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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5028 Data: 20 de janeiro de
2014
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SUANDO EM BICAS
Coisa dos cariocas; elegia-se a musa do
verão, mas o que nós vemos, de uns anos para cá são várias pessoas recebendo
essa honraria. Mulheres de corpo escultural, calipígias como Vênus, famosas e
usando sumários biquínis como roupa de trabalho eram, geralmente, as eleitas
pela mídia.
A coisa começou a degringolar quando a
economista Maria da Conceição Tavares foi chamada a musa do verão de 1986. O
Plano Cruzado do PMDB realizou milagres dignos dos templos bíblicos: elegeu
deputados, senadores e 90% dos governadores desse partido. Antes das urnas,
alcançara o impossível com uma portuguesa, com bafo de cigarro e que deflagrava
uma chuvarada de saliva nos alunos e repórteres que não se achavam a menos de
10 metros de distância dela.
Com o título bagunçado, no ano
seguinte, nomearam a latinha de maconha a musa do verão de 1987. Mesmo os
eleitores deste periódico, que moram longe do litoral de Rio de Janeiro, devem
se lembrar do caso. O navio Solana Star precisa atracar para que o motor fosse
reparado. O problema era que transportava 22 toneladas de maconhas em latinhas;
o único jeito foi jogar essa carga fora para não serem detidos, e assim foi
feito. As caprichosas ondas do mar levaram as latinhas para as praias para a
alegria daqueles que são chegados a um baseado e também para aqueles, vidrados
em dinheiro, pois as venderam não por um preço muito elevado, porque a oferta
era grande.
Depois que a Maria da Conceição Tavares
passou a faixa para a latinha de maconha, não consigo citar, de cabeça, uma só
musa do verão; teria de recorrer ao Google.
Neste verão 2014/2015, então, ninguém
pensa em outra coisa que não seja o sol do Rio de Janeiro, nunca tão inclemente
desde 1917, segundo os escarafunchadores de alfarrábios. Talvez tenham razão,
pois, naquele ano, as coisas esquentaram até na Rússia.
O sol reina soberano. Aliás, ele também
é chamado de astro-rei. “Astro-rei para as negas dele” - diriam as estrelas de
1ª grandeza, desdenhando-o por ser de 5ª categoria. O problema é que nós, aqui
no Rio de Janeiro, somos as negas dele, ou melhor, negras, de tanto que estamos
queimados com esse calorão.
Nílton Santos, a Enciclopédia do
Futebol, contou, na televisão, que quando o sol castigava gregos e troianos, no
campo do velho Maracanã, ele aproveitava a sombra que uma generosa marquise
proporcionava. Ficava lá até vir, com a bola nos pés, um jogador que ousava
enfrentar o sol e ele; Nílton Santos saía, então, da sombra, desarmava o
inoportuno, passava a bola para um atleta do seu time e retornava para a
sombra.
Nessa época, Armando Nogueira e outros
colunistas esportivos investiram contra as partidas de futebol sob o sol das 15
horas. Vale lembrar que ainda havia o campeonato de aspirantes, cujas disputas
serviam de preliminar, ou seja, tinha início às 13 horas. Foi deflagrada a
polêmica, pois Nélson Rodrigues fez o papel de advogado do diabo, defendeu o
calor infernal, contestando o Armando Nogueira e aliados. Um desses aliados era
o Zagalo, já técnico de futebol, que reclamou do maçarico que levava os
futebolistas a suarem em bicas. Não escapou da ironia ácida; Nélson o viu como
um esquimó, caminhando com sapatos de sola em forma de raquete de tênis,
coberto por várias camadas de pele, como se vê no filme “Em Busca do Ouro”, de
Charles Chaplin. Enfim, Armando Nogueira, Zagalo e outros deveriam se regalar
com o tempo que se faz aqui, e não nos países estrangeiros.
Antes de prosseguirmos, lembremos que
Nélson Rodrigues cunhou a seguinte frase: “Era em dezembro, e fazia um calor de
rachar catedrais.”
Alegava o dramaturgo que, nas obras
completas de Machado de Assis, não havia uma só queixa contra a canícula.
Talvez, ele tivesse razão; o que li do Bruxo do Cosme Velho contra o tempo foi
uma crônica em que reclamava machadianamente, isto é sem veemência, das
incessantes chuvas que castigavam a cidade do Rio de Janeiro. Escreveu que São
Pedro espremia nuvens entre os dedos, ou algo parecido, não tenho esse texto em
detalhes na estante e muito menos na minha retentiva.
Seria tão bom que São Pedro espremesse
nuvens enviando-nos uma boa chuva para refrescar...
Eu, que não sou de falar mal do calor,
que até repercuto os benefícios da vitamina D para o nosso organismo, que não
deixo cair no ostracismo aquele trocadilho infame de priscas eras feito com a
língua francesa: “É bom suar”, eu que digo ser pior virar picolé no inverno do
hemisfério norte, brado agora: “Não dá para aguentar tanto calor durante tantos
dias seguidos, já passou de todas as medidas (mais de 40º com sensação térmica
beirando, às vezes, os 50º. E, para piorar, moro nas adjacências do Méier, onde,
segundo o meu pai, falecido em 1998, se encontra o caldeirão do diabo.
Imagino se este calor viajasse do Rio
de Janeiro para a França. Por que não?... com o real supervalorizado, todo o
mundo daqui tem ido para lá. Como
dizíamos, imagino se este calor deixasse a nossa cidade e viajasse para a
França, morreriam, certamente, muitos mais franceses do que naquele verão de
2003. O que eles chamaram naquele ano de “canicule” (calor excessivo) acabou
com a vida de 14.802 franceses, idosos, na maior parte. Há outras fontes
estatísticas que garantem que pereceram quase 20 mil.
Aqui, não há o perigo de morrer tanta
gente, a não ser pisoteada num arrastão na praia.
Alguém viu o filme “Faça a Coisa
Certa”, do Spike Lee? Em Nova York fazia um calorão tamanho, que os mais
despachados trataram de abrir os hidrantes das ruas para se refrescarem. Mas a
fornalha tirou os neurônios dos personagens do filme de ordem ou os torrou, não
sei ao certo e ninguém fez a coisa certa.
Quanto a mim, estou fazendo tudo errado
nesta crônica, por isso paro por aqui, ainda mais que a Rádio MEC, que ouço,
enquanto escrevo, colocou no ar “A Dança Ritual do Fogo”, de Manuel de Falla.
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