-------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5047 Data: 15 de fevereiro de 2015
-----------------------------------------------
MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE X
CACHORROS (03) – O fusca do Luca, ano 1973, foi também uma espécie de
ambulância para a cachorrada lá de casa. Banzé, cuja saúde frágil se evidenciou
quando ele era ainda novo, obrigou a minha mãe a requisitar, por diversas
vezes, o carro do nosso amigo para levá-lo ao médico veterinário Moisés Frimer.
Certa vez, o Luca não estava disponível
e eu carreguei o Banzé nos braços, com algum esforço, por boa parte da Rua
Chaves Pinheiro, fato esse que agitou todos os quadrúpedes em prisão domiciliar
– para citar uma expressão hoje na moda – que latiram, ao vê-lo,
ensandecidamente.
Com a morte do Banzé, como já escrevi
anteriormente, o Pipi passou a ser o xodó da minha mãe. Ele era mais saudável
do que o pai, porém, o Luca, com a sua paciência bíblica, o carregou, vez ou
outra, no seu fusca até o Frimer. Levá-lo eu, no colo, pela Chaves Pinheiro,
como fizera com o Banzé, era uma hipótese inviável, haja vista a antipatia quase
ódio que tomou por mim de uma hora para outra,
Silveira, o mais saudável de todos –
talvez a temporada num terreiro de macumba o tenha fortalecido – continuava
mordendo os transeuntes incautos, apesar das nossas broncas. Porém, quando
recebíamos, em casa, visitas, ele não se mostrava hostil, sendo amigos nossos,
respeitava. Do mesmo modo, agiam os demais cachorros, embora a Sapeca tenha
sido uma exceção.
Certo dia, uma das nossas primas,
recém-casada, nos visitou com o marido. Nós o alertamos para não dar muita
confiança à Sapeca, que era dissimulada, mas ele insistiu em paparicá-la.
-”Olha, meu bem: a Sapeca é minha
amiguinha” - disse ele para a esposa.
Encerrada a visita, foi mordido por ela na saída. O Big, não contei no
momento oportuno, mas aqui vai, também tinha essa mania de avançar sobre os
visitantes no momento de eles irem embora, mas não provocou estragos porque
ficava confinado no quintal, o que não acontecia com a Sapeca e os demais, que
tinham trânsito livre pela casa.
Sapeca engravidou. Quem era o pai
incestuoso? Nunca soubemos, muitos foram os suspeitos. Toda a sua ninhada, no
entanto, não vingou, todos nasceram mortos.
Nesse ínterim, uma senhora passou a ir
lá em casa, anualmente, para vacinar os nossos animais de estimação contra a raiva. Quem a indicou? A minha memória falha, mas
não consultarei a minha mãe para sabê-lo porque não quero despertar-lhe tristes
recordações.
O ano foi 1977, eu trabalhava no Jornal
do Brasil, quando a cinomose, provocada pela agulha infectada da vacina contra
a raiva, começou a dizimar nossos bichinhos um por um.
Nessa época, meu pai ficava mais tempo
em casa, já superara o período em que o trabalho em jornais o prendia por
muitas horas, assim, acompanhou o veterinário sacrificando o Pipi, a Sapeca e o
Manolo. Minha mãe, sem estrutura emocional para presenciar aquela tragédia,
afastou-se, ficando toda a carga com ele.
-”Se eu não tivesse compromissos com
todos vocês, eu iria atrás dessa filha da puta e acabava com ela. - disse-me o
meu pai com o cigarro fumegante quase caindo dos seus lábios trêmulos.
Silveira
ainda resistia e o meu pai indagou do veterinário se poderia ser salvo; ele
respondeu que, talvez com três doses de vacina, ele escapasse, mas não garantia
nada. No meu íntimo, duvidei, pois vira o Silveira lambendo o pelo do Manolo,
que seria sacrificado poucos dias depois, por mais de um minuto.
Bem, lá foram o Lopo e o eternamente
prestativo Luca, no seu inseparável fusquinha, por três vezes a uma clínica
veterinária com o Silveira. Ele escapou, apenas um leve tremor nas mandíbulas,
quando abria a boca, foi a sequela que restou.
Como único sobrevivente, a paixão da
minha mãe por ele cresceu exponencialmente, a do meu pai também.
Minha mãe tratou de trazer um
veterinário, o Doutor Jorge, que examinava periodicamente o nosso sobrevivente
na Rua Chaves Pinheiro. Numa das suas primeiras visitas, mostrou-se curioso
sobre o porquê de ele ter sido batizado de Silveira.
-É porque é magricela como aquele
jogador do Fluminense.
Ele discordou prontamente, orientando-nos
a apalpar as nádegas do Silveira; feito isso, constataríamos que aquilo era
puro músculo, que ele nada tinha de pele e osso, estava bem distante
disso. Nosso cachorro era extremamente
musculoso, o que explica, até certo ponto, as muitas mordidas que já dera com
seus saltos acrobáticos.
Quando nos mudamos da casa da Rua
Chaves Pinheiro para o apartamento da Avenida Suburbana, Silveira perdeu o
espaço para seus movimentos e pulos e engordou. Envelheceu e não procurava mais
ninguém para morder.
Todos os dias, por volta das 5h 30 min
da manhã, meu pai saía com ele na coleira e os dois davam longas caminhadas
pelo canteiro que dividia as duas pistas da Avenida Suburbana. Certa vez, meu pai chegou transtornado desses
passeios: um carro capotara e por muito pouco não pegava os dois em cheio.
Quando restabeleceu a calma, concluímos que o Silveira, por ter passado um
estágio num terreiro de umbanda, ficou com o corpo fechado.
Nesse ínterim, meu pai comprou um
apartamento em Del Castilho, mas ficou estabelecida uma cláusula pétrea: só nos
mudaríamos para lá depois da morte do Silveira.
Os filhos todos casaram e, como eu era
a exceção, fiquei com os meus pais morando na Suburbana. Éramos agora quatro.
Com 16 anos de idade, Silveira caiu
doente e o Doutor Jorge não deu esperanças.
Silveira ficou num canto, sobre páginas
de jornais e dali não tinha força para se levantar. Mal tocava na comida e na
cumbuca d' água que meus pais lhe traziam.
Numa madrugada, fui acordado pelo meu
pai, que entrou no meu quarto chorando copiosamente. Soube, então, que o
Silveira, depois de dias de prostração, se erguera, caminhou até a cama dos
meus pais e, junto a eles, morreu. Esse
último ato do nosso cachorro aniquilou emocionalmente o meu pai e a minha mãe.
Mudamo-nos, então, para o apartamento
de Del Castilho. Silveira foi o nosso último cachorro, ninguém mais poderia
substitui-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário