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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5043 Data: 08 de fevereiro de
2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE IX
CACHORROS (O2) – Morreu o Big sem cruzar com uma fêmea, e ficou o
Veludo sozinho, já entrando na terceira idade canina.
Como um animal de estimação, apenas, não
bastava à minha mãe, que era uma discípula de São Francisco de Assis, ela
mostrou interesse em preencher a lacuna deixada pelo cachorro que nos
acompanhou por três casas.
Dona Lurdes, vizinha do outro lado da
rua Chaves Pinheiro, esposa do Seu Válter, que me chamava de “Mexicano”, talvez
porque o meu bigode se assemelhasse ao do Cantinflas, informou que tinha uma
cadela disponível para doação. A minha mãe se interessou e a trouxe nos braços,
porque ainda era filhote, para a nossa casa.
O nome?... Tornou-se comum, hoje,
cachorros com nome de gente, mas naquela época não era assim, havia muitos
Nero, é verdade, uma das poucas exceções (E Nero, o imperador, foi ser
humano?...).
Minha mãe, com a aprovação do meu pai,
resolveu que o nome da nova moradora seria de uma ópera. Ela gostava mais da
“Manon Lescaut” de Puccini do que da “Manon” de Massenet, mas, para uma cadela,
preferiu a do compositor francês; também pesou o fato de nome e sobrenome para
um quadrúpede ser um exagero – até hoje não ousaram tanto.
Manon era, como o Veludo, de pelo negro
do primeiro fio da cabeça ao último da cauda, e também era bem menos encorpada
do que ele. O nome que melhor espelharia
a recém-chegada, sem sair do mundo operístico, seria “Mignon” devido ao seu
tamanho diminuto, não à personagem de Goethe transformada em ópera.
Veludo tinha, agora, uma fêmea ao seu
alcance, mas não se portou como um pedófilo: esperou que ela crescesse. A infinita tranquilidade do Veludo, que se
tornava ainda mais relevante quando o comparamos com o Big, talvez fosse a
espera por uma companheira que lhe estava destinada. Ele conseguiu um feito que
deixaria o incrível Big invejoso: cruzou com uma cachorra.
Apesar de ser um cão idoso, foi fértil.
Dos filhotes, minha mãe só ficou com dois, que foram chamados de Sapeca e de
Banzé, este obviamente inspirado no filme “A Dama e o Vagabundo”, além das
histórias em quadrinho.
Veludo, cumprida a sua missão de
reprodutor da espécie canina, cerrou os olhos para sempre deixando-nos tristes,
pois era muito querido.
Manon, por seu lado, era uma esfaimada.
Lembro o osso de carré que arremessei para ela roer, durante uns quinze
minutos, pelo menos, qual o que, ela o engoliu no ar sem sentir o seu gosto.
Espantei-me com aquela ganância que nunca vira na Totó, no Big e, muito menos,
no Veludo.
Todos que tiveram cachorros no quintal
sabem que atos como os de Jocasta e Édipo não se tornam tragédias gregas; no
mundo canino são naturais, não se vê cão necessitando de psicanálise. Assim,
Banzé e Manon cruzaram, e nasceu uma ninhada. Meu pai, principalmente, e minha
mãe se assustaram com o número de filhotes, seis machos, e eles foram colocados
à disposição de quem quisesse adotar alguns deles.
Uma colega da minha irmã desde o tempo
em que morávamos na Rua São Gabriel se prontificou a levar o malhado de preto e
branco com uma máscara de Zorro, não para si, mas para uma conhecida sua. Minha
mãe consentiu na doação desde que fosse informada do endereço do novo lar desse
filhote.
Ficaram conosco Don Pixote, Sapeca e
Manolo, este tão negro quanto a mãe e o avô.
Teve saudades dos filhotes que havia
dado? Minha mãe me disse que não, porém, a desconfiança crescia no seu íntimo;
ou seja, o seu sexto sentido lhe dizia que alguma coisa não ia bem com um
deles, por isso, rumou para o tal endereço que a amiga da minha irmã lhe dera
com o Lopo, meu irmão mais novo. Lá, encontraram o filho do Veludo e da Manon,
num cercado de terreiro de macumba, preso num cubículo onde havia pouca água na
cumbuca e um prato com comida de aspecto suspeito. Minha mãe não pensou duas vezes: pediu ao meu
irmão que desamarrasse a corda do cachorro. Ele colocou o bicho no colo e eles
o trouxeram definitivamente para a nossa casa. Nosso mascarado viria a ser o
cachorro mais significativo que tivemos.
Ficou famoso como Silveira, quem
escolheu o nome foi o meu irmão Claudio; argumentou ele que era tão magro
quanto o jogador de meio de campo do Fluminense, em meados dos anos 70, de
potente chute, e ninguém discordou, dizendo que Zorro lhe cairia melhor.
Tínhamos agora, pela primeira vez,
vários cachorros em casa. O quase canil ficou, assim, difícil de administrar.
Mãe e filha se odiavam, por isso, Manon e Sapeca não podiam conviver no mesmo
espaço. Se bobeássemos, deixando um buraco na fronteira estabelecida entre as
duas, elas se atracavam, e separá-las, requeria, no mínimo, dois de nós.
Manolo tinha o gênio do avô:
contemplativo sem ações arrojadas.
Dom Pixote crescia enquanto o seu nome
encurtava, ficou “Pipi”.
Silveira continuava aparentemente
magro. Apesar do contato quase nenhum com a rua, apenas umas brechas a guisa de
ornamento na parte superior do muro e a parte de cima do portão, ele deu de
morder os pedestres que passavam distraidamente pela calçada, ou se encostando
no muro à espera do ônibus – o ponto fica a poucos metros da nossa casa. De emboscada,
Silveira, ouvia passos e, com a sua audição apuradíssima, sabia qual era o
momento exato em que a vítima estava ao alcance dos seus dentes, saltando com
uma agilidade felina sobre ela. Tudo bem sincronizado. Quando reclamavam,
argumentávamos que ele se achava dentro de casa e informávamos que era
vacinado.
Fizemos uma estatística e chegamos a 17
mordidas dados pelo Slveira nos transeuntes desatentos. Ele, no entanto,
conosco, sempre foi dócil sem se mostrar um cão carente que se desmancha com
cafunés.
Manon não viveu muito, pegou uma
infecção ou outra doença – não sei até hoje porque um veterinário não foi
chamado – e se foi.
Enquanto isso, a minha mãe se apegava
ao Banzé. Ela, com a morte do Fluminense – falaremos dele no vocábulo gato –
transferiu grande parte do seu amor pelos animais para ele. Banzé, no entanto,
não viveu muitos anos, e o xodó da mamãe passou a ser o Pipi.
Pipi, que sempre foi um dos meus
melhores amigos, não sei por que cargas d' água, passou a me hostilizar. Eu não
podia me aproximar dele que arreganhava todos os dentes e rosnava. Por quê?...
Anos depois, inferi que fosse por ciúmes da minha mãe. Os cachorros também
podem ser ciumentos como Otelo.
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