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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

2799 - Carnavalesco Dicionário Biográfico, com banho


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5049                   Data: 17 de fevereiro de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XI

 

BANHO – Na nossa casa da Rua Cachambi, onde residimos até o final de 1961, havia um aquecedor no banheiro.  Não éramos, por isso, obrigados a enfrentar a água fria como nos locais mais pobres. Mas não me recordo desses banhos, propriamente disso, e sim do que aconteceu após um deles. Eu estava no colo da minha mãe, enrolado numa toalha, ela, provavelmente me enxugava, quando o meu dente foi arrancado por uma tamancada. Meu irmão Cláudio pegara o tamanco do meu pai e o arremessou na minha direção.

Com o impacto, engoli o dente e a minha mãe correu comigo para o SAMDU – Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência.

Lá, depois de me examinarem, disseram que a minha mãe deveria se certificar de que eu excretara o dente engolido. Ou não disseram?... Sei que eu tinha de fazer cocô num penico que, em seguida, era escarafunchado pela minha mãe com uma vareta. Quando ela constatou que o dente fora expelido, deu por encerrada a sua missão.

Depois, vieram os banhos no colégio. As aulas de Educação Física eram praticadas com a separação de sexos; um professor ficava com os meninos, e uma professora com as meninas. Eram três ou quatro turmas no mesmo horário, tantos eram os alunos.

Pulinho de galo, canguru, flexão de braço, barra... o nosso suor escorria inevitavelmente.

Numa aula, um dos nossos professores cismou que nos preparava para guerra, pois, após a distribuição de bastões a cada um de nós, levou-nos para a parte detrás do Visconde de Cairu, onde o terreno era acidentado. Lá, depois de nos enfileirar lateralmente com precisão militar, ordenou que arremessássemos o mais longe possível o bastão sem perdê-lo de vista.

-Viram onde seus bastões caíram? Agora, vocês irão buscá-lo. 

Logo em seguida, veio a sua ordem para nos arrastarmos até eles como soldados que evitam arames farpados nas batalhas ou se protegem dos projéteis letais.

Evidentemente não retornávamos para as salas de aula suados e imundos; havia no Visconde de Cairu um banheiro imenso com um encanamento onde estavam acoplados dezenas de chuveiros.

Depois de 40 minutos - as aulas duravam 50 – o professor nos posicionava em fila indiana com um espaçamento em que cada um de nós ficava debaixo do seu chuveiro.

-Um minuto para tirar a roupa. - vinha a ordem.

Apressadamente, arrancávamos o tênis branco e as meias, a camiseta regata branca e o calção preto, com o cuidado de deixar os nossos pertences longe dos respingos d' água.

Os chuveiros eram abertos de uma só vez, enquanto o professor, com voz de sargento, berrava:

-Um minuto para tomar banho.

O fato de não haver sabão, muito menos sabonete – xampu, então, nem conhecíamos – concorria para que o banho fosse rápido; na verdade, tirávamos apenas o suor e a sujeira do corpo, mas voltávamos com a sensação de frescor para as salas para assistir as próximas aulas. O banho era sempre frio.

Eu já residia na casa de vila, na Rua São Gabriel, onde havia, além de chuveiro, uma banheira. Com os ensinamentos do colégio, eu tomava um banho rápido de chuveiro, mas me ensaboando bem.

Um dia, assisti a um filme em que um mafioso ficava horas num banho de imersão na banheira ouvindo discos de ópera. Adolescente, facilmente sugestionado, além de gostar de óperas e de me render ao “glamour” com que Hollywood retratava a máfia, dei para fazer a mesma coisa. Levava para o banheiro uma eletrola portátil com um LP operístico, enchia a banheira d' água, colocava o disco para rodar e me enfia nela. Sem capangas para me ajudar, logo vieram as dificuldades. Respingos de água nos sulcos do LP e fio da eletrola muito esticado por causa da distância da tomada me trouxeram à normalidade.

Voltei ao chuveiro de água fria, às vezes morna e nunca mais pensei nos banhos mafiosos, tão demorados quanto os de Cleópatra, Paulina Bonaparte ou de estrela de cinema, com exceção da Janet Leigh.

 

BLOCOS – Não aconteceu na Rua Cachambi e sim na General Padilha, em São Cristóvão: ouvi as primeiras batucadas. Eu já estava deitado para dormir quando aquele som misterioso chegou a mim. Quis saber da minha avó o que era aquilo; ela me explicou que era um bloco do morro do Tuiuti que tocava.  O morro do Tuiuti para mim, até então, se resumia à Maria, uma negra retinta, viciada em cachaça que, nos momentos de sobriedade, lavava roupa na casa da minha avó e até da minha mãe. Trabalhando lá em casa, pegou-me um dia na saída da escola e foi chamada de cacique pelos moleques por causa dos seus compridos pixains desalinhados.

Talvez a Maria esteja no meio dessa batucada. - devo ter pensado.

Depois, o som da batucada e dos apitos foram crescendo paulatinamente. A minha avó me disse que o bloco descia o morro, passava pela General Padilha e ia até à Rua São Januário.

Aquilo não era barulho para mim, agradava-me aos ouvidos e dormi.

Morando, algum tempo depois, na Rua São Gabriel, o Paulinho Vovô, que regulava com a minha idade, 15 anos – o “Vovô” era por causa dos fios de cabelo brancos que despontavam no seu couro cabeludo – levou-me a um ensaio do Inferno Verde que, depois, se chamaria Acadêmicos do Cachambi. Lá, ficamos próximos da bateria, ele queria essa proximidade e eu, talvez, quisesse mais do que ele.

Em determinado momento, um dos tamborinistas disse que precisava dar uma saída do terreiro e estendeu o braço com o seu tamborim em minha direção; Paulinho Vovô, mais do que depressa, pegou o tamborim, como se a oferta fosse feita a ele, e se juntou aos demais instrumentistas.

Enquanto eu pensava no gesto inútil do meu companheiro, pois eu passaria o instrumento para ele, o maestro, que usa o apito como batuta, apitou alto. Em seguida, todos os instrumentistas silenciaram, menos os cavaquinistas; era a hora do solo deles.

Eu, se lá estivesse, também teria parado, cometendo um erro que me pareceu catastrófico. Paulinho Vovô, já tendo o samba nas veias, não hesitou em momento algum e, no solo, bateu com a vareta no couro com toda a força que possuía.

O bloco saiu às ruas, ele o acompanhou e eu fui para a casa.

 

 

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