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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5034 Data: 26 de janeiro de
2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE IV
BONDE – Havia os lotações, os ônibus, os trens, mas nenhum
transporte coletivo era mais encantador, para mim, do que o bonde.
Com 15 anos de idade, comecei um tratamento
dentário no consultório do meu tio, na Rua do Ouvidor, num prédio colado às
Lojas Americanas e me deslocava do Cachambi até lá de bonde. Eu poderia pegar o
Castelo Inhaúma, o Praça Seca-Tiradentes, o Castelo-Cachambi, dando uma boa
caminhada, o que sempre gostei de fazer, e ir para lá, mas não, eu preferia o
bonde mesmo com a baldeação. Descia a Rua São Gabriel, pegava o bonde 85,
Cachambi, saltava no Méier, próximo à Arquias Cordeiro, atravessava a passarela
para o outro lado e subia o estribo do 77, bonde Piedade.
Para me distrair na viagem, um pouco
demorada, lia “A Tribuna da Imprensa” - eu era lacerdista na época. No
consultório, aguardando o atendimento, a minha leitura passava a ser “O
Cruzeiro”, principalmente as páginas humorísticas, embora não deixasse de ler
mais um capítulo da novela policial protagonizada pelo Leopoldo Heitor, o
advogado do diabo.
Como eu estudava no Visconde de Cairu,
localizado no Méier, eu só trocava o bonde pela “viação canela”. Cortava
caminho pela Rua Basílio de Brito, atravessava a Cachambi, subia a Coração de
Maria (uns dois quilômetros), e alcançava o bairro do meu colégio. Já escrevi,
em alguma página perdida, que transformava o dinheiro das passagens em maços de
cigarro Continental. Mas o costumeiro mesmo era a minha ida até o Cairu de
bonde.
Para nós, que estudávamos lá, era
questão de honra saltar do bonde andando quando ele entrava na Rua Carolina
Méier, porque o caminho a pé para o colégio ficava mais curto.
Como a minha mãe, para a minha
vergonha, me levou ao Cairu até agosto de 1961 – esse mês e ano se imprimiram
na minha memória porque soube por ela da renúncia do Jânio Quadros – cheguei
atrasado na aprendizagem de saltar do bonde andando.
Eu examinava o estilo de cada um pular
fora do elétrico – como o chamam os portugueses – mas não ousava tentar, temia
esborrachar-me no chão.
Em um domingo, fui com meus familiares
à Cidade dos Meninos, em Caxias e entrei num brinquedo giratório. Uma
descoberta. Sair dele, em movimento, era como saltar do bonde andando; assim,
passei a usar esse brinquedo como um simulacro do elétrico dos portugueses.
Depois de muito treinar, considerei-me apto, na ida ao colégio, no dia
seguinte, de superar o meu medo.
O bonde parou perto do Hospital Salgado
Filho e saí do banco para o estribo estreitando no corpo, com um dos braços, a
pasta do material escolar sob umas axilas. Ele se aproximava, agora, da curva
da Carolina Méier e me preparei. Era só abaixar a perna esquerda, deixando que
a sola do sapato raspasse o chão, para largar a barra do bonde e dar uma
corridinha para conciliar o movimento do bonde com o chão estático. Fiz tudo
certo, na teoria, mas caí no asfalto. Um moço se aprestou em me socorrer; eu,
prontamente, me pus de pé e apanhei a minha pasta que, felizmente, não se
abrira. Lembro-me que ele me disse que eu dera sorte, pois o vidro do meu
relógio não se quebrara com a queda.
Na segunda tentativa, fui bem sucedido.
Quando o governador Carlos Lacerda
acabou com os bondes, em 1964, deixei de ser lacerdista.
BOXE – Mais um gosto – paixão é uma palavra muito forte – que
herdei do meu pai: o boxe. Ele ligou o rádio para acompanhar a luta-exibição
entre Archie Moore e Luisão, no Maracanãzinho, lá pelo fim dos anos 50, e eu me
juntei a ele.
O narrador, cujo nome não sei, torcia
alucinadamente pelo boxeador brasileiro como se fosse a decisão mundial do
título dos pesados. Encerrada a luta com um empate – disso eu me recordo
claramente – ele ululava de alegria, dizendo que o público invadia o ringue
para abraçar, beijar e carregar em triunfo o brasileiro.
Antes que eu, garoto, me contagiasse
com aquele clima de patriotismo, meu pai me informou que Archie Moore não
nocauteara o Luisão porque se tratava de uma luta-exibição, o que todos
pareciam ter esquecido. O próprio Luisão se esqueceu – eu soube dias atrás
lendo sobre esse combate na internet.
Empolgado pela gritaria da torcida, Luisão passou a desferir golpes para
derrubar o seu oponente. Archie Moore o chamou, definitivamente, à realidade
com um direto que o fez dobrar os joelhos, em seguida, procurou o “clinch”,
para que ele não fosse à lona. Naquele momento, só os conhecedores do boxe
perceberam o que se passava no ringue.
Enquanto o narrador vibrava com o
empate, meu pai me dizia que Archie Moore estava entre os maiores do boxe,
juntamente com Rocky Marciano, Joe Louis, Sugar Ray Robinson e mais uns poucos.
Ressurgiu a minha atração pelo
pugilismo, quando a televisão entrou no meu mundo, e eu assistia ao “TV Rio
Ringue”, apresentado pelo Luiz Mendes e o Léo Batista. Lá, vi o Luisão
enfrentando o Hiram Lima, pelo título brasileiro, e sendo derrotado. Luisão
terminou como muitos pugilistas, sonado de tantas pancadas na cabeça, e lutando
contra adversários imaginários para os pobres coitados, como ele, rirem.
O surgimento do Éder Jofre, no início
dos anos 60, me tornou ainda mais aficionado pelas lutas, até eu receber uma
ducha de água gelada, quando, ao ligar o rádio de manhã, soube que ele fora
derrotado no Japão por um tal de Harada. Porém, as façanhas do Cassius Clay, com
a plasticidade dos seus movimentos no ringue, não deixaram a minha atração pela
chamada “nobre arte” esmorecer. Depois dele, o boxe perdeu a graça para mim.
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