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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

2789 - Ultracanino Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5039                                    Data: 02  de  fevereiro de 2014

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE VIII

 

CACHORROS (01) – Os cachorros da nossa casa em ordem cronológica que vai dos meados dos anos 50 aos 90, foram: Totó, Big, Veludo, Manon, Banzé, Pipi, Manolo, Sapeca e Silveira.

Totó era uma cadela mais ligada à minha mãe do que a mim e aos meus dois irmãos. Quando aprontávamos alguma arte, minha mãe gritava: “Totó, vamos pegar as crianças”. As duas corriam atrás de nós pelo quintal, a Totó se embolava nas nossas pernas e éramos logo alcançados por minha mãe.

Um dia, nós nos deparamos com um gato morto no quintal; depois de uma esganiçada luta, Totó a matou, poucos dias depois, ela morria. Em decorrência desse apavorante acontecimento, todos nós levamos 17 (não garanto que o número exato seja este) picadas de injeção na barriga para nos imunizar contra a raiva.

Superado o trauma, tivemos outro cachorro, o Big, vira-lata de porte médio, macho e com pelo de cor ruça.  A semelhança que tinha com a Totó era a acrobacia: conseguia escalar o muro que dividia o nosso quintal com um terreno baldio e andar na beirada dele. Eu e meus irmãos só conseguimos chegar à façanha dos dois vira-latas, o que abria o nosso horizonte de meninos confinados em casa, quando estávamos próximos dos 10 anos de idade.

Além da raça e do tamanho, essa foi a única semelhança. Quando a minha mãe gritou: “Big, vamos pegar as crianças”, ele, ao contrário da Totó, avançou contra a minha mãe, mordendo-lhe a mão.  Ela tentou ainda uma vez, mas desistiu; tinha de bater com o cinto nele para não ser mordida de novo, enquanto nós escapávamos.

Em vez de a minha mãe se desfazer do Big – o amor inexcedível que tinha pelos animais a impedia – ela trouxe um companheiro para o Big, outro vira-lata de porte médio, o Veludo. Ele recebeu esse nome porque todo o seu pelo era de cor negra. Veludo era sossegado, o contraponto do Big, nunca subiu no muro e nem tentou. Minha mãe alardeava os seus feitos de grande vigia, dizendo que, certa vez, afastou, com seus latidos vigorosos, um homem suspeito que, talvez, forçasse a janela para invadir a nossa casa.

Enquanto isso, o Big continuava aprontando; o espaço dos cachorros estava limitado ao quintal, mas o Big, às vezes, quebrava essa regra. Se visse uma porta aberta, adentrava a casa e se protegia sob uma poltrona. Minha mãe vinha com a vassoura cutucá-lo para fora dali e ele reagia rosnando. Arrastava-se a poltrona, o Big ficava sem escudo e a minha mãe o varria de volta para o quintal.

Andando pelo muro, Big nos avisou muitas vezes que havia pipa no céu. Participava da nossa ansiedade, minha e dos meus irmãos, quando as pipas voadas – as que tinham as linhas cortadas por outras pipas com cerol– caíam nas proximidades. Se corrêssemos atrás da pipa voada pelo terreno baldio – éramos terminantemente proibidos de fazer isso – o Big nos acompanharia certamente.

Vivíamos o tempo em que os empregados dos botequins, com um enorme saco nas costas, iam, semanalmente, de casa em casa, recolher garrafas vazias de refrigerante e cerveja que eram vendidas sem o preço do casco incluso. Certa vez, um desses empregados, notando que ainda havia um pouco de líquido numa dessas garrafas, varejou-o no focinho do Big, confiando na grade de madeira, no corredor na entrada do prédio, que os separava.  Quando ele veio recolher as garrafas na semana seguinte, o Big saltou a grade e o pôs para correr com as garrafas, entrechocando-se no saco às suas costas. Até a minha mãe, sempre rindo, repercutiu essa façanha do nosso cachorro.

Esse obstáculo foi outra vez vencido por ele quando o meu irmão Claudio, influenciado pelo Fernando, o vizinho espanhol, pulou do muro para a rua e pegou, sorrateiramente, a pipa que dois moleques, sob os olhares dos seus amigos, tiraram, com muito trabalho, de um fio da Light onde estava embolada. Sucedeu-se uma correria dos diabos que terminou junto a tal grade. Meu irmão, garantindo-se nos músculos do vizinho espanhol, negava-se a entregar a pipa. Com gritos e latidos, a confusão foi tamanha que a minha mãe interveio, ordenando que o Claudio entregasse a pipa ao reclamante. Nesse exato instante, o Big saltou a grade e deixou a pipa estraçalhada nos seus dentes. Revoltado, um dos moleques que tirara a pipa do poste com um bambu, o Otávio Gaguinho, deu um cascudo no meu irmão, sem perda de tempo, o vizinho espanhol esmurrou o agressor. Dona Maria, a mãe do Fernando, uma espanhola de sangue quente, também interveio, e os perseguidores se foram.

No final de 1961, tivemos de nos mudar da Rua Cachambi para a São Gabriel no mesmo bairro. O traslado do Veludo foi feito sem problemas; quanto ao Big, a minha mãe pediu a colaboração do cunhado, sargento do Exército. Depois, ela se arrependeu e reagiu com indignação, pois ele usara a manu militari; levou o Big, de uma casa a outra, debaixo de pancada.

Na vila da São Gabriel, o horizonte dos nossos vira-latas diminuiu bastante, o muro onde o Big transitava era menor em altura – ainda assim, o Veludo nunca tentou escalá-lo – e não dava a visão da rua.

A maior façanha do Big, na nova casa, aconteceu no dia em que o Brasil venceu a Tchecoslováquia por 3 a 1, tornando-se bicampeão do mundo em 1962. Os foguetes espocaram e os balões subiram às nuvens; um deles perdeu força e começou a cair. Toda a vizinhança ficou atenta, pois tudo levava a crer que ele cairia no meio da vila. Big estava também atento. Quando o balão estava a poucos metros do chão, entrou vila adentro gente de todos os lugares. “Ninguém tasca” – foi o brado que deram para conter os mais impetuosos. Mas o Big tascou. Saltando do muro para fora da casa, ele disparou em direção do balão e só não fez com o balão o que havia feito com a pipa, anos antes, porque o tamanho daquele era bem maior.

Quando nos mudamos da Rua São Gabriel para a Chaves Pinheiro, a minha mãe se incumbiu de ela própria fazer a mudança do Big. Não queria a repetição daquela maldade. A minha mãe recorreu a uma artimanha: amarrou um pedaço de carne no barbante e o puxava sempre que o Big se aproximava para abocanhá-lo direcionando-o para a nova casa. É verdade que ele já sentia o peso dos anos, não tinha a mesma ligeireza de antes, se não a dificuldade da minha mãe seria bem maior.

Na Rua Chaves Pinheiro, o horizonte dos cachorros ficou ainda menor; o muro não tinha espaço para patas e um portão, relativamente alto, escondia a rua. Mesmo assim, numa noite de festa junina, Big conseguiu escapar para rua, correr uns 50 metros e latir incessantemente para o fogo de uma bucha de balão que queimara.

Trazido de volta para casa, provocava comentários de espanto dos vizinhos por ser um cão que não temia o fogo.

Morreu sem cruzar com uma fêmea; coube ao Veludo aumentar o número de cachorros lá de casa, depois que a minha mãe adotou a Manon.

Décadas depois, numa festa, uma tia minha me contou que trouxe o Big até nós, ainda filhote, logo depois da morte da Totó, para doá-lo e que antes de a minha mãe se decidir, eu o agarrei e disse: “Ele é meu”. Senti-me transbordante de orgulhoso quando soube disso.

 

 

 

 

 

 

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