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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5038 Data: 31 de janeiro de 2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE VII
BOLA DE GUDE – Havia o pião de madeira; nós o enrolávamos todo na
fieira, com exceção da ponta, depois, sem largar aquele fio, arremessávamos o
pião no solo para que girasse em torno de si mesmo. Os catedráticos ainda
usavam a fieira para fogar o pião para cima, aparando-o com a palma na mão,
onde ele dava os seus últimos giros. Mas era um jogo complicado, se o puxão da
fieira, no momento do arremesso, fosse dado antes do tempo, havia o risco de o
pião voltar de encontro ao jogador, ou de quem estivesse nas proximidades e
provocar ferimentos.
O que mais fazia sucesso, sem a menor
dúvida, na hora do recreio da garotada era o jogo de bola de gude. Era uma disputa
coletiva. Riscava-se no chão um triângulo e, mais adiante, uma linha
supostamente reta. No triângulo, os competidores colocavam o número de bolas de
gude estipulados para o jogo. Em seguida, a bola que seria usada para arrancar
as que se achavam dentro do triângulo e dar a propriedade das mesmas ao chamado
“mirolha” era airada por ele para chegar o mais perto possível da tal suposta
linha reta riscada no chão. Ouviam-se, então, brados ancestrais, cuja origem
ninguém conhecia: “marraio, feridô sou rei”. O significado, porém, todos sabiam; o primeiro
a bradar tinha a vantagem de ter como referência as bolas de gude já
arremessadas e a linha, pois seria o último no arremesso.
Quando a bola, que tinha a função de
arrancar as que estavam no triângulo, era uma bilha (toda de ferro), havia
comentários de admiração dos espectadores e resmungos de apreensão dos
concorrentes. Quanto maior fosse a bilha, mas temor o seu dono provocava. Ela,
algumas vezes, não trazia vantagem, pois um teco, ou seja, o choque dela com as
frágeis bolas de gude do triângulo, partia algumas ao meio. No entanto, para
tirar um monte delas do riscado numa só tacada, a bilha era de grande
eficiência.
Os meninos sagazes, competidores ou
não, tinham que estar sob vigilância; usando sapatos de solas com sulcos
profundos, pisavam disfarçadamente no triângulo e carregavam consigo algumas
bolas no calçado.
Pior eram os desordeiros, os alunos
mais truculentos, aqueles que repetiam a mesma série por três anos seguidos
até. Eles se aproximavam do jogo de bola de gude gritando “apagou a luz”;
depois, recolhiam todas as bolas do triângulo, metiam-nas nos bolsos e iam
embora como se nada tivesse acontecido. O risco de sofrer menos perdas seria
jogar búlica, três buracos cavados no chão onde cada um procurava acertar com a
sua bola de gude. Mas não tinha a mesma graça.
No ginásio, o que predominava eram as
partidas de pingue-pongue, com as improvisações mais bizarras possíveis, pois,
no Visconde de Cairu, só havia uma mesa oficial, sempre ocupada pelos veteranos.
Havendo duas raquetes e uma bolinha de pingue pongue tudo era possível.
Colocava-se tocos de madeira, à guisa de rede, atravessado no meio de bancos de
concreto, e pronto: disputava-se uma partida como se fosse numa olimpíada.
As bolas de gude para nós,
adolescentes, já não tinham a mesma atração do nosso tempo de criança.
LIXEIRO – Grite “a galinha comeu”, quando a carroça do lixeiro passar.
- instigava-me o Fernando, o vizinho espanhol. Gritei “a galinha comeu”, e a
reação me chegou em menos de um segundo: “sua mãe lambeu”.
Fernando gargalhou gostosamente.
Bem pior do que o fedor daquela
montoeira de lixo acumulada na carroça era ver o sofrimento das parelhas de
burro que a puxava sob chicotadas sempre e, muitas vezes, sob uma canícula de
derreter os paralelepípedos.
Dizer que o filho seria lixeiro, quando
crescesse, era, na época, a grande ameaça dos pais aos filhos avessos aos
estudos; os mais radicais diziam que eles puxariam carroça. Esta segunda ameaça
ainda subsiste, a primeira não, pois temos visto até candidatos com terceiro
grau na prova de admissão à COMLURB.
Como não caí mais na armadilha do
vizinho espanhol, evitando, assim, xingamentos à minha mãe, eu chegava a trocar
algumas palavras com os trabalhadores que recolhiam o lixo do prédio onde eu
morava. Um deles me falou que uma senhora, levando o filho para a escola,
apontou-o para o garoto e lhe disse: “Se você não estudar vai acabar como ele.”
E desabafou comigo a indignação que carregava dentro de si: “O que ela pensa
que eu sou?!”
Com a motorização do transporte de lixo
determinada pelo governador Carlos Lacerda, o sofrimento dos pobres burros
acabou ou quase isso. Não é aconselhável ser incisivo nesse ponto, pois sempre
me vem à mente uma crônica do Machado de Assis em que ele narra a conversa de
dois burros quando os bondes deixavam de ser puxados por eles e passavam a
movidos a eletricidade. O burro pessimista era o que estava com a razão.
PALESTRADOR – falar em público, no tablado dos professores, é um
tormento para mim até hoje.
Eu cursava a segunda ou terceira série
ginasial quando fui incumbido pelo professor de decorar um texto do livro de
português e comentá-lo diante de toda a turma.
Tratava-se da história de um avarento,
que o autor, para mostrar que o seu vocabulário não era pobre, também chamava
de avaro, sovina, pão-duro, unha de fome.
Diante da turma, eu dizia “ávaro” em
vez de avaro, transformando uma palavra paroxítona, pela norma culta do idioma,
em proparoxítona, mas o professor, em momento algum me corrigiu, ele era a
única pessoa impassível naquela sala.
Então, eu notei que toda a turma ria,
enquanto eu falava. Riam de quê? Eles não sabiam que o certo é avaro, e não
“ávaro” - eram tão ignorantes quanto eu. Mas as risadas não paravam deixando-me
ainda mais nervoso. Apesar do meu estado anormal, percebi a razão daqueles
risos: um tique-nervoso tomara conta de mim; eu não conseguia articular uma
frase sem passar a mão pelo nariz.
Não venci, como deixei assinalado
acima, essa inibição até hoje. No entanto, meses depois desse fiasco, o
professor de Francês me incumbiu de decorar um poema na língua de Voltaire e
recitá-lo de cor. Não havia, dessa vez, a obrigação de ir para o lugar do
mestre e encarar toda a turma. Bastava-me erguer da cadeira, no momento em que
eu fosse nomeado, e recitar.
De pé, encostado na minha carteira,
sentindo o contato dela no meu corpo, tranquilizei-me e não me saí mal; ganhei
uma nota 8.
Quanto àquela, digamos palestra do
“ávaro”, não foi julgada por nota. Graças a Deus.
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