O BISCOITO MOLHADO
Edição 5027 Data: 19 de janeiro de
2014
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CARTA DA LEITORA
-”Agradeço o Sérgio Britto, imersa em
1001 preocupações sobre seus instintos perdulários (1), incluindo os 2 reais
que injetou na arte canora do metrô (2). Economize, mire-se no uruguaio
presidente e no centenário fusquinha (3). Nos táxis, costumo dar opíparas
“pourboires”, os motoristas não fazem
discursos, mas costumam beijar minha mão, nada a ver com “Sweet Charity” e a
clássica indagação. “E onde estava a sua mão?”...
Quanto ao talento musical que vos
atribuiu Seu Dilmar, em vossa infância (4), veio-me à combalida memória o
espanto que provoco quando, impedida pela descontrolada artrose, anuncio que
nada sei fazer com a sinistra mão. Sempre questionam: “N-A-D-A?” Nada.
Nunca me levaram ao gratuito Municipal,
mas traziam comentários ao 86. Dona GG (Gioconda, sua irmã) voltou histérica de
um Guarani hermeticamente vestido luvas, meias e outros atavios para
amorená-lo. Penso que era o Del Monaco. Não garanto (5). E o vizinho dela na
plateia só acordou no desabamento final (6).
A irmã-cupim (Berenice) e a proverbial
mamã (Dona Isaura) voltaram sufocadas de riso, o galã da tuberculina transviada
era a cara do nosso leiteiro (7).
Todo suburbano é apedeuta? Jamais! O
taxista 151 até usa “aleatoriamente” no cotidiano (8).
Vi “Fantasia” na primeira exibição, no
Brasil, ainda menina (9), fiquei deslumbrada. O papá (Agrippino Grieco), como
de praxe, saiu insatisfeito. Ele, eu e a velha Isaura costumávamos ir
“cimemar”. Nunca aventava outro comentário, só “Uma estopada!” (10).
O pai da Dilecta e Dona Gioconda se
conheceram no Cine Mascote. Ela deixou cair pecúnia em moedas e ele a ajudou a
catar. Muito romântico, foram felizes 38 anos. Sempre gostei muito dele.
Vou-me. Ósculos.
R
BM: Esta, como as outras missivas da Rosa, não são para
ser lidas de um só fôlego, Vamos por tópicos.
(1) Rosa faz referência ao livro
que lhe presenteei “O Teatro & Eu”, do Sérgio Britto, ator que, segundo o
Dieckmann, guarda semelhanças com o Sérgio Fortes não só no nome.
Bem, a entrada da estação do metrô da
Carioca se transformou numa feira de livros, e, passando por ela, vi “O Teatro
& Eu”; veio-me logo à mente às jeremiadas da Rosa. Ela escreveu, em várias
cartas, que o seu pai recebia muitos ingressos para o teatro, mas como a
família era numerosa (só perdia para a quantidade de livros) e, sendo ela a
caçula, sempre ficava fora da festa, apesar de ser a que mais conhecia, entre
todos os moradores do 86 (número da casa na Rua Aristides Caire) Shakespeare, Pirandello, Íbsen, Tchecov,
Molière, etc.
Rosa refrescou a minha memória quando
aludiu aos dois reais que injetei na arte canora do metrô. Três adolescentes,
que me pareceram argentinas resolvidas a esticar a estada no Rio de Janeiro
depois da Copa do Mundo, cantaram enquanto tocavam uma espécie de bongô. “Um sorriso já é o pagamento” - disse uma
delas depois da apresentação. Dei-lhe dois reais, embora eu não dê esmola nem
que a vaca tussa (a minha vaca não é da raça da vaca da Dilma).
(3) Agora, a Rosa fala do presidente
José Mujica do Uruguai, que se veste franciscanamente, apesar de ateu e se
locomove de fusquinha velho. Luca, que quase festejou Bodas de Prata com o
fusquinha que adquiriu em 1973, deve se identificar com ele nesse particular.
Pepe Mujica é, de fato, uma
personalidade que julgávamos em extinção: um esquerdista que não gosta de
dinheiro.
(4) Seu Dilmar, de fato, encerrou, com
a sua crítica ácida, a minha carreira de assoviador. Eu deveria persistir como
Verdi que, reprovado no Conservatório de Milão, não esmoreceu e, depois de
tantos triunfos, esse conservatório recebeu o nome dele.
(5) Não, Rosa, não foi o tenor Mario
Del Monaco que viveu Peri, em O Guarani, com tantos atavios. Mario Del
Monaco, na temporada lírica de 1947, foi um Peri com a vestimenta, ou sem a
vestimenta, de um autêntico indígena brasileiro, ou seja, só usou tanga.
Eis o que ele escreveu no seu livro
autobiográfico:
-”No Guarani, agradei a tal
ponto que me quiseram imortalizar com uma gigantesca fotografia, um pouco
engraçada, vestido – ou melhor, despido – como um índio, no traje que usei em
cena, para colocar em exposição no museu do Teatro Municipal.
O tenor da estreia da ópera, em 1870,
Villani, além de estar exageradamente vestido, usava barba. Há poucos anos,
Placido Domingo cantou o papel de Peri com tanta roupa que, segundo a crítica,
parecia um soberano inca.
(6)
Mesmo quem não viu a ópera, mas leu o romance de José de Alencar, sabe que o
desmoronamento acontece porque o pai de Ceci explode os paióis do seu castelo
quando ele é invadido pelos aimorés.
(7) Apesar de a ópera “A Traviata”
de Verdi ser uma cornucópia de belas melodias, como afirma, com toda razão, o
maestro Walter Lourenzão, a estreia, em 1853, no Teatro “La Fenice”, de Veneza,
foi um retumbante fracasso. O soprano que representava Violetta, mais pesada
que uma baleia jubarte, morrendo de tuberculose, provocou gargalhadas na
plateia. É verdade que o compositor reviu algumas partes e a relançou para
alcançar um triunfo descomunal em todo o mundo. Mesmo com um soprano robusto,
como a Monserrat Caballé, cantando essa ópera, o público não deixa de se
emocionar com o triste destino da tísica. A comicidade ficou superada para
sempre.
Eis que sei agora, por esta carta, que
o galã da história deixou uma das irmãs e a mãe da Rosa sufocadas pelo riso
porque o apaixonado pela Violetta tinha a cara do leiteiro da rua Aristides
Caires. Lembrei-me, então, de um caso que meu pai me contava: “Fui a uma ópera
com um amigo, e, em determinado momento, ele me disse: “Já imaginou, Amaury,
esta orquestra tocando o “Carinhoso”?
(8) Rosa, os taxistas que conheço não
possuem a genialidade para o mal do Lula, mas se expressam num português bem
melhor do que o dele.
(9)“Fantasia”, dos Estúdios Walt
Disney, é um filme de 1940; calculo que chegou às telas do Méier no máximo em
1942. Você era mesmo uma meninota.
(10) “Uma estopada!” Durante muitos
anos, quando alguma coisa era maçante, dizia-se que era uma estopada, palavra
ainda encontrada em crônicas do Nélson Rodrigues. Depois, vieram os chatos para
nunca mais saírem e estopada só é falada em Portugal, mas não corriqueiramente
como antes.
Bem, vou encerrar aqui, porque isso já
está se tornando uma chatice.
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