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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4020 Edição 02 de
setembro de 2010
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67ª VISITA À
MINHA CASA
-Há muito tempo que um grande compositor
não me visita. - disse logo que Dimitri Shostakovitch se materializou à minha
frente.
-No aquém-túmulo, há cigarros e vodca.
Tentando ser um bom anfitrião, servi-lhe
cigarros e vodca sem deixar de registrar que esses vícios aceleraram a sua
caminhada para o túmulo.
-Naquele clima gélido da Rússia,
sobressaltado por uma prisão iminente, principalmente no tempo do Stalin, a
única distração que eu tinha era beber e fumar.
-E a música.
-A música era uma fuga.
Repetiu a sua última frase, riu e
comentou:
-Se eu fosse Bach, seria um trocadilho.
Minha música é tonal e de tradição romântica, mas há elementos de atonalidade e
cromatismo. Compus peças de estilo híbrido, incluindo o neoclacissismo e o
pós-romântico. De Bach, eu apreciava muito as passacaglias. ????
-Há uns três ou quatro anos, Shostakovitch,
eu ouvi a transmissão do Metropolitan Opera House da sua ópera “Lady Macbeth do
Distrito de Mtsensk”. Bela ópera! Você retratou musicalmente um orgasmo.
-Essa ópera me deu muita dor de cabeça,
pois o Stalin foi com uma comitiva ao teatro para assisti-la. Conforme as cenas
se desenrolavam, ele suspeitava que a sua pessoa estivesse retratada no palco.
-E estava?...
Dimitri Shostakovitch respondeu com um
sorriso maroto.
-Perdi os favores oficiais. O Pravda
publicou um artigo intitulado “Confusão ao Invés de Música” sobre a ópera,
descrevendo-a como grosseira, primitiva e vulgar. As encomendas escassearam e
meus rendimentos eram mínimos. Com o clima político tenebroso, tive de
engavetar minha Quarta Sinfonia que acabara de compor.
-Stalin, nesse ano de 1936, mandou
fuzilar 500 mil pessoas e prender nos Gulags 7 milhões.
-Ele dizia que matar poucas pessoas era
assassinatos, centenas de milhares, era estatística.
Dimitri Shostakovitch, há algumas semanas, um
amigo entrevistou um representante da Orquestra Sinfônica Brasileira, na Rádio
MEC, sobre o período que antecedeu a composição da sua Quinta Sinfonia.
-Sim... - demonstrou interesse.
-Foi dito que você travou amizade com um
militar que lhe dedicava uma grande admiração. Como esse militar participaria
de uma conspiração abortada para matar Stalin, você foi convocado por um
comissário para prestar depoimento. Disse, então, que nada sabia e o comissário
o enviou para casa com a garantia de retornar outro dia com a memória mais
fresca. Em casa, você preparou as malas e avisou a mulher que seria enviado
para a Sibéria a qualquer momento. A KGB não bateu à sua porta e você retornou
ao comissariado para se apresentar ao tal interrogador. Lá, soube que ele havia
sido preso e, assim, você escapou.
-Houve um tempo em que eu esperava pela
minha prisão, à noite, na porta do elevador para que a minha família, mulher e
filhos, não fosse perturbada.
-A sua Quinta Sinfonia alcançou um
estrondoso sucesso.
-Eu a compus em 1937 e agradei a todos,
principalmente os chefões soviéticos pelo conservadorismo da música; no
entanto, lancei mensagens subliminares que eles, certamente, não captaram.
-Com a volta do filho pródigo, você passou
a lecionar composição, em setembro de 1937, no conservatório, o que melhorou o
seu orçamento.
-Mas me deixou com menos tempo para
compor.
-Antes da Rússia invadir a Finlândia, na
Segunda Grande Guerra Mundial, o Secretário do Partido Comunista, em Leningrado,
lhe encomendou uma peça comemorativa, Suíte sobre Temas Finlandeses,
para ser executada em Helsinki, no desfile do Exército Vermelho.
-Foi uma vergonha essa guerra!... Os
poucos soldados finlandeses fizeram um incrível estrago nas forças russas. Só
vencemos a Finlândia porque houve muitos russos para morrerem. Nunca
reivindiquei a autoria dessa composição.
-A sua estreia mundial ocorreu em 2001.
-Eu estava morto há 26 anos. - afirmou
com alívio.
-Quando a Alemanha de Hitler invadiu a
Rússia, em 1941, tudo se tornou ainda mais pavoroso.
-Eu me encontrava em Leningrado e dera
início aos trabalhos da minha sétima Sinfonia, que recebeu o nome dessa cidade.
-Mas você não ficou quase um ano, em
Leningrado, cercado pelas tropas nazistas e alimentando-se de sopa de raspas de
parede?
-Não, fugi com a minha família, no
início do cerco, para Samara, onde completei a minha Sétima Sinfonia. Em 1943,
mudei-me para Moscou.
-A sua Sinfonia Leningrado retratou a
luta heroica do povo contra os invasores. A sua Oitava Sinfonia foi considerada
sombria e violenta; e vieram os pedidos, em 1945, para que a Nona Sinfonia
fosse um hino da vitória.
-Compus uma paródia “a la Haydn ”, o que não agradou
Stalin e demais palacianos.
-Em 1948, você e outros compositores
foram censurados pelo Decreto Zhdanov?
-Mais uma vez, a minha prisão poderia
acontecer a qualquer momento.
-Teve, então, de fazer concessões?
-Sim; em 1949, compus a “Cantata das
Florestas”, em que exaltei Stalin como o “grande jardineiro”.
-Uma pessoa perspicaz vislumbraria logo
a ironia.- manifestei-me.
-Quanto Stalin morreu, em 1953, vários
trabalhos meus saíram da gaveta.
-Como autor prolífero, você compôs até
para cinema.
-Sim, mas a minha Quinta Sinfonia só foi
usada posteriormente no “Encouraçado Potemkin”, pois o filme de Eisenstein é
anterior.
-Falando nela, Leonard Bernstein a
executou com a Filarmônica de Nova York, em 1959. - lembrei.
-Foi numa excursão que eles fizeram a
Moscou, eu subi ao palco e agradeci, comovido.
-Em 1962, você voltou a ter problemas com o
poder soviético porque retratou na Décima Terceira Sinfonia, Babi Yar, o
massacre dos judeus na Segunda Guerra, utilizando-se dos poemas de Yevtushenko.
-Ele foi obrigado a adicionar uma
estrofe em que dizia que russos e ucranianos morreram ao lado dos judeus em Babi Yar. -
declarou, depois de esvaziar mais um copo.
-Shostakovitch, a sua saúde ficou
debilitada em meados dos anos 50, mas você não largou a nicotina e o álcool.
-Em 1958, sofri com uma doença que
enfraqueceu minha mão direita, tive de parar de tocar piano, Em 1965,
diagnosticaram uma poliomielite...
-Estava livre de Stalin, mas vieram as
doenças.
-Livre de Stalin?!... Tive de assinar
com mais 25 intelectuais, entre eles Jean-Paul Sartre, uma carta a Leonid
Brezhnev pedindo que Stalin não fosse reabilitado.
Em seguida, prosseguiu com os seus
problemas de saúde:
-Passei a sofrer de problemas cardíacos,
sofri várias quedas e quebrei as duas pernas. Escrevi, então, uma carta, em que
disse que só faltava agora eu dar cabo da minha mão direita para ficar com
todas as extremidades avariadas.
-Sua filha disse que você era obcecado
com a limpeza, sincronizava todos os relógios do seu apartamento e enviava
cartões postais para si mesmo com o objetivo de testar a eficiência postal.
-É verdade. Morri em 1975, quando não
tinha mais forças para compor.
-E o que você respondia quando lhe
perguntavam sobre a existência de Deus.
-Não creio em Deus e lamento muito por
isso.
Com essas palavras, volatizou-se à minha
frente deixando o copo de vodca vazio.
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