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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4019 Data: 01 de
setembro de 2012
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A CRÔNICA NO SABADOIDO
PARTE II
Diante do ecrã do computador, no cybercafé
do Daniel, deparei-me com uma mensagem eletrônica com a pergunta “Aonde foi
parar a paraolimpíada?” É evidente que me interessei logo pelo texto que se
seguiria à indagação, pois sinto um desagradável ruído quando ouço
paralimpíada. Explicando, mas sem
justificar, ainda mais que se tratava de um professor da Língua Portuguesa, ele
diz que esse nome é agora usado em atendimento a um pedido do comitê
organizador. Assim, o “Paralympic Games”, surgido no ano de 1988, em Seul,
recebe agora a tradução “Jogos Paralímpicos”.
O mencionado professor lembra que,
quando desfazemos um hiato, o que cai é a primeira vogal, assim, “de + onde” se
transforma “donde”, “para o céu”, “pro céu” e, consequentemente,
“paraolimpíada” seria “parolimpíada” que, de fato, não soa como cacofonia. Mas
não, é “paralimpíada”, mais uma concessão feita à língua inglesa.
Procurei, em seguida, o vídeo em que o
Zé Ramalho, no seu inconfundível acento nordestino, canta uma canção cheia de fast
food, drive-in, shopping, software e outros estrangeirismos cuja
causa Noel Rosa, na década de 30, atribuiu ao cinema falado, mas não o
encontrei nos arquivos dos meus e-mails.
Catei o mais recente filme do cineasta
Dieckmann, mas parece que ele inverteu os papéis: pendurou a câmera e calçou as
chuteiras. Afirmam os seus amigos, e ele próprio, que voltou a jogar futebol.
Talvez seja verdade, pois quando o vi, duas semanas atrás, estava mais magro do
que o Adriano e o Ronaldo Fenômeno.
Nesse ínterim, as vozes do Luca e do
Cláudio vinham do local da sessão do Sabadoido até mim. Antes de rumar para lá,
acessei o webmail do meu trabalho para apagar, sem ler, as mensagens
enviadas pelos grevistas.
Quando cheguei, Luca alertou que falaria
de uma desgraça, embora a sua expressão fosse boa.
-Nesta semana, senti fortes dores no
joelho. Como o incômodo era muito grande, procurei um médico. Ele me fez dobrar
a perna, segurou numa parte do joelho e deu uma pancada... Fui às nuvens e
voltei de tanta dor.
As suas palavras eram realçadas pela sua
larga gesticulação.
-Então, veio a má notícia: eu tenho
artrose e não posso caminhar. Não vou desfrutar aqueles neurotransmissores das
caminhadas que fazem bem: endorfina...
-Dopamina, serotonina...
-Mas que artrose é essa, Luca?
-Claudiomiro, nesse período em que eu
manquei, o meu peso era jogado nesta perna e meu joelho sofreu as
consequências. Uma notícia boa: o médico disse que eu posso continuar com o
pingue-pongue. O pessoal lá de casa até estranhou: “O médico sabe que o seu pingue-pongue
é de um nível elevado?...”
Nesse instante, eu intervim:
-Luca, eu sugiro que você consulte outro
médico.
-Sim; eu vou falar com o que me operou.
-Um especialista, Luca. - acrescentei.
E o assunto se alterou.
A Rosa está zangada com o Carlinhos, que
transcreve os manuscritos dela no Biscoito Molhado e ainda lhe atribui versos,
então, só envia recortes de jornais.
Dizendo isso, Luca puxou de um envelope
alguns papéis de imprensa cortados a tesoura. Em seguida, anunciou o nome de um
articulista, cujo nome me escapa, que escreveu sobre a última lista dos maiores
filmes de todos os tempos da revista “Sight and Sound”.
-Ele se insurge com o fato de “Um Corpo
que Cai” tirar o primeiro lugar, depois de décadas, de “O Cidadão Kane”. Ele
até duvida que esse filme seja o melhor de Hitchcock.
-Eu também tenho minhas dúvidas se é o
melhor Hitchcock. - interveio meu irmão.
Luca prosseguiu com a leitura do texto
do cronista que afirmava que “O Cidadão Kane” aborda uma gama de assuntos bem
maior do que “Um Corpo que Cai”, inclusive o amor.
E voltou-se para mim.
-O filme do Orson Welles trata mesmo do
amor?
Pelos escritos do ator David Niven, que
conheceu o casal William Randolph Hearst e Marion Davis, inspiradores de
Charles Foster Kane e Susan Alexander, o magnata da imprensa gostava, de fato,
da atriz, controlando a sua queda pelo álcool, mas, no filme de Orson Welles, o
protagonista tratava a sua amante como uma peça valiosa da sua coleção de homem
milionário.
-Nem tanto. - respondi ao Luca.
A leitura sobre os maiores filmes de
todos os tempos prosseguiu, com intervenções do meu irmão em uma e outra fita,
até que o Luca passou para outra crônica. Foi interrompido pela chegada do
supermercado da Gina; depois dos cumprimentos de praxe, reiniciou a leitura.
-Vagner não veio. - constatou minha
cunhada.
-O cavalo sempre está aqui para
representar os ausentes. - apontou o Claudio o peso de papel sobre a mesinha
que estava entre mim e ele.
-Falaram que a crônica é um gênero
menor... Soube disso, Carlinhos? - disse o Luca enquanto ajeitava numa cadeira
vazia os recortes da Folha de São Paulo que trouxera.
-Eu sei que o Guimarães Rosa,
queixando-se por que o Fernando Sabino se dedicava mais às crônicas do que aos
livros, aconselhou-o a não fazer biscoitos e sim, pirâmides.
-Carlinhos, ele o pegou duas vezes. -
comentou com uma risada o Luca.
Na verdade, houve um encontro entre os
dois escritores, e Guimarães Rosa, que gostara do romance de Fernando Sabino “O
Encontro Marcado”, apresentou-lhe a seguinte recomendação em tom paternal: “Não
faça biscoitos, faça pirâmides”. A resposta veio na autobiografia “Tabuleiro de
Damas” em que, comentando esse conselho, Fernando Sabino pergunta se a obra
literária se impunha pelo gênero e pelo tamanho, além da qualidade. No fim, ele
arremata: “Ninguém é obrigado a ser Tolstoi na vida (...) nem julgado por ser
biscoiteiro ou faraó.”
É evidente que nem tentei reproduzir o
parágrafo acima na sessão do Sabadoido, apenas afirmei que muitos escritos do
Biscoito Molhado nada tem a ver com crônicas. Não tive tempo também de citar
Mário de Andrade, que iniciou o conto “Vestido de Preto”, em que colocou os
rótulos literários em
discussão. Escreveu ele: “Tanto andam preocupados em definir
o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.”
Agora, Claudio e Luca discutiam. Este
afirmou que Chico Buarque, ao contrário do Caetano Veloso, colocava a cara a
tapa, politicamente falando, enquanto o Claudio garantia que o Caetano era bem
mais arrojado do que o compositor de “A Banda”.
De repente, uma forte pancada na chapa
de metal da porta assustou todos: Daniel anunciava a sua vinda da caminhada.
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