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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

2788 - Monumental Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5038                                    Data: 31  de  janeiro de 2014

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE VII

 

BOLA DE GUDE – Havia o pião de madeira; nós o enrolávamos todo na fieira, com exceção da ponta, depois, sem largar aquele fio, arremessávamos o pião no solo para que girasse em torno de si mesmo. Os catedráticos ainda usavam a fieira para fogar o pião para cima, aparando-o com a palma na mão, onde ele dava os seus últimos giros. Mas era um jogo complicado, se o puxão da fieira, no momento do arremesso, fosse dado antes do tempo, havia o risco de o pião voltar de encontro ao jogador, ou de quem estivesse nas proximidades e provocar ferimentos.

O que mais fazia sucesso, sem a menor dúvida, na hora do recreio da garotada era o jogo de bola de gude. Era uma disputa coletiva. Riscava-se no chão um triângulo e, mais adiante, uma linha supostamente reta. No triângulo, os competidores colocavam o número de bolas de gude estipulados para o jogo. Em seguida, a bola que seria usada para arrancar as que se achavam dentro do triângulo e dar a propriedade das mesmas ao chamado “mirolha” era airada por ele para chegar o mais perto possível da tal suposta linha reta riscada no chão. Ouviam-se, então, brados ancestrais, cuja origem ninguém conhecia: “marraio, feridô sou rei”.  O significado, porém, todos sabiam; o primeiro a bradar tinha a vantagem de ter como referência as bolas de gude já arremessadas e a linha, pois seria o último no arremesso.

Quando a bola, que tinha a função de arrancar as que estavam no triângulo, era uma bilha (toda de ferro), havia comentários de admiração dos espectadores e resmungos de apreensão dos concorrentes. Quanto maior fosse a bilha, mas temor o seu dono provocava. Ela, algumas vezes, não trazia vantagem, pois um teco, ou seja, o choque dela com as frágeis bolas de gude do triângulo, partia algumas ao meio. No entanto, para tirar um monte delas do riscado numa só tacada, a bilha era de grande eficiência.

Os meninos sagazes, competidores ou não, tinham que estar sob vigilância; usando sapatos de solas com sulcos profundos, pisavam disfarçadamente no triângulo e carregavam consigo algumas bolas no calçado.

Pior eram os desordeiros, os alunos mais truculentos, aqueles que repetiam a mesma série por três anos seguidos até. Eles se aproximavam do jogo de bola de gude gritando “apagou a luz”; depois, recolhiam todas as bolas do triângulo, metiam-nas nos bolsos e iam embora como se nada tivesse acontecido. O risco de sofrer menos perdas seria jogar búlica, três buracos cavados no chão onde cada um procurava acertar com a sua bola de gude. Mas não tinha a mesma graça.

No ginásio, o que predominava eram as partidas de pingue-pongue, com as improvisações mais bizarras possíveis, pois, no Visconde de Cairu, só havia uma mesa oficial, sempre ocupada pelos veteranos. Havendo duas raquetes e uma bolinha de pingue pongue tudo era possível. Colocava-se tocos de madeira, à guisa de rede, atravessado no meio de bancos de concreto, e pronto: disputava-se uma partida como se fosse numa olimpíada.

As bolas de gude para nós, adolescentes, já não tinham a mesma atração do nosso tempo de criança.  

 

LIXEIRO – Grite “a galinha comeu”, quando a carroça do lixeiro passar. - instigava-me o Fernando, o vizinho espanhol. Gritei “a galinha comeu”, e a reação me chegou em menos de um segundo: “sua mãe lambeu”.

Fernando gargalhou gostosamente.

Bem pior do que o fedor daquela montoeira de lixo acumulada na carroça era ver o sofrimento das parelhas de burro que a puxava sob chicotadas sempre e, muitas vezes, sob uma canícula de derreter os paralelepípedos.

Dizer que o filho seria lixeiro, quando crescesse, era, na época, a grande ameaça dos pais aos filhos avessos aos estudos; os mais radicais diziam que eles puxariam carroça. Esta segunda ameaça ainda subsiste, a primeira não, pois temos visto até candidatos com terceiro grau na prova de admissão à COMLURB.

Como não caí mais na armadilha do vizinho espanhol, evitando, assim, xingamentos à minha mãe, eu chegava a trocar algumas palavras com os trabalhadores que recolhiam o lixo do prédio onde eu morava. Um deles me falou que uma senhora, levando o filho para a escola, apontou-o para o garoto e lhe disse: “Se você não estudar vai acabar como ele.” E desabafou comigo a indignação que carregava dentro de si: “O que ela pensa que eu sou?!”

Com a motorização do transporte de lixo determinada pelo governador Carlos Lacerda, o sofrimento dos pobres burros acabou ou quase isso. Não é aconselhável ser incisivo nesse ponto, pois sempre me vem à mente uma crônica do Machado de Assis em que ele narra a conversa de dois burros quando os bondes deixavam de ser puxados por eles e passavam a movidos a eletricidade. O burro pessimista era o que estava com a razão.

 

PALESTRADOR – falar em público, no tablado dos professores, é um tormento para mim até hoje.

Eu cursava a segunda ou terceira série ginasial quando fui incumbido pelo professor de decorar um texto do livro de português e comentá-lo diante de toda a turma.

Tratava-se da história de um avarento, que o autor, para mostrar que o seu vocabulário não era pobre, também chamava de avaro, sovina, pão-duro, unha de fome.

Diante da turma, eu dizia “ávaro” em vez de avaro, transformando uma palavra paroxítona, pela norma culta do idioma, em proparoxítona, mas o professor, em momento algum me corrigiu, ele era a única pessoa impassível naquela sala.

Então, eu notei que toda a turma ria, enquanto eu falava. Riam de quê? Eles não sabiam que o certo é avaro, e não “ávaro” - eram tão ignorantes quanto eu. Mas as risadas não paravam deixando-me ainda mais nervoso. Apesar do meu estado anormal, percebi a razão daqueles risos: um tique-nervoso tomara conta de mim; eu não conseguia articular uma frase sem passar a mão pelo nariz.

Não venci, como deixei assinalado acima, essa inibição até hoje. No entanto, meses depois desse fiasco, o professor de Francês me incumbiu de decorar um poema na língua de Voltaire e recitá-lo de cor. Não havia, dessa vez, a obrigação de ir para o lugar do mestre e encarar toda a turma. Bastava-me erguer da cadeira, no momento em que eu fosse nomeado, e recitar.

De pé, encostado na minha carteira, sentindo o contato dela no meu corpo, tranquilizei-me e não me saí mal; ganhei uma nota 8.

Quanto àquela, digamos palestra do “ávaro”, não foi julgada por nota. Graças a Deus.

 

 

 

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