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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5015 Data: 02 de janeiro de 2014
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141ª VISITA À MINHA CASA
-Lillian Gish, a atriz de olhos suplicantes e a boca
em formato de coração.
-Eu fui bem mais do que isso. - reagiu contrariada a
minha ilustre visitante. Fiquei famosa no papel de heroínas chorosas e
desesperadas, mas eu estava longe do comportamento dessas mulheres.
-Sabemos disso, que a sua força a levou a atuar em 104
filmes na sua vida centenária.
-Minha vida foi dura, se eu fosse fraca, ficava pelo
caminho.
-Você nasceu em Ohio, na cidade de Springfield, em
1896 ou 1893, há controvérsias quanto ao ano exato.
-Moça, apareci nos estúdios de cinema com 19 anos de
idade, mas dizia que tinha 16.
-Seu pai era James Leigh Gish, um confeiteiro, e sua
mãe, Mary Robinson McConnel, descendente de Zachary Taylor, o 12º presidente
dos Estados Unidos.
-Não nos melhorou em nada essa ascendência.
-Sua irmã Dorothy é mais nova?
-Ela nasceu um ano depois de mim, fomos muito unidas.
-Vocês passaram muitas dificuldades.
-Em quatro anos, nós nos mudamos para três cidades.
Quando nos estabelecemos, finalmente, em Nova York, meu pai sumiu de vez. Isso
me deixou insegura, mas, por outro lado, muito independente.
-Talvez, Lillian, isso explique o porquê de você nunca
ter se casado.
-Eu me casei com a minha carreira de atriz e os filmes
eram meus filhos.
-A sua mãe, para alimentar as filhas, assumiu uma das
profissões mais vergonhosas nos Estados Unidos no início do século XX: atriz.
-Ela trabalhou no Proctor's Stock por 15 dólares ao
dia e arrumou emprego para mim e a Dorothy.
-Alguma coisa que a marcou mais que as outras nessa
época?
-Eu nunca me esqueci das andanças com a minha mãe
vendo, nas janelas dos hotéis onde almejávamos dormir, cartazes que diziam ser
proibida a entrada de cães e atores.
-E o seu começo como atriz?
-Iniciei em melodramas com o nome Baby Lilian e
despertei a atenção de Walter Houston, pai de John Houston.
-A dinastia Houston, talvez a maior da arte cinematográfica.
- vibrei.
-Mas foi com David Wark Griffith que a minha carreira
deslanchou.
-Não só a sua carreira, como a própria arte
cinematográfica. Muitos o consideram o “Pai do Cinema” por realizar as
primeiras obras-primas através do invento dos Irmãos Lumière em 1895. Griffith,
na ocasião, estava com vinte anos de idade.
-O Senhor Griffith me modelou.
-Quando e como vocês se conheceram?
-Nós nos conhecemos em 1912, e uma vizinha, que
trabalhou no papel de criança em algumas peças dele nos apresentou: Gladys
Smith.
-Gladys Smith?!...
-O seu nome artístico era Mary Pickford.
-A namoradinha da América?... Sim, ela ganharia rios
de dinheiro e, juntamente com o marido, John Barrimore, Charles Chaplin e o
próprio Griffith, fundariam a United Artists.
-Isso foi um pouco mais tarde, em 1919. Eles queriam
distribuir suas próprias criações, pois se consideravam prejudicados com
intermediações.
-Disseram que, com a United Artists, os loucos tomavam
conta do hospício. - lembrei.
-O Senhor Griffith era uma figura paterna para mim, um
mestre.
-Griffith lia Shakespeare, Charles Dickens e Walt
Whitman, principalmente, o seu objetivo era a dramaturgia.
-Mas se tornou uma lenda do cinema. - assinalou.
-Griffith se tornou diretor de filmes em 1908,
realizou perto de 450 filmes de 15 a 18 minutos, entre 1908 e 1913, modestos,
mas revolucionários. Foi o primeiro a utilizar o close-up com abordagem
dramática, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera.
-O Senhor Griffith estabeleceu as regras da gramática
do cinema e criou uma narrativa própria dessa forma artística que surgia. -
disse ela.
-E você estava lá, com ele, em todas essas fases.
-O que me honra muito.
-Você e a sua irmã Dorothy abalaram Griffith, que
disse:
-”Dorothy era uma menina alegre e sedutora, com um
toque do pecado original. Mas Lillian era envolta de uma luz misteriosa que
nada tinha a ver com eletricidade.“
-Ele disse, de fato, isso,
-A sua luz misteriosa provinha de uma estrela. O “Pai
do Cinema” sabia que descobrira, em você, a atriz que iluminaria seus filmes ao
longo dos dez anos seguintes.
-Mais ou menos isso; trabalhei com ele durante oito a
dez anos.
-Disseram os estudiosos da arte cinematográfica, que a
sua luz misteriosa transmitia uma aura de inocência vulnerável, enquanto
ocultava uma vitalidade e um impulso sexual imensos, esperando para serem
expressados ou até mesmo, reprimidos a força.
-Não foi François Truffaut quem disse isso?... Ele
gostava muito de mim, dedicou-me o filme “Noite Americana”, de 1980.
-Não, Lillian, Truffaut disse, sobre você, que nunca
uma força tão tranquila havia sido emanada de um corpo tão frágil e gracioso.
-Generosidade do grande Truffaut, que se foi tão cedo,
no melhor da sua força criativa.
-O Seu primeiro filme com Griffith foi “Um Unseen
Enemy”, uma órfã, juntamente om a sua irmã Dorothy.
-Nós duas éramos hostilizadas por uma faxineira que
planejava roubar a nossa escassa herança. Para acerbar o sofrimento, nosso
irmão entrou para o exército não estando presente para nos proteger. - resenhou
a história.
-Lillian, esse filme foi realizado em dois dias, o que
demonstra a rapidez do diretor, assinalava o seu potencial de atriz e anunciava
a sua personagem arquetípica: a virgem em apuros.
-Eu só permaneci em apuros. - riu gostosamente com a
sua observação.
-O Senhor Griffth adorou a minha estreia e a de
Dorothy, e nos contratou para mais filmes: “Friends”, “The New York Hat”, Anna
Moore em “Way Down East”, e “The Musketeers of Pig Alley”, este, o último curta
dele, em que interpreto uma órfã.
-Órfãos nos romances de Charles Dickens e órfãs no
cinema de Griffith. - não resisti a comparação.
-Nesse ínterim, o que aconteceu de importante para a
sua carreira?
-Em 1913, eu me mudei, com a minha família para
Hollywood, acompanhando Griffith.
-E como era Hollywood nesses primeiros anos de cinema?
-Não havia aquela indústria cinematográfica quando
chegamos. O aroma das laranjeiras se espalhava, era um paraíso.
-Paraíso que atraiu cineastas e imigrantes do leste
europeu?
-Sim. Cecil B. DeMille e Sam Goldwin haviam formado a
Fox, Carl Laemmle dirigia a Universal desde o ano passado, isto é, 1912. As primeiras estrelas nas capas das revistas
eram Pearl White, Theda Bara, Mabel Normand, Mary Pickford.
E concluiu:
-Hollywood estava se tornando a Meca do cinema.
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