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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5031 Data: 23 de janeiro de
2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE II
BOLA – Nós morávamos num prédio de dois andares, com três
apartamentos em cada um deles, na Rua Cachambi. Os moradores do andar debaixo
cercaram, ou encontraram cercados os seus espaços e ficaram com quintais. Isso
acabou nos últimos meses de 1961, quando todos os apartamentos do prédio foram
vendidos, e os proprietários do andar de cima exigiram que todas as cercas
fossem derrubadas. Quando isso aconteceu, nós não morávamos mais lá.
Foi no quintal do aptº 103 que eu
joguei as minhas primeiras peladas junto com meus irmãos e até, quando
necessitávamos completar os times, com minha irmã e alguma amiga dela. Meu pai, quando tinha uma folga no “Diário de
Notícias”, também participava dessas peladas. E uma vez, que para mim é
inesquecível, juntou-se a nós o Seu Eduardo, um espanhol corpulento, de mais de
40 anos de idade do aptº 203. Ele, talvez para não machucar um de nós, num
lance, perdeu o equilíbrio e desabou sobre a nossa plantação de bertalha,
destruindo tudo o que estava por perto.
Como eu gostava de jogar bola! Para
mim, ser um craque de futebol se tornou o meu maior sonho. Mas eu era um perna
de pau sem consciência disso. O fato de
eu ser o primogênito, um ano e meio a mais do que o Claudio, e quatro a mais
que o Lopo, fazia com que eu tivesse mais vigor físico do que eles e
conseguisse muitos gols. Isso me iludiu por completo e eu me julgava bom de
bola.
Um dia, no meio de uma pelada em que
meu pai participava, ele afirmou que o Lopo era o melhor de todos ali. Não me convenci, o bom era eu que lograva
mais gols.
Quando nos mudamos da Rua Cachambi para
a São Gabriel, saímos das peladas de quintal para as peladas da Rua Americana,
onde o trânsito era quase nenhum, possibilitando partidas com muitos
peladeiros.
Comecei a pôr os pés na realidade
quando me apelidaram de Jair Bala, um atacante do Flamengo, na época, que era
um autêntico bode cego. Eu reagia, chamando-me de Jairzinho, craque do juvenil
do Botafogo, mas os meus fracassos com a bola no pé cresciam tão
assustadoramente, que admiti que os gozadores estavam certos.
Porém, a minha paixão pelas disputas de
futebol era tamanha que não desisti. Os apaixonados não têm senso de ridículo.
Ao ler, na época, uma frase do Nélson
Rodrigues, me senti retratado nela: “Todo perna de pau é um abnegado.”
Boy- fiz muitas compras a pedido do meu pai, quando
menino. Nada que me exigisse um esforço hercúleo. Ele me pedia para comprar pão
na padaria do Seu Paulino, cigarros e fósforos no botequim do Seu Otacílio, e
lá ia eu. O problema eram as compras no Armazém São Domingos. Eu não era
atendido logo porque as mulheres tinham preferência. Como os caixeiros de lá
não eram seletivos, mesmo as mulheres sem beleza eram atendidas na minha
frente. Ao chegar em casa com as compras, eu protestava contra aquilo e meu pai
engrossava o meu protesto; mais tarde, percebi a besteira deles: se deixassem
as mulheres bonitas por último teriam mais tempo para comê-las com os olhos.
Outra uma opção do meu pai mandar-me para a quitanda do Seu Armando, perto do
ponto do bonde Cachambi, mas não o fazia, talvez porque achasse arriscado para
mim o fato de atravessar ruas sem companhia; o mesmo acontecia com a banca de
jornal do Russo, que ficava por ali; ele mesmo trazia O Globo.
Mais tarde, morando na Rua São Gabriel,
mas perambulando mais pela Rua Americana, Dona Darcy me pegou para boy. Ela era uma senhora magricela, de cabelos brancos,
que morava com vários cachorros e andava meio despida pelo quintal da sua casa
que mais se assemelhava a um terreno baldio cercado de folhas de zinco que a
molecada adorava sacudir para ouvir seus gritos de indignação. Não eram só os
moleques, adultos também, sobressaindo-se o Seu Dilmar, nosso vizinha da vila.
Estremecia, com seus fortes braços, aquele cercado de zinco enquanto gritava:
“Não faça isso, Claudio! Pare com isso, Claudio!.” E Dona Darcy xingava meu
irmão com os palavrões mais cabeludos que conhecia.
Ela dava aulas de biologia, conhecia a
matéria, deu-me provas disso, mas, para a vizinhança, era mesmo louca, já
passara de excêntrica.
Dona Darcy me pedia, às vezes, para
comprar algumas mercadorias no armazém do Seu Zé na Rua São Joaquim. Por que
não ia ela?... Talvez porque tivesse de se vestir. Ainda assim, eu atendia ao
seu pedido sem me mostrar contrariado quando ela me entrega a lista de compras
e o dinheiro. O grande problema era eu
decifrar os seus hieróglifos.
Um dia, eu cumpri a minha missão, mas
não inteiramente. Disse-lhe que não tinha cuscuz em lugar algum; não era isso –
explicou-me – era chuchu.
GIBI – Eu estava no terceiro ou no quarto ano primário,
quando a professora nos aconselhou a não lermos histórias em quadrinhos, senão,
a leitura de livros, que não têm desenhos, ficaria prejudicada para o resto das
nossas vidas. As professorinhas, às
vezes, erravam feio.
Fernando, o espanhol, filho do Seu
Eduardo, que era uns três anos mais velho do que eu, foi quem me introduziu na
leitura dos gibis. Ele tinha uma coleção de Don Chicote, Flecha Ligeira,
Cavaleiro Negro, Buck Jones, Tom Mix, Fantasma, Bufalo Bill, Hopalong Cassidy e
outros. Fiquei deslumbrado, apesar de já conhecer alguns desses heróis pelas
tirinhas dos jornais que eu lia na casa da minha avó ou mesmo lá em casa. No
entanto, vê-los nos gibis, em aventuras completas, era bem mais emocionante.
Pouco tempo depois, meu pai passou a
adquirir gibis e mais gibis com os personagens de Walt Disney. Como o heroísmo
das revistas em quadrinhos ficou suplantado pelo que eu via no cinema, as histórias
do Pato Donald e sobrinhos, Tio Patinhas, Mickey, Pateta e Pluto se tornaram
mais interessantes do que as dos gibis do vizinho espanhol.
Mas a minha atração maior, naquela
época, eram os gibis do Bolinha e da Luluzinha. Anos depois, soube que Marge, a
autora das aventuras dessa garotada, era mulher. Espantei-me e não sei por que,
talvez julgasse que só os homens eram capazes de grandes realizações.
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