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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5050 Data: 18 de fevereiro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XII
CORAGEM – Quando necessito de coragem para alcançar algum
propósito, reporto-me aos soldados que desembarcaram na Normandia no dia 6 de
junho de 1944. Com pais e namoradas
distantes, tendo de enfrentar a força da natureza – ventos e ondas do oceano –
e a assustadora máquina de guerra nazista, aqueles rapazes seguiram em frente,
mesmo sabendo que a probabilidade de seus corpos boiarem sem vida no mar era
grande.
Quando elogiam a minha coragem, por
exemplo, porque cheguei ao trabalho no meio de um daqueles temporais do Rio de
Janeiro, eu penso que isso foi apenas uma gotícula comparada com a bravura dos
aliados no desembarque da Normandia. (*)
GUERRA – Desde criança, eu me sentia atraído pela guerra,
certamente porque nunca vivi uma.
Minha mãe me falava dos treinamentos de
guerra que havia depois de o Brasil se juntar aos aliados na Segunda Guerra
Mundial. Um dia, estando ela com a irmã mais nova num bairro do subúrbio, soou
a estridente sirene e veio, em seguida, o apagão, mas não apareceu um só avião
da Luftwaffe nos céus, ainda assim, as duas se viram em palpos de aranha em
busca de um abrigo.
Eram netas de um coronel que lutou na
Guerra do Paraguai. O gem bélico, não passou para toda a família. O filho da
minha tia-avó foi convocado para lutar no solo italiano na Força Expedicionária
Brasileira e a sua mãe entrou em desespero. Ela pegou a minha mãe, então com 17
anos de idade, e as duas foram ao quartel de convocação dos soldados. Lá –
conta a minha mãe – minha avó rogou, aos prantos, que tirassem o seu filho da
relação dos combatentes. O oficial argumentou que ela era filha de um herói da
Guerra do Paraguai – não fez menção alguma à pensão que ela recebia do pai – e
que ele se mostraria tão valoroso quanto o avô no campo de batalha.
Retornou vivo, mas, segundo meu pai,
também primo dele (todos eram primos), ficou tão abalado que veio, mais tarde,
a sofrer do coração, durando bem menos do que a sua aflita mãe, que passou dos
90 anos de idade e viu o filho morto.
Quando eu morava no prédio de
apartamentos da Rua Cachambi de dois andares, havia um ex-combatente no 201.
Lá, viviam umas dez pessoas, a porta ficava escancarada e nós entrávamos e
saíamos do apartamento à vontade.
Sem me dirigir a ele, eu o observava
disfarçando a minha curiosidade. Taciturno, estava sempre sentado à mesa de
jantar desenhando figuras em papéis que ele mesmo quadriculava com régua, lápis
e borracha. A sua genitora afirmava que, naquela especialidade, ele era um dos
maiores do Brasil e eu, que nada entendia daquilo, acreditava.
O sobrinho do ex-expedicionário, que
regulava com a minha idade, 11, 12 anos de idade, me contava que, às vezes, ele
se via no meio da guerra, gritando que estava sob ataque de aviões alemães e
procurava abrigo.
-Meu tio é neurótico de guerra. -
cochichou-me.
Como nunca testemunhei uma dessas
crises, permaneci cativado pela guerra. Os filmes de Hollywood só vieram
sedimentar ainda mais essa atração. Às vezes, eu até revia os filmes; os atos
de heroísmo requentados ainda desciam bem pela minha goela abaixo.
Certa vez, Dona Maria, a mãe do
Fernando, o vizinho espanhol, e a minha estavam dubitativas em assistir ao
filme em cartaz no Cine Cachambi. Eu, que já assistira à fita, disse-lhes, com
entusiasmo, que a fita era muito boa. Fomos os três ao cinema. A guerra
acontecia no extremo oriente, só não tenho certeza se era na Coreia. As duas,
no meio da fita, já demonstravam desagrado e resmungavam com o que se passava
na tela. Veio, então, uma cena em que o herói (seria o James Stewart?...) impaciente,
na fila do rancho, com o cozinheiro que conversava displicentemente, bateu com
a frigideira umas duas ou três vezes, no balcão. Elas riram, tive esperança que passassem a
gostar do filme. Nada. Voltei para casa com as duas me espinafrando por lhe
indicar um filme tão ruim.
Além do cinema e dos livros, eu juntava
fascículos sobre a Segunda Guerra Mundial, ou melhor, um amigo meu, o doutor
Pirulito, juntava. Ele, depois de se
tornar médico, entrou para o Exército, mas isso não vem ao caso, não são as
memórias dele que estou pondo no papel. O doutor Pirulito recebe um ultimatum:
aquela coleção já estava atravancando os espaços da casa, teria, então, de
jogar tudo aquilo no lixo. Herdei dele
as dezenas de fascículos com instigantes textos e gravuras elucidativas.
Veio a Guerra do Vietnã. As cenas
terríveis transmitidas pela televisão, praticamente ao vivo, as fotografias que
nos chegavam praticamente no momento em que a crueldade era consumada,
arrancaram de mim o “glamour” com que eu sentia a guerra. O interesse
histórico, no entanto, nunca se desfez.
PRATO – Durante a maior parte da minha vida, eu dava mais
valor à satisfação da barriga do que à do paladar. Era gourmand, e não gourmet.
Eu comia até dizer que estava cheio – depois de muitas reprimendas, passei a
dizer satisfeito – e me erguia da mesa.
Eu grudava com farinha de mandioca o
feijão com arroz, observando o meu pai, que chamava toda comida de mangonga,
para que sobre essa argamassa viessem macarrão, ou carne, ou fígado, ou peixe,
ou tripa – assim chamávamos a dobradinha. A galinha era rara, naquela época,
comida de luxo que, ainda por cima, obrigava a minha mãe a matar a ave e
depená-la, o que ela detestava fazer.
Quando me convenceram, anos depois, que
eu comia concreto armado, eliminei a farinha de mandioca do meu prato.
Aprendi também a não engolir logo a
comida para sentir a barriga estufar. Eu tinha de perceber os variados gostos
do que eu comia. Quando larguei no vício do cigarro, com 18 anos de idade, o
meu paladar se tornou mais sensível aos sabores e passei a comer com mais
vagar.
Sempre foi uma grande dificuldade para
mim deixar alguma sobra no prato. Sinto-me estranhamente incomodado quando não
sou capaz de comer tudo o que colocaram no prato. Rebusco na memória, como se
estivesse no divã de um psicanalista, a razão disso, se me obrigavam a raspar o
prato quando era pequerrucho, mas não me vem lembrança alguma.
Agora, as comidas gordurosas e
salgadas, principalmente, ficaram fora do meu cardápio, mas meu prato continua
fundo e, antes das primeiras garfadas, cheio até em cima.
(*) Gotícula,
Temporal, Canal da Mancha, para o Biscoito Molhado, está me parecendo nada
demais.
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