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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

2745 - O biscoito bloqueado


           

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4995                                          Data: 01  de  dezembro de 2014

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SABADOIDO DE KAFKA A TOM ZÉ

 

-O mais atual dos escritores é Kafka.

-Não fale uma coisa dessas, Carlão, que eu me lembro do livro que me obrigaram a ler na escola.

-”A Metamorfose”.

-Se isso não saiu da sua cabeça, Carlão, imagine da minha. - dramatizou meu sobrinho em busca do efeito cômico.

-É o livro em que o personagem se transforma em barata, Daniel?- entrou a Gina na conversa.

-Se for barata voadora, eu quero distância desse personagem de Kafka. - brincou o Claudio.

-Na verdade, ele se transforma num inseto que o escritor não identifica como barata.

-Você voltou a ler “A Metamorfose” depois de sair da escola?

-Não, Carlão, minha memória é fotográfica, por isso sei que era um inseto não identificado.

-E o nome desse personagem?- desafiei-o.

-Gregório alguma coisa. -respondeu.

-Gregório Barrios. - persistiu o Claudio na brincadeira.

-Gregório Samsa.

-Deixe-me ver aqui se o Carlão está certo. - sacou o celular do bolso da bermuda.

-Por que você diz que o Kafka é o mais atual dos escritores? - retomou o Claudio a seriedade.

-Volta e meia nós somos vítimas de uma situação indesejada de dimensão irreal.

-A máquina burocrática faz muito isso com o indivíduo. - disse ele.

-O que acontece comigo não é bem burocrático...

-Carlão está certo: é Gregório Samsa. - cortou-me meu sobrinho.

Prossegui:

-Em 2012, recebi dois cartões do Santander, a validade deles vencia em 2016.  Usei um que, agora, perdeu o valor, como se 2016 tivesse chegado com dois anos de antecipação.

-E você ficou sem acessar a sua conta, Carlinhos?- assustou-se a Gina.

-Fui a uma agência do Santander na Rua da Assembleia e uma atendente pediu meu CPF para desbloquear o cartão e não conseguiu. Aconselhou-me ir à minha agência original.

-E você foi, Carlão?

-Ela fica na esquina da Rua do Ouvidor com a Rio Branco; deveria estar repleta de cidadãos que sofrem com esse mundo kafkiano. Notei que a agência do Santander da Rua da Quitanda estava meio vazia, entrei, e um funcionário me atendeu; contei-lhe o meu drama, entregando-lhe o cartão, ele me disse que o primeiro deles perdera a validade porque eu me tornara um cliente Van Gogh.

-Que chique, Carlão!

-Daniel, fiquei sem a orelha e o dinheiro.

-Ele não desbloqueou o cartão?

-Pediu-me o CPF, digitou os meus dados no seu computador, diferentemente da outra atendente, pois ela não tinha um e disse me que, agora, eu poderia acessar a minha conta por qualquer caixa eletrônica.

-E conseguiu?

-Nada; a fatídica mensagem de cartão bloqueado persistia. O jeito era enfrentar a fila da minha agência original.

-Carlão, esta novela está mais longa do que a “Metamorfose”, do Kafka. - reclamou meu sobrinho.

-Serei mais sucinto do que o Dalton Trevisan. - prometi.

-Também tive de ler um livro desse cara.

-A funcionária do Santander que me atendeu confirmou tudo, que eu passara a ser um cliente sem orelha e digitou no seu computador muito mais teclas do que o outro funcionário. Outra diferença: pediu-me para digitar duas vezes uma nova senha com quatro algarismos e, em seguida, três letras, a senha era alfanumérica. “Pronto: o cartão está desbloqueado” - garantiu ela. Desci a escadaria, sentindo-me mais leve, fui ao primeiro caixa eletrônico...

-E o cartão estava bloqueado. - adivinhou a Gina.

-Voltei a ela que, de novo, digitou umas teclas. Depois de me dizer que o problema não era a senha, telefonou para a empresa que confeccionou os meus cartões. Era lá o problema, então ela pediu o desbloqueio.

-E não conseguiram.

-Puxa, Gina, você está acertando todas.

-Você não disse, Carlinhos, que viveu uma situação Kafkiana? - interveio o Claudio.

-Resumindo: ela anotou meus dados e pediu um novo cartão para mim que ficará pronto no dia 8 de dezembro.

-Enquanto isso, você fica sem conseguir movimentar a sua conta. Cabe até um processo contra o Santander. - indignou-se meu irmão.

-A funcionária me pediu mil desculpas pelo transtorno e eu lhe falei que havia culpados, mas que não era ela.

-E a sua conta da poupança da Caixa Econômica, Carlinhos?

-É outro transtorno. Era uma conta que se transformou em duas devido àquelas torneiras de liquidez do Plano Collor.

-O meu carro precisa de um banho. - disse o Daniel, preparando-se para sair.

-Eu recebia, pelos Correios, os extratos das duas contas, depois passei a receber só um e reclamei pelo telefone.  A explicação que deram foi que os clientes, com contas de valor alto, reclamaram que, nos escaninhos dos apartamentos em que moram, estavam violando as cartas com os extratos.

-Mas a sua conta com valor baixo também deixou de ser enviada. - lembrou-se meu irmão.

-Perdi o número do telefone e não me animo a perder um dia enfurnado na Caixa Econômica da Rua Dias da Cruz, onde fica a minha agência que, primeiramente, era na Amaro Cavalcanti.

-A Caixa Econômica andou fechando contas, mas as de quantia pequena. - disse a Gina.

-O boato que corre é que a Caixa Econômica, por causa desse déficit nas contas do governo, vai meter a mão nas contas sem movimentação pelo cliente. - alardeou meu irmão.

-Nem o Collor roubou, devolveu o dinheiro confiscado. - argumentei.

-Você declara essas contas no imposto de renda? - indagou-me ele.

-Pego as últimas que recebi pelos Correios, uns oito anos atrás, jogo o rendimento anual do ano da poupança nelas e declaro nos bens. Os valores, agora, são razoáveis, pois, como dizia Einstein, os juros compostos são a invenção mais poderosa do homem.

Gina se levantou da poltrona e saiu para o quintal da casa.

-Claudio, você já assistiu a esse filme, no Canal Arte 1, “Fabricando Tom Zé”?

-Carlinhos, vejo por capítulos, porque são tantas as reprises.

-O crítico Tarik de Souza afirmou que a bagagem musical do Tom Zé é bem maior do que a do Caetano e do Gil, entre outros, e citou alguns professores importantes dele, como o Koellreutter. Afirmou que Tom Zé foi inserido no Tropicalismo, mas a sua criação ia além da dos outros participantes desse movimento.

-Eu já lhe disse, Carlinhos, que um americano descobriu uns discos de vinil do Tom Zé e ficou maravilhado.

-Foi o David Byrne, do “Talking Heads”. Ele tirou o Tom Zé do ostracismo, que ficara ainda mais esquecido depois que as fofocas o separaram do Caetano e do Gilberto Gil, quando os dois viviam em Londres. O filme mostra shows dele em duas cidades da Itália, na Suíça, em outros países... O New York Times elegeu o seu disco “Defeito de Fabricação” entre os dez maiores do ano.

-Carlinhos, os discos do Tom Zé são relíquias; não se encontra.

-Você não tem discos dele? - surpreendi-me.

-Não, procuro, mas não acho.

Com essas palavras, ergueu-se da cadeira e anunciou que ia alimentar as rolinhas. (*)

 

(*) rolinha é praga, deixa elas se virarem sozinhas.

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