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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4995 Data: 01 de dezembro de 2014
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SABADOIDO DE KAFKA A TOM ZÉ
-O mais atual dos escritores é Kafka.
-Não fale uma coisa dessas, Carlão, que
eu me lembro do livro que me obrigaram a ler na escola.
-”A Metamorfose”.
-Se isso não saiu da sua cabeça, Carlão,
imagine da minha. - dramatizou meu sobrinho em busca do efeito cômico.
-É o livro em que o personagem se
transforma em barata, Daniel?- entrou a Gina na conversa.
-Se for barata voadora, eu quero
distância desse personagem de Kafka. - brincou o Claudio.
-Na verdade, ele se transforma num
inseto que o escritor não identifica como barata.
-Você voltou a ler “A Metamorfose”
depois de sair da escola?
-Não, Carlão, minha memória é
fotográfica, por isso sei que era um inseto não identificado.
-E o nome desse personagem?- desafiei-o.
-Gregório alguma coisa. -respondeu.
-Gregório Barrios. - persistiu o Claudio
na brincadeira.
-Gregório Samsa.
-Deixe-me ver aqui se o Carlão está certo.
- sacou o celular do bolso da bermuda.
-Por que você diz que o Kafka é o mais
atual dos escritores? - retomou o Claudio a seriedade.
-Volta e meia nós somos vítimas de uma
situação indesejada de dimensão irreal.
-A máquina burocrática faz muito isso
com o indivíduo. - disse ele.
-O que acontece comigo não é bem
burocrático...
-Carlão está certo: é Gregório Samsa. -
cortou-me meu sobrinho.
Prossegui:
-Em 2012, recebi dois cartões do
Santander, a validade deles vencia em 2016.
Usei um que, agora, perdeu o valor, como se 2016 tivesse chegado com
dois anos de antecipação.
-E você ficou sem acessar a sua conta,
Carlinhos?- assustou-se a Gina.
-Fui a uma agência do Santander na Rua
da Assembleia e uma atendente pediu meu CPF para desbloquear o cartão e não
conseguiu. Aconselhou-me ir à minha agência original.
-E você foi, Carlão?
-Ela fica na esquina da Rua do Ouvidor
com a Rio Branco; deveria estar repleta de cidadãos que sofrem com esse mundo
kafkiano. Notei que a agência do Santander da Rua da Quitanda estava meio
vazia, entrei, e um funcionário me atendeu; contei-lhe o meu drama,
entregando-lhe o cartão, ele me disse que o primeiro deles perdera a validade
porque eu me tornara um cliente Van Gogh.
-Que chique, Carlão!
-Daniel, fiquei sem a orelha e o
dinheiro.
-Ele não desbloqueou o cartão?
-Pediu-me o CPF, digitou os meus dados
no seu computador, diferentemente da outra atendente, pois ela não tinha um e
disse me que, agora, eu poderia acessar a minha conta por qualquer caixa
eletrônica.
-E conseguiu?
-Nada; a fatídica mensagem de cartão
bloqueado persistia. O jeito era enfrentar a fila da minha agência original.
-Carlão, esta novela está mais longa do
que a “Metamorfose”, do Kafka. - reclamou meu sobrinho.
-Serei mais sucinto do que o Dalton Trevisan.
- prometi.
-Também tive de ler um livro desse cara.
-A funcionária do Santander que me
atendeu confirmou tudo, que eu passara a ser um cliente sem orelha e digitou no
seu computador muito mais teclas do que o outro funcionário. Outra diferença:
pediu-me para digitar duas vezes uma nova senha com quatro algarismos e, em
seguida, três letras, a senha era alfanumérica. “Pronto: o cartão está
desbloqueado” - garantiu ela. Desci a escadaria, sentindo-me mais leve, fui ao
primeiro caixa eletrônico...
-E o cartão estava bloqueado. -
adivinhou a Gina.
-Voltei a ela que, de novo, digitou umas
teclas. Depois de me dizer que o problema não era a senha, telefonou para a
empresa que confeccionou os meus cartões. Era lá o problema, então ela pediu o
desbloqueio.
-E não conseguiram.
-Puxa, Gina, você está acertando todas.
-Você não disse, Carlinhos, que viveu
uma situação Kafkiana? - interveio o Claudio.
-Resumindo: ela anotou meus dados e
pediu um novo cartão para mim que ficará pronto no dia 8 de dezembro.
-Enquanto isso, você fica sem conseguir
movimentar a sua conta. Cabe até um processo contra o Santander. - indignou-se
meu irmão.
-A funcionária me pediu mil desculpas
pelo transtorno e eu lhe falei que havia culpados, mas que não era ela.
-E a sua conta da poupança da Caixa
Econômica, Carlinhos?
-É outro transtorno. Era uma conta que
se transformou em duas devido àquelas torneiras de liquidez do Plano Collor.
-O meu carro precisa de um banho. -
disse o Daniel, preparando-se para sair.
-Eu recebia, pelos Correios, os
extratos das duas contas, depois passei a receber só um e reclamei pelo
telefone. A explicação que deram foi que
os clientes, com contas de valor alto, reclamaram que, nos escaninhos dos
apartamentos em que moram, estavam violando as cartas com os extratos.
-Mas a sua conta com valor baixo também
deixou de ser enviada. - lembrou-se meu irmão.
-Perdi o número do telefone e não me
animo a perder um dia enfurnado na Caixa Econômica da Rua Dias da Cruz, onde
fica a minha agência que, primeiramente, era na Amaro Cavalcanti.
-A Caixa Econômica andou fechando
contas, mas as de quantia pequena. - disse a Gina.
-O boato que corre é que a Caixa
Econômica, por causa desse déficit nas contas do governo, vai meter a mão nas
contas sem movimentação pelo cliente. - alardeou meu irmão.
-Nem o Collor roubou, devolveu o
dinheiro confiscado. - argumentei.
-Você declara essas contas no imposto
de renda? - indagou-me ele.
-Pego as últimas que recebi pelos
Correios, uns oito anos atrás, jogo o rendimento anual do ano da poupança nelas
e declaro nos bens. Os valores, agora, são razoáveis, pois, como dizia
Einstein, os juros compostos são a invenção mais poderosa do homem.
Gina se levantou da poltrona e saiu
para o quintal da casa.
-Claudio, você já assistiu a esse
filme, no Canal Arte 1, “Fabricando Tom Zé”?
-Carlinhos, vejo por capítulos, porque
são tantas as reprises.
-O crítico Tarik de Souza afirmou que a
bagagem musical do Tom Zé é bem maior do que a do Caetano e do Gil, entre
outros, e citou alguns professores importantes dele, como o Koellreutter.
Afirmou que Tom Zé foi inserido no Tropicalismo, mas a sua criação ia além da
dos outros participantes desse movimento.
-Eu já lhe disse, Carlinhos, que um
americano descobriu uns discos de vinil do Tom Zé e ficou maravilhado.
-Foi o David Byrne, do “Talking Heads”.
Ele tirou o Tom Zé do ostracismo, que ficara ainda mais esquecido depois que as
fofocas o separaram do Caetano e do Gilberto Gil, quando os dois viviam em
Londres. O filme mostra shows dele em duas cidades da Itália, na Suíça, em
outros países... O New York Times elegeu o seu disco “Defeito de Fabricação”
entre os dez maiores do ano.
-Carlinhos, os discos do Tom Zé são
relíquias; não se encontra.
-Você não tem discos dele? -
surpreendi-me.
-Não, procuro, mas não acho.
Com essas palavras, ergueu-se da cadeira
e anunciou que ia alimentar as rolinhas. (*)
(*) rolinha é praga, deixa elas se
virarem sozinhas.
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