-------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 5012
Data: 29 de dezembro de 2014
-----------------------------------------------------------------------------
REMINISCÊNCIAS DA MARINHA MERCANTE
PARTE II
Dia 28 de dezembro foi o Dia da Marinha
Mercante. Vamos, então, evocar algumas coisas que ficaram na nossa retentiva.
A SUNAMAM era um feudo da Marinha de
Guerra. Um comandante que lá chegasse não ocuparia um cargo subalterno, mas
esse não foi o caso do comandante Viegas, que era estagiário, o mesmo cargo meu
quando lá apareci em 1979.
Logo entendi essa discrepância: ele era
matusquela.
-De todos os malucos da SUNAMAM, ele é o
maior de todos.- disse-me uma colega de faculdade que chegou um mês antes de
mim.
Eu o via, passando pelo corredor,
sobraçando sempre o mesmo livro intitulado “Buracos Negros”, e guardava
cautelosa distância dele. Mas não adiantou, colegas gozadores lhe disseram que
eu era um brilhante economista, capaz de esquematizar todas as linhas de
produção de farinha de peixe, desde a pesca até a chegada da mercadoria ao seu
destino final.
Produzir farinha de peixe era a ideia
fixa do comandante Viegas. Por mais que eu lhe dissesse que a História do
Pensamento Econômico era a minha especialidade, que eu levaria qualquer
investidor ao fracasso, ele não deixou de me abordar durante um bom tempo,
pedindo os meus pareceres sobre seus planos para produzir e até mesmo exportar
farinha de peixe.
Mas não era só eu que sofria com as
crises do comandante Viegas; certa vez, ditou à secretária do almirante Motta
Veiga um carta endereçada ao
ministro Mário Andreazza. Ela não o contrariou, afinal, ele era, acima de tudo,
comandante. Sobre o que versava essa certa?... Isso mesmo: farinha de peixe, a
necessidade de o Brasil obter divisas para aliviar o Balanço de Pagamentos com
a exportação desse produto.
Havia também o comandante Esdras, que
levava os primeiros óculos do próximo que visse jogado numa mesa, para ir às
reuniões, mas não era só isso. Ele não era comandante, mas se apresentava com
essa patente. Certa vez, o comandante Parga Nina, então chefe do Bureau de
Fretes, atendeu um telefonema dirigido a ele.
-”Como?!... Quer falar com o comandante
Esdras... comandante, advogado, médico, engenheiro, ele é um homem de muitos
anéis. Não, não está aqui.”
Doutor Esdras, na realidade, era
advogado. Anos antes da chegada do Parga Nina à SUNAMAM, o almirante Motta
Veiga incumbiu o doutor Esdras a
aquisição de livros técnicos sobre a Marinha Mercante, quase todos na língua
inglesa, com a verba vinda da Diretoria Financeira para esse fim.
Como eram muitos os cheques e poucos os
livros, Motta Veiga estranhou e foi até a Livraria Leonardo da Vinci. Lá,
descobriu que o doutor Esdras se passava por ele. Os funcionários antigos me
contavam outras histórias escabrosas com o doutor Esdras que, no entanto, não o
afastavam das suas funções, o que só ocorreria com o comandante Parga Nina em
1981. Até então, processos com as reivindicações da Eucatex queimavam nas
nossas mãos.
-Coisas do Maluf é com o doutor Esdras.
- alertavam-me.
Eram também com o Celso Pitta,
porém, o futuro prefeito de São
Paulo não trabalhava mais na SUNAMAM, quando lá cheguei em 3 de setembro de
1979.
Transcorreram mais de dez anos, a
SUNAMAM passou a ser chamada de STA – Superintendência de Transportes
Aquaviários – e nós fomos apresentados ao computador.
Vigia a famigerada reserva de mercado, a
Lei da Informática, Lei nº7232, de
29 de outubro de 1984, alvo de pesadas críticas dos brasileiros lúcidos,
principalmente, do Roberto Campos.
Assim, no lugar do “Lotus 1,2, 3”,
tínhamos de nos contentar com o “Samba”; em vez do “Database”, “o “Dialog”;
e, substituindo o “Word”, o
“Fácil”. Uma lástima.
Depois do curso que fizemos com esses
programas nacionalistas, colocaram um computador numa saleta do nosso andar,
décimo-primeiro. O mesmo era dividido entre os funcionários do Bureau de Fretes
e os da Divisão de Granéis. Nós tínhamos o computador à disposição durante o
período da manhã, e o pessoal do granel durante a tarde.
Quando havia algum problema com os
“bits” e “bytes”, era convocado o Jorge Ano Bom, lotado na Informática, para
nos socorrer. Certa vez, eu mesmo me atrevi a resolver uma dificuldade, não
seguindo o sábio provérbio romano: “Não vá o sapateiro além dos sapatos”.
Que desgraça que eu fiz!
Covardemente, fugi do local do crime.
Quem se deparou com aquela burundanga chamou o Jorge Ano Bom. Ele, coitado,
suou para deixar o computador apto para o uso novamente.
-Mexeram na formatação; conseguiram essa
façanha.- informou, mas como era de boa índole, em momento algum procurou saber
quem fora o culpado.
Pouco tempo depois, ele saiu da
Informática e veio trabalhar junto a nós na Navegação, trazido pelo comandante
Palhares.
Transcorridos uns vintes anos requentei esse caso com ele.
-Sim, mexeram na configuração do
computador.
-Fui eu, Jorge.
Ele sorriu e eu fiquei mais descansado
com a minha consciência.
E o Dieckmann voltou. Explico: antes da
Divisão de Granéis, nós dividíamos o andar com a Diretoria de Engenharia. Com a
edição do Decreto-Lei nº 2055 de 1983, da Presidência da República, que
reestruturou a SUNAMAM, a Engenharia foi uma das diretorias extintas. Dieckmann
se mudou para outro setor, e, pouco depois, saiu para outras plagas.
Transcorrido mais de uma década, a SUNAMAM, depois de receber alguns nomes, era
agora o Departamento de Marinha Mercante; foi quando ele voltou.
-Quem é esse tal de Dieckmann? -
perguntou o POPA, quando soube que ele empalmaria o seu cargo de Coordenador-Geral
da Marinha Mercante.
Essa pergunta foi feita praticamente por
todos que aguardavam o novo chefe. As colegas noveleiras disseram, logo, que
ele era pai de uma promissora atriz da TV Globo. Bastou para que os mais
imaginosos aventassem a hipótese que ele era uma indicação do doutor Roberto
Marinho.
Quando se soube que o servidor do seu
endereço eletrônico era globo.com, cresceu o número de pessoas que imaginavam
que o Dieckmann fosse ligado aos
donos das Organizações Globo. Nessa altura dos acontecimentos, os mais crédulos
já diziam que o Dieckmann era benquisto por Dona Lily de Carvalho Marinho.
Evidentemente que esses rumores chegaram
até ele, que nada falava, fazia cara de paisagem, ou de samambaia, conforme dizia a Tia Carla, nossa
professora do MBA.
Em dezembro de 1999, uma reportagem na
primeira página do segundo caderno do Globo convenceu os mais céticos. Nessa
reportagem, via-se em letras garrafas que o primeiro grande evento do segundo
milênio seria a exposição de carros antigos e o Dieckmann, como colecionador,
tinha o seu nome em destaque. Viriam os carros de Santos Dumont, da Isadora
Duncan, de Gabriela Bezanzoni, Giacomo Puccini, Ciccillo Matarazzo, etc, etc.
Firmou-se, então, a convicção que o
nosso chefe tinha um padrinho poderosíssimo.
E o grande evento? - perguntarão os
leitores. Bem, parece que ficou
para o terceiro milênio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário