---------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5024 Data: 15 de janeiro de
2014
----------------------------------------------------------
“TEJE PRESO”
PARTE I
(Nota: alguns nomes receberam asteriscos, porque o
caso é verídico)
Cheguei do trabalho, na semana passada
e meu irmão rumou em minha direção, com um papel dobrado, pisando em ovos. Eu,
evidentemente, estranhei.
-Carlinhos, chegou um negócio agora...
A mamãe não pode saber. É da polícia, uma intimação; um agente veio, me
entregou e eu tive de assinar o recebimento.
Reagi indignado:
-Espera lá; o meu maior envolvimento
com a Petrobras são umas poucas ações que comprei há 12 anos e hoje estão na
bacia das almas.
-Não tem nada a ver com a Petrobras. -
disse ele sem altear a voz para que a nossa mãe não nos ouvisse.
-Se não é a Operação Lava-Jato, não é
também a Operação Porto Seguro, que envolve a Marinha Mercante. Também fui
vítima; pois me designaram, em 2013, para ir a um simpósio sobre terminais
marítimos na Barra da Tijuca e, chegando lá, passei pelo constrangimento de ter
de voltar porque a ANTAQ não liberara a verba; enquanto isso, o diretor, com a
desculpa de que faria uma palestra sobre poluição, passeava em Copenhague.
-É melhor você ler logo este papel.
E me passou a intimação.
-Se o intimado não comparecer na
delegacia na terça-feira, às 10h, para prestar declarações incorrerei no crime
de Desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal. - li em voz baixa,
pois a nossa mãe já estranhava a duração da conversa entre nós dois.
-O agente da polícia, que me entregou
esta intimação, pensou que eu fosse você, até me tratou com muita cortesia.
-Espera lá, Lopo: o processo é de 2004.
-Você se lembra de alguma coisa?...
indagou-me com a voz quase inaudível.
Se eu fosse como aquele chefe de
família, personagem de “A Vida Como Ela É”, do Nélson Rodrigues, perguntaria:
“Será que descobriram alguma safadeza minha?”, mas não era o caso.
-O que houve? - perguntou-nos a nossa
mãe já picada pela pulga atrás da orelha.
-Eu estou falando com o Carlinhos do ar
condicionado que você vai comprar.
Ele se juntou a ela e os dois se
afastaram. Sozinho, pensei no que faria. Meu irmão Claudio foi logo descartado,
não era caso para advogado. Luca – veio-me à mente como o Eureka de Arquimedes.
Ele trabalhou no sistema de segurança do Unibanco e conhece todas as delegacias
espalhadas pelo Rio de Janeiro.
-Então, foi isso. - resenhei-lhe o caso
pelo telefone.
-Carlinhos, deveria ser um convite, não
uma intimação.
Depois dessa ressalva, prontificou-se a
me acompanhar até a delegacia no dia designado.
O que houve para que me intimassem? -
era a pergunta recorrente, pois do processo só vinha, na intimação, o número
que, aliás, eu passei para o Luca e ele, na pior das hipóteses, teria um bom
palpite para o jogo do bicho.
O que está narrado acima se deu numa
quinta-feira. No dia seguinte, recebi, de manhã, três ligações do Luca; na
primeira, quase não o deixei falar.
-Eu tive um Gol 1983, e, com ele,
capotei na Serra Mato Grosso, Maricá, em 1994. Vendi os destroços para um
mecânico da Rua Bamboré por 500 reais. Ele recuperou o carro e o vendeu.
Passaram dois meses, vieram duas multas para mim por infração de trânsito. O
cara não tinha passado o carro para o nome dele. Depois, não veio mais multa,
eu fiquei descansado e não dei baixa no DETRAN.
-Carlinhos, eu acredito que é alguma
coisa relacionada com carro. Vamos ver.
Na segunda ligação, Luca me disse que
acionara um colega seu que trabalhava na segurança do Itaú-Unibanco, que se
achava de férias em Cabo Frio.
-Ainda assim, ele mexeu no computador
com o número do processo e descobriu que se trata de uma ação perpetrada pelo
Unibanco.
-Que coincidência!
-Com isso, Carlinhos, ele começou a me
sacanear... perguntou se não era alguma falcatrua que eu tinha cometido.
Em seguida, a sua voz se tornou séria:
-Carlinhos, você conhece algum José
Mauro Dantas*?
-Nunca ouvi falar.
-Esse cara abriu uma conta fria no
Unibanco. Mas meu colega não pôde ir além disso; dei-lhe seu nome e ele não
conseguiu ver mais nada.
Assim, fiquei tranquilo quanto aquele
fantasmagórico Gol.
-Eu ainda vou ver mais. - prometeu
antes de desligar.
No terceiro telefonema, informou-me que
foi até a 23ª Delegacia, próxima à sua casa e tudo o que fora dito
anteriormente estava confirmado; e que, por problemas de “alçadas”, o delegado
não conseguiu abrir mais telas e chegar ao porquê dessa intimação e nem a razão
de o meu nome constar nela.
-Carlinhos, o jeito é ir lá, na
terça-feira, às 10 horas como está determinado, para saber. Fique tranquilo.
No sábado, fiquei ainda mais tranquilo
quando o meu irmão Claudio, ao saber do ocorrido, garantiu que levaria livros e
revistas para mim na cadeia.
Na segunda-feira, para ser mais
contundente na minha falta ao serviço, no dia seguinte, mostrei ao meu chefe
imediato o papel.
Ele leu e sorriu, enquanto eu lhe dizia
que os termos eram muito duros.
-É assim mesmo que nós intimamos às
empresas de navegação. - manifestou-se.
Sim, mas há diferenças superlativas:
intimar pessoa jurídica é mais brando do que pessoa física, além de uma coisa é
estar submetido ao Direito Administrativo, outra, ao Direito Penal.
-”Amigo é pra essas coisas”. - diria o
Luca quando se prontificou a me levar, no seu carro, à delegacia designada na
intimação.
-Está marcado para as 10h. Eu não sei
mais se a Rua Uruguai dá mão... Passarei pela sua casa às 8h 40min.
Pontualidade britânica e precisão
suíça. Entrei no seu carro, com um envelope na mão, que logo passei para ele.
-São alguns exemplares do Biscoito
Molhado para a Rosa Grieco.
-Trouxe a intimação? - preocupou-se.
Tateei o bolso da camisa.
-Está aqui,
Aliviado, pediu-me para lembrá-lo das
cartas delas e dos recortes de jornais que estavam endereçados a mim.
-No xadrez, eu terei tempo de ler isso
tudo.
As cartas da Rosa sempre são
interessantes, mesmo quando ela as faz longas por não ter tempo para fazê-las
curtas, como escreveu, certa vez, reportando-se a Pascal. Quanto aos recortes
de jornal, nada que não acrescente alguma coisa ao nosso saber. Nada de Luís
Fernando Veríssimo, quando fere o provérbio latino, “Ne sutor ultra
crepidam” - Não vá o sapateiro além das sandálias”-, escrevendo sobre
economia, ciência que ele desconhece. Nada de artigos do filho do compositor e
violonista João Bosco em que ideias mambembes são revestidas com um estilo
pretensioso. A música do pai é muito melhor.
Mas fiz uma crítica à Rosa:
-Ela escreveu que morre de rir quando
se depara, no Biscoito Molhado, com a palavra petiz.
-Por quê?
-Porque alega que a palavra é obsoleta,
bolorenta. Logo ela que usa verbetes pouco rotineiros, ela que tem um
vocabulário rico.
Luca sorriu, e eu prossegui.
-Pensei em remeter à Rosa várias
citações em que a palavra petiz substitui criança, como uma do Chico Buarque na
música que ele endereçou ao Ciro Monteiro.
Chicólogo, o Luca prontamente cantou o
trecho a que me referi,
-”Minha petiz/ agradece a camisa/ que
lhe deste à guisa/de gentil presente...”
Depois, tratamos do atentado terrorista
ao tabloide “Charlie Hebdo”, em Paris, assunto de nove entre dez diálogos pelo
mundo atualmente.
-Luca, fiquei indignado com a matança,
mas aquelas charges... Não vou nem me ater às piadas religiosas; há um desenho
em que é mostrada uma ministra francesa negra, originária da Guiana, e, do
lado, uma macaca com a cara dela.
-É, Carlinhos, mas é a liberdade de
expressão que vem desde a Revolução Francesa.
-Li essa crônica do Luís Fernando
Veríssimo. Ele não se lembrou que Marx foi expulso da Alemanha e, depois, da
França, que só pôde escrever sossegadamente na Inglaterra. Esqueceu-se do Caso
Dreyfus, o capitão do exército francês que foi enviado para a prisão na Ilha do
Diabo, onde ficou anos, por ser judeu.
A procura de um lugar para estacionar o
carro interrompeu o meu discurso.
-Aqui, nesta praça, há uma vaga.
-Que beleza! Bem arborizada. -
assinalei.
-Como é o nome dessa praça?...
Era escusado me perguntar, pois eu só
conhecia a Tijuca das grandes salas de cinema. Luca não se fez de rogado,
abordou uma senhora e lhe dirigiu essa pergunta.
-Praça Xavier de Brito.
-Como eu me esqueci! Eu trazia a minha
filha Carolina aqui para andar de charrete. - disse-me.
Voltou-se para a senhora tijucana que permanecia
para ouvir elogios ao seu bairro.
-Ainda há esses passeios de charrete?
-Só aos domingos.
Bem, a justiça chamava; não podíamos
reviver mais os bons tempos. A senhora reiniciou o seu passeio e nós rumamos
para a delegacia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário