Rússia invadir a Finlândia, na Segunda Grande Guerra Mundial, o Secretário do Partido Comunista, em Leningrado, lhe encomendou uma peça comemorativa, Suíte sobre Temas Finlandeses, para ser executada em Helsinki, no desfile do Exército Vermelho.
-Foi uma vergonha essa guerra!... Os poucos soldados finlandeses fizeram um incrível estrago nas forças russas. Só vencemos a Finlândia porque houve muitos russos para morrerem. Nunca reivindiquei a autoria dessa composição.
-A sua estreia mundial ocorreu em 2001.
-Eu estava morto há 26 anos. - afirmou com alívio.
-Quando a Alemanha de Hitler invadiu a Rússia, em 1941, tudo se tornou ainda mais pavoroso.
-Eu me encontrava em Leningrado e dera início aos trabalhos da minha sétima Sinfonia, que recebeu o nome dessa cidade.
-Mas você não ficou quase um ano, em Leningrado, cercado pelas tropas nazistas e alimentando-se de sopa de raspas de parede?
-Não, fugi com a minha família, no início do cerco, para Samara, onde completei a minha Sétima Sinfonia. Em 1943, mudei-me para Moscou.
-A sua Sinfonia Leningrado retratou a luta heroica do povo contra os invasores. A sua Oitava Sinfonia foi considerada sombria e violenta; e vieram os pedidos, em 1945, para que a Nona Sinfonia fosse um hino da vitória.
-Compus uma paródia “a la Haydn”, o que não agradou Stalin e demais palacianos.
-Em 1948, você e outros compositores foram censurados pelo Decreto Zhdanov?
-Mais uma vez, a minha prisão poderia acontecer a qualquer momento.
-Teve, então, de fazer concessões?
-Sim; em 1949, compus a “Cantata das Florestas”, em que exaltei Stalin como o “grande jardineiro”.
-Uma pessoa perspicaz vislumbraria logo a ironia.- manifestei-me.
-Quanto Stalin morreu, em 1953, vários trabalhos meus saíram da gaveta.
-Como autor prolífero, você compôs até para cinema.
-Sim, mas a minha Quinta Sinfonia só foi usada posteriormente no “Encouraçado Potemkin”, pois o filme de Eisenstein é anterior.
-Falando nela, Leonard Bernstein a executou com a Filarmônica de Nova York, em 1959. - lembrei.
-Foi numa excursão que eles fizeram a Moscou, eu subi ao palco e agradeci, comovido.
 -Em 1962, você voltou a ter problemas com o poder soviético porque retratou na Décima Terceira Sinfonia, Babi Yar, o massacre dos judeus na Segunda Guerra, utilizando-se dos poemas de Yevtushenko.
-Ele foi obrigado a adicionar uma estrofe em que dizia que russos e ucranianos morreram ao lado dos judeus em Babi Yar. - declarou, depois de esvaziar mais um copo.

-Shostakovitch, a sua saúde ficou debilitada em meados dos anos 50, mas você não largou a nicotina e o álcool.
-Em 1958, sofri com uma doença que enfraqueceu minha mão direita, tive de parar de tocar piano, Em 1965, diagnosticaram uma poliomielite...
-Estava livre de Stalin, mas vieram as doenças.
-Livre de Stalin?!... Tive de assinar com mais 25 intelectuais, entre eles Jean-Paul Sartre, uma carta a Leonid Brezhnev pedindo que Stalin não fosse reabilitado.
Em seguida, prosseguiu com os seus problemas de saúde:
-Passei a sofrer de problemas cardíacos, sofri várias quedas e quebrei as duas pernas. Escrevi, então, uma carta, em que disse que só faltava agora eu dar cabo da minha mão direita para ficar com todas as extremidades avariadas.
-Sua filha disse que você era obcecado com a limpeza, sincronizava todos os relógios do seu apartamento e enviava cartões postais para si mesmo com o objetivo de testar a eficiência postal.
-É verdade. Morri em 1975, quando não tinha mais forças para compor.
-E o que você respondia quando lhe perguntavam sobre a existência de Deus.
-Não creio em Deus e lamento muito por isso.
Com essas palavras, volatizou-se à minha frente deixando o copo de vodca vazio.













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