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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5039 Data: 02 de fevereiro de 2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE VIII
CACHORROS (01) – Os cachorros da nossa casa em ordem cronológica
que vai dos meados dos anos 50 aos 90, foram: Totó, Big, Veludo, Manon, Banzé,
Pipi, Manolo, Sapeca e Silveira.
Totó era uma cadela mais ligada à minha
mãe do que a mim e aos meus dois irmãos. Quando aprontávamos alguma arte, minha
mãe gritava: “Totó, vamos pegar as crianças”. As duas corriam atrás de nós pelo
quintal, a Totó se embolava nas nossas pernas e éramos logo alcançados por
minha mãe.
Um dia, nós nos deparamos com um gato
morto no quintal; depois de uma esganiçada luta, Totó a matou, poucos dias
depois, ela morria. Em decorrência desse apavorante acontecimento, todos nós
levamos 17 (não garanto que o número exato seja este) picadas de injeção na
barriga para nos imunizar contra a raiva.
Superado o trauma, tivemos outro
cachorro, o Big, vira-lata de porte médio, macho e com pelo de cor ruça. A semelhança que tinha com a Totó era a acrobacia:
conseguia escalar o muro que dividia o nosso quintal com um terreno baldio e
andar na beirada dele. Eu e meus irmãos só conseguimos chegar à façanha dos
dois vira-latas, o que abria o nosso horizonte de meninos confinados em casa,
quando estávamos próximos dos 10 anos de idade.
Além da raça e do tamanho, essa foi a
única semelhança. Quando a minha mãe gritou: “Big, vamos pegar as crianças”,
ele, ao contrário da Totó, avançou contra a minha mãe, mordendo-lhe a mão. Ela tentou ainda uma vez, mas desistiu; tinha
de bater com o cinto nele para não ser mordida de novo, enquanto nós
escapávamos.
Em vez de a minha mãe se desfazer do
Big – o amor inexcedível que tinha pelos animais a impedia – ela trouxe um
companheiro para o Big, outro vira-lata de porte médio, o Veludo. Ele recebeu
esse nome porque todo o seu pelo era de cor negra. Veludo era sossegado, o
contraponto do Big, nunca subiu no muro e nem tentou. Minha mãe alardeava os
seus feitos de grande vigia, dizendo que, certa vez, afastou, com seus latidos
vigorosos, um homem suspeito que, talvez, forçasse a janela para invadir a
nossa casa.
Enquanto isso, o Big continuava
aprontando; o espaço dos cachorros estava limitado ao quintal, mas o Big, às
vezes, quebrava essa regra. Se visse uma porta aberta, adentrava a casa e se
protegia sob uma poltrona. Minha mãe vinha com a vassoura cutucá-lo para fora
dali e ele reagia rosnando. Arrastava-se a poltrona, o Big ficava sem escudo e
a minha mãe o varria de volta para o quintal.
Andando pelo muro, Big nos avisou
muitas vezes que havia pipa no céu. Participava da nossa ansiedade, minha e dos
meus irmãos, quando as pipas voadas – as que tinham as linhas cortadas por
outras pipas com cerol– caíam nas proximidades. Se corrêssemos atrás da pipa
voada pelo terreno baldio – éramos terminantemente proibidos de fazer isso – o
Big nos acompanharia certamente.
Vivíamos o tempo em que os empregados
dos botequins, com um enorme saco nas costas, iam, semanalmente, de casa em
casa, recolher garrafas vazias de refrigerante e cerveja que eram vendidas sem
o preço do casco incluso. Certa vez, um desses empregados, notando que ainda
havia um pouco de líquido numa dessas garrafas, varejou-o no focinho do Big,
confiando na grade de madeira, no corredor na entrada do prédio, que os
separava. Quando ele veio recolher as
garrafas na semana seguinte, o Big saltou a grade e o pôs para correr com as
garrafas, entrechocando-se no saco às suas costas. Até a minha mãe, sempre
rindo, repercutiu essa façanha do nosso cachorro.
Esse obstáculo foi outra vez vencido
por ele quando o meu irmão Claudio, influenciado pelo Fernando, o vizinho
espanhol, pulou do muro para a rua e pegou, sorrateiramente, a pipa que dois
moleques, sob os olhares dos seus amigos, tiraram, com muito trabalho, de um fio
da Light onde estava embolada. Sucedeu-se uma correria dos diabos que terminou
junto a tal grade. Meu irmão, garantindo-se nos músculos do vizinho espanhol,
negava-se a entregar a pipa. Com gritos e latidos, a confusão foi tamanha que a
minha mãe interveio, ordenando que o Claudio entregasse a pipa ao reclamante.
Nesse exato instante, o Big saltou a grade e deixou a pipa estraçalhada nos
seus dentes. Revoltado, um dos moleques que tirara a pipa do poste com um
bambu, o Otávio Gaguinho, deu um cascudo no meu irmão, sem perda de tempo, o
vizinho espanhol esmurrou o agressor. Dona Maria, a mãe do Fernando, uma
espanhola de sangue quente, também interveio, e os perseguidores se foram.
No final de 1961, tivemos de nos mudar
da Rua Cachambi para a São Gabriel no mesmo bairro. O traslado do Veludo foi
feito sem problemas; quanto ao Big, a minha mãe pediu a colaboração do cunhado,
sargento do Exército. Depois, ela se arrependeu e reagiu com indignação, pois
ele usara a manu militari; levou o Big, de uma casa a outra,
debaixo de pancada.
Na vila da São Gabriel, o horizonte dos
nossos vira-latas diminuiu bastante, o muro onde o Big transitava era menor em
altura – ainda assim, o Veludo nunca tentou escalá-lo – e não dava a visão da
rua.
A maior façanha do Big, na nova casa,
aconteceu no dia em que o Brasil venceu a Tchecoslováquia por 3 a 1,
tornando-se bicampeão do mundo em 1962. Os foguetes espocaram e os balões
subiram às nuvens; um deles perdeu força e começou a cair. Toda a vizinhança
ficou atenta, pois tudo levava a crer que ele cairia no meio da vila. Big
estava também atento. Quando o balão estava a poucos metros do chão, entrou
vila adentro gente de todos os lugares. “Ninguém tasca” – foi o brado que deram
para conter os mais impetuosos. Mas o Big tascou. Saltando do muro para fora da
casa, ele disparou em direção do balão e só não fez com o balão o que havia
feito com a pipa, anos antes, porque o tamanho daquele era bem maior.
Quando nos mudamos da Rua São Gabriel
para a Chaves Pinheiro, a minha mãe se incumbiu de ela própria fazer a mudança
do Big. Não queria a repetição daquela maldade. A minha mãe recorreu a uma
artimanha: amarrou um pedaço de carne no barbante e o puxava sempre que o Big
se aproximava para abocanhá-lo direcionando-o para a nova casa. É verdade que
ele já sentia o peso dos anos, não tinha a mesma ligeireza de antes, se não a
dificuldade da minha mãe seria bem maior.
Na Rua Chaves Pinheiro, o horizonte dos
cachorros ficou ainda menor; o muro não tinha espaço para patas e um portão,
relativamente alto, escondia a rua. Mesmo assim, numa noite de festa junina,
Big conseguiu escapar para rua, correr uns 50 metros e latir incessantemente
para o fogo de uma bucha de balão que queimara.
Trazido de volta para casa, provocava
comentários de espanto dos vizinhos por ser um cão que não temia o fogo.
Morreu sem cruzar com uma fêmea; coube
ao Veludo aumentar o número de cachorros lá de casa, depois que a minha mãe
adotou a Manon.
Décadas depois, numa festa, uma tia
minha me contou que trouxe o Big até nós, ainda filhote, logo depois da morte
da Totó, para doá-lo e que antes de a minha mãe se decidir, eu o agarrei e
disse: “Ele é meu”. Senti-me transbordante de orgulhoso quando soube disso.
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