--------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4998 Data: 06 de dezembro de 2014
--------------------------------------------------------------
140ª VISITA À
MINHA CASA
PARTE I
-Pretendia voltar a esta vida
aquém-túmulo em 1986 – disse-me Mark Twain logo que surgiu à minha frente.
-Já sei, por causa do cometa Halley.
-Vim com ele e, com ele, parti.
-O filme que fizeram sobre sua vida
salientou o que pôde essa sincronia cósmica entre você e o cometa.
-Então, realizaram um filme sobre mim?
Quando eu morri, em 1910, o cinema ainda engatilhava com aqueles atores mudos.
-Mas, em 1945, ele já corria o mundo.
Na sua biografia em celuloide, um excepcional ator o personificou, quando
adulto e idoso, Fredric March.
-O garoto Samuel Clemens viveu em mim
por toda a minha vida.
-Ah, sim; o Mark Twain foi o pseudônimo
que escolheu para escrever as suas histórias.
-Meu verdadeiro nome ficou praticamente
esquecido. Mark Twain, no jargão dos barqueiros do Mississippi significava
“duas marcas” na medição da profundidade do rio.
-Você o usou pela primeira vez quando
escreveu a história da corrida de sapos a dinheiro?
-História verídica; houve fraude, eu e
o dono do sapo em que apostei fomos lesados por patranhas do proprietário do
ganhador e exigimos uma nova disputa. Pus tudo isso no conto The Celebrated
Jumping Frog of Calaveras County.
-Como trabalhador, você começou como
tipógrafo.
-Meu início foi, na realidade, como
aprendiz de gráfica, a tipografia veio depois. Meu pai se foi, devido a uma
pneumonia, quando eu tinha 12 anos de idade, e fui à luta.
-Você, pouco depois, escrevia artigos e
textos humorísticos para o Hannibal Journal, que pertencia ao seu irmão
Orion.
-Isso até os 18 anos; deixei a minha
pequena cidade Hannibal e fui trabalhar como tipógrafo em Nova York,
Filadélfia, Cincinatti e Saint Louis.
-Você trabalhava todos os dias?
-Não, nos fins de semana, eu
frequentava as bibliotecas públicas e lia tudo vorazmente. Creio que, numa
escola convencional, eu não aprenderia tanto.
-Quando você retornou ao seu estado
natal?
-Voltei para o Missouri com 22 anos de
idade.
-Você amava o rio Mississippi desde
guri, quando brincava com seus amigos Tom Sawyer, Huckleberry Finn e Jim, este
um menino escravo. Amava tanto os barcos a vapor que transitava neles, que,
contrariando os desejos da sua mãe viúva, largou seu trabalho de aprendiz de pintor
para pilotar um desses vapores.
-Não foi exatamente isso que aconteceu.
- contestou.
-Narrei trechos do filme a que aludi,
mas Hollywood sempre edulcora a realidade.
-Meu sonho era, de fato, conduzir um
barco a vapor pelo meu amado Rio Mississipi; para tanto, depois de voltar para
o meu estado, pus-me em ação para concretizar esse sonho. Estudei cada metro
dos 3.200 quilômetros de extensão do rio, durante dois anos e recebi a minha
licença de piloto em 1859.
-Li que não era um mau salário para um
rapaz de 24 anos: 72.400 dólares anuais.
-Fazer o que gosta e ainda ganhar para
isso, é o melhor dos mundos, no entanto, não foi, porque topei com uma
tragédia.
-O seu irmão caçula Henry?...
-Eu o convenci a seguir a mesma
profissão minha. Eu consegui uma vaga de ajudante para Henry, no Pennsylvania, o barco a vapor e, num fatídico dia, meu irmão
morreu.
-Foi uma fatalidade. - tentei
consolá-lo.
-Enquanto vivi, carreguei esta morte na
consciência, mas não consegui largar a pilotagem pelo Mississippi.
-Então, Mark Twain, chegou a Guerra
Civil Americana.
-Tive de lutar do lado dos Confederados
porque o Missouri era um estado escravagista. Esta guerra, porém, não me
motivou. Eu, com alguns amigos de farda, deserdamos da companhia mal
transcorreram duas semanas. Escrevi sobre isso no ensaio The Private History of
a Campaign That Failed.
-E o que você fez nessa situação
difícil?
-O meu irmão Orion foi nomeado
secretário do governador do Território de Nevada. Juntei-me a ele e seguimos
para o oeste; fiquei numa cidade mineira de Virgínia onde me tornei minerador.
Sem achar uma só pepita, consegui trabalho no jornal de lá, Territorial
Enterprise.
-Foi aí que usou pela primeira vez o
pseudônimo Mark Twain?
-Sim, e não na história do sapo.
Depois, segui para São Francisco, Califórnia, trabalhando ainda como
jornalista. O conto humorístico sobre a corrida dos sapos, de que já falamos,
se tornaria o meu primeiro êxito literário. Com a publicação no The Saturday
Press, de Nova York, tornei-me famoso por todo o país.
-As pessoas precisavam rir depois de
tantas desgraças. - comentei.
-As portas foram abertas para mim.
Pouco depois, eu viajava, como repórter do Sacramento Union para as Ilhas
Sandwich.
-Hoje, são o estado americano do Havaí.
Mark Twain retomou a palavra:
-Esse nome Sandwich já caía em
desuso no fim do século XIX. O comandante inglês James Cook descobriu as ilhas
em 1778, e as batizou com esse nome para homenagear John Montagu, o Primeiro
Lord do Almirantado da Marinha Real Britânica, que patrocinara a sua viagem.
-John Montagu era o Conde Sandwich?
Aquele que, não querendo sair da mesa de jogo, pediu ao serviçal que lhe
trouxesse um pedaço de carne entre duas fatias de pão, para não se lambuzar e,
assim, inventou o sanduíche? - indaguei.
-Isso; os americanos trocaram o nome do
lugar, mas não há um só dia em que eles esqueçam o sanduíche. - arrematou.
E mais viagens vieram para você:
-Talvez porque gostavam dos meus
relatos de viagem, pois outro jornal patrocinou, logo em seguida, minha ida à
Europa e ao Oriente Médio.
-E como gostavam! Você era muito
demandado para dar palestras.
-Numa dessas viagens, você travou
conhecimento com aquele que seria seu cunhado: Charles Langdon.
-Ele me mostrou uma fotografia da irmã,
e eu me apaixonei na hora.
-Como Tamino por Pamina na ópera “A
Flauta Mágica”, de Mozart.
-Não me fala em ópera que me vem à
mente “Tristão e Isolda”, de Wagner a que assisti na Europa. Foram mais de
quatro horas de tortura para mim.
-Li seu texto sobre essa noite na
ópera; muito engraçado, porém injusto com a obra daquele que foi um divisor de
águas na história da música.
-Divisor
de águas, para mim, era o vapor navegando pelo rio Mississippi. Como vê, não
perdi o humor mesmo morto.
Henry, o irmão de Mark Twain, morreu porque o vapor explodiu.
ResponderExcluirO cinema engatinhava, e não engatilhava.
ResponderExcluir