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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5035 Data: 27 de janeiro de
2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE V
BIGODE – Eu queria saltar a fase da adolescência, passar logo
de criança para adulto. Assim, pretendia ter costeletas; a era do rock já
começara, e eu sonhava em ter as costeletas do Elvis Presley, ou de outro
artista menos cotado.
Topete eu consegui com os ensinamentos
do Fernando, o vizinho espanhol, que era uns três anos mais velho do que eu.
Orientou-me a molhar bem o cabelo, misturando água com Gumex e, depois, pentear
tudo par trás bem esticado; feito isso, como se eu fosse escrever um “C” com o
pente, puxar a mecha sobre a testa. Ele, portador de uma vasta cabeleira,
conseguia um topete razoável, mas o meu era sofrível, talvez porque não
houvesse nenhuma goma para passar nos cabelos, muito menos Gumex. Mas não me
dei por vencido.
Eu desejava adiantar o meu tempo, ter
barba com quinze anos de idade e dela, com uma meticulosidade de ourives,
formar costeletas. Nessa idade, eu já
acompanhava fixamente os pelos que nasciam sobre os meus lábios; era um buço em
formação, mas, para mim, um bigode que deveria brotar em toda a sua pujança.
Na época, eu lia “A Vingança do Judeu”,
romance indicado por minha mãe, que se dizia católica, mas se sentia atraída
pelo espiritismo. Por que digo isso? Porque nem a leitura me distraía da ideia
fixa de ser hirsuto, de possuir barba. No entanto, mirava-me no espelho e nada
de o buço se transformar em bigode. Eu
ouvi, não sei onde, que os pelos, quando raspados, seja de qualquer parte do
corpo, brotavam revigorados e rapidamente. Não tive dúvidas e tratei de
apressar a minha natureza pelas próprias mãos; com a lâmina Gillette e o
barbeador do meu pai, raspei aqueles diminutos fiapos.
Concluída a minha obra, olhei-me com
toda atenção no espelho. Foi uma decepção, eu nunca me enxerguei tão horroroso,
tampei a minha obra com a mão. Mas eu não poderia ficar o dia todo com a palma
da mão sobre o nariz e o queixo, escondendo o que julgava uma imperfeição.
Lopo, o mu irmão mais novo, logo me perguntou
se eu raspara o “bigode”, prova de que eu penaria por alguns dias.
Naquele tempo, a vizinha do lado, do
apartamento 102, era a Dona Iolanda; irascível, brigou com todo o prédio, com
exceção da minha mãe, partidária da política da boa vizinhança. Um dia, minha
irmã perguntou a ela a idade, respondeu que estava com vinte e seis anos. Eu,
que ainda não perdera a sinceridade das crianças, disse-lhe que ela parecia ter
bem mais. No meu aniversário, ela se
vingou exemplarmente: deu-me de presente um aparelho de barbear.
Será que ela notou meu buço raspado?
Transcorreram os anos e, para a minha
decepção, eu tinha apenas alguns fiapos à guisa de bigode. Meus amigos mais
gozadores afirmavam que o meu bigode era um jogo de futebol de salão: cinco
fiapos para cada lado. Não importa: mantive os fiapos e suportei as gozações
que foram duradouras.
Por ironia, sou, capilarmente falando,
quase um índio de rosto glabro, minha barba é cheia de falhas. Costeletas eu só
teria se as pintasse, o que só seria pertinente no teatro, no circo ou no
cinema.
Quanto ao meu bigode, veio, anos depois
daquela raspagem, a primeira e a última, tamanho o meu trauma.
CABELO – Já escrevi sobre o bigode e, a reboque, da barba.
Tem de vir, agora, o cabelo. Como os Três Mosqueteiros, eles não podem ser
apartados.
Meu pai sempre dizia “barba, cabelo,
bigode”, quando se referia aos jogos de futebol, principalmente, quando o
Fluminense derrotava o mesmo adversário nos campeonatos de juvenil, aspirantes
e profissionais. Quando o Botafogo perdia nessas três categorias de qualquer
clube, ele, inconformado de eu ter virado casaca com a perda do campeonato
carioca de 1957, gozava-me dizendo que fizeram barba, cabelo e bigode no clube
da Estrela Solitária.
Acabaram os certames de aspirantes e os
juvenis se transformaram em sub 16, sub 18 e sub 20, mas essa expressão não
caiu no ostracismo, foi remodelada. Se o Flamengo, por exemplo, vencer o Vasco
no futebol, no remo e no jogo de botão, logo os flamenguistas dirão que fizeram
barba, cabelo e bigode no rival de São Januário.
Como essas três operações das
barbearias estão interligadas, tenho de tratar, agora, do cabelo.
A primeira barbearia das minhas
reminiscências ficava na Rua Honório a uns dez metros da Rua Cachambi, talvez
mais, talvez menos. Minha mãe levava os três filhos para lá e determinava que o
meu corte fosse a reco, o do Lopo, a cadete, e o do Claudio, que possuía fartos
cabelos em cachos, elogiados por parentes e vizinhas, apenas as pontas eram
aparadas.
Hoje, quando revisito as fotografias de
meados da década de 50, concluo que bem pior do que meu corte a reco, era o a
cadete do nosso irmão mais novo.
Do corte a reco, passei, sempre sob o
gosto da minha mãe, para o corte a Príncipe Danilo. Por que Príncipe Danilo?...
Nunca perguntei; anos depois, enfronhado em assuntos de futebol, deduzi que o
nome era uma homenagem ao Danilo Alvim, craque do Expresso da Vitória do Vasco
da Gama e da seleção brasileira, que recebera o cognome de príncipe do locutor
Oduvaldo Cozzi.
À cadete, para os mais jovens, era um
corte semelhante ao do Ronaldo Fenômeno, quando disputou os últimos jogos da
Copa do Mundo de 2002. Depois de algumas olhadas no espelho, ele reconheceu que
a cabeça inteiramente raspada se achava menos distante dos padrões de beleza.
Meus amigos mais velhos me informaram
que pediam ao barbeiro, antes de ele vir com a tesoura e o pente nas mãos, o
corte meia-cabeleira. E este foi o meu grito de independência, capilarmente
falando, quando fui ao barbeiro sozinho, sem a companhia da minha mãe:
meia-cabeleira.
Havia alguma diferença entre o corte a
Príncipe Danilo e o a meia- cabeleira? Não sei até os dias atuais, mas sempre
solicitava o segundo.
Hoje, a minha cisma é a erosão capilar que se instalou no meu cocuruto.
Todas as vezes que vou ao barbeiro – o mesmo há mais de vinte anos – pergunto
se ela aumentou. O corte de cabelo ficou relegado ao segundo plano.
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