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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5010 Data: 26 de dezembro de 2014
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196ª CONVERSA
COM OS TAXISTAS
Eu ia do Centro ao Engenho Novo, bairro
do Dom Casmurro. O taxista não fazia o meu costumeiro trajeto de Maria da Graça
a Del Castilho, mas isso não impediu que conversássemos como se nos
conhecêssemos há algum tempo.
-Já está acabando 2014. - quebrou o
silêncio de um minuto.
-Um ano de fatos inusitados; até corre
uma piada na internet que, em 2014, Eike Batista ficou pobre, Xuxa foi
demitida, a Petrobras faliu, o Rubinho foi campeão e esqueceram de citar a
derrota do Brasil para a Alemanha, nosso antigo freguês, por 7 a 1, aqui, em
plena Copa do Mundo.
-Um fato esquisito que aconteceu comigo
ainda hoje, mesmo: peguei um passageiro chinês.
-Onde?
-Na Barra da Tijuca.
-Soube que há muitos chineses por lá,
não se banhando na praia, mas trabalhando.
-Esse passageiro chinês estava com uma
maleta de executivo.
-Li uma entrevista de um brasileiro,
que se interessou tanto pela cultura da China que até aprendeu mandarim, a língua
de lá. Ele se refere às bizarrices dos chineses.
-Que comem carne de cachorro?...
-Quando ele trata da culinária, não se
detém sobre o nosso melhor amigo. Fala das barracas que vendem abelhas,
besouros, escorpiões, aranhas, centopeias, mas que não são comidos por eles e
sim pelos turistas que se aventuram pelos pratos exóticos.
-Estou fora. - reagiu.
-Dos costumes insólitos de que falou o
que achei mais interessante foi a briga dos casais.
-É diferente dos casais daqui?
-Lá, quando marido e mulher brigam, o
vizinho bate à porta e leva as crianças dos briguentos para a sua casa.
Encerrada a briga, o casal vai ao vizinho e traz o filho de volta. (*)
-Poxa, se eu tivesse um vizinho chinês,
escaparia das discussões dos meus pais. - desabafou.
-Muitos problemas psicológicos não
surgiriam, porque estamos mais vulneráveis na infância. - comentei.
-Não deve existir psiquiatra por lá.-
imaginou.
-Outra coisa – lembrei – ninguém pede
esmolas na rua.
-Caramba, estou gostando da China. Não vou para lá
porque eles oferecem aranhas, besouros e escorpiões para os turistas comerem. -
brincou, enquanto eu saltava do seu táxi.
O taxista seguinte era bem mais falante
do que o outro e o assunto não foi a China e sim, os Estados Unidos da
América. Como chegamos a esse país,
naquele táxi, confesso que não sei; as palavras, que brotavam aos borbotões da
sua boca, confundiram a minha memória.
-Veja esse negócio de Dia das Bruxas; é
o cúmulo que brasileiros comemorem essa coisa dos americanos. - rezingou.
-Guloseimas ou travessuras; as
guloseimas nós temos no Dia de São Cosme e Damião, as travessuras também. -
manifestei-me.
-Amigo, nós não precisamos copiar nada
deles, temos de seguir a nossa tradição.
Sem tomar fôlego, prosseguiu:
-Agora, tem um tal de “Walking Dead”...
-Desconheço.
-É a festa dos zumbis; isso tem muito
na zona sul.
-Não seria a velha festa à fantasia em
que alguém vai trajado de zumbi? - calei a minha pergunta.
-A minha filha não ganha um tostão meu
para participar dessas coisas dos americanos. - vociferou.
-O Dia das Bruxas é muito divulgado nas
escolas, o que não acontecia na minha época de estudante. - manifestei-me.
-É o cúmulo – indignou-se – as escolas
brasileiras não ensinarem às crianças as nossas raízes: o saci-pererê, a mula
sem cabeça, o curupira, o boto tucuxi...
-Nosso folclore deveria ser mais
conhecido. - concordei.
-Isso cabe às nossas escolas; mas não,
eles ensinam “Halloween”.
O asco com que falou “Halloween”
atrapalhou ainda mais a sua pronúncia.
-Os americanos nos olham com desdém, como
se fôssemos lixo, e ainda babamos por eles. Os brasileiros que foram ganhar a
vida nos Estados Unidos só conseguiram empregos horríveis, como o de varredor
de rua e, como moradia, porões. Aqui é bem diferente; se eu estiver com
problemas financeiros, pego uma caixa de isopor, encho de cerveja, mate ou
refrigerante e vou vender na praia. Qualquer pessoa tem como se virar nesta
terra. Vai se virar nos Estados Unidos?...
-É mais difícil. - limitei-me a dizer.
-Minha mulher trabalha com os dados
cadastrais das pessoas que querem viajar para lá. Uma nojeira. Eles querem
saber de tudo sobre nós. O que você vai fazer?... Quanto tempo vai ficar?... O
diabo. Eu não me submeto a isso.
-É bom viajar para os Estados Unidos
com muitas malas vazias e retornar com elas cheias, pois lá as coisas são bem
mais baratas. - interferi.
Mesmo esse fato incontestável não
abrandou a sua ira.
-Mas não vale o esforço.
E prosseguiu:
-Eu só conheço uma exceção: uma moça
muito estudiosa, que conseguiu uma bolsa de estudo para a melhor universidade
dos Estados Unidos.
Percebi que pretendia nomear a
universidade, mas sua memória rateava.
-Harvard... Ela vai estudar em Harvard.
Como terá um alojamento da própria universidade, não haverá problemas de
moradia para a moça. Mas só assim vale a pena ir.
Calou-se, pensei que mudaria de
assunto, mas reiniciou a sua diatribe contra os americanos.
-Beisebol... Eu tenho visto brasileiros
jogando beisebol... Não é esporte da nossa cultura.
-Nem conhecem as regras. - intervim.
-Vão jogar pelada, mas beisebol, rugby
não são coisas nossas.
-E a Barra da Tijuca com a réplica da
Estátua da Liberdade? - provoquei-o.
-Por que não colocam a réplica do
Cristo Redentor?... do bondinho do Pão de Açúcar?... Não, eles querem ser
americanos. - bradou.
-Os cinemas da Barra recebem o nome de
“UCI New York City Center”. - persisti na provocação.
-Querem ser americanos, vão para lá
dormir em porões. Se eu quero conhecer belos lugares, vou a Cabo Frio, a
Paraty, ao Recife...
Se ele citar Brasília, eu defenderei os
Estados Unidos. - pensei.
-Lençóis Maranhenses, que não conheço,
mas deve ser uma beleza. Não preciso ir à Disneylândia, Miami, Nova Iorque;
tenho aqui tudo o que me agrada.
-Mas a influência da cultura americana
se espalhou por quase todo o mundo, Cuba é das poucas exceções. - assinalei.
-Não por muito tempo; Cuba, daqui a
pouco, estará cheia de McDonald's com a população bebendo Coca-Cola,
empanturrando-se de Big Mac e assistindo a filmes no “UCI New York City
Center”.
-Pelo menos, a frota de veículos de Cuba
vai melhorar com essa aproximação com os americanos. - disse-lhe. (**)
-Isso é verdade; por que dirigir
aquelas latas velhas...
Lamentei, no fim da corrida, não ter
uns 10 dólares no bolso, para lhe perguntar: “Aceita o pagamento em dólar?” (***)
(*) o Distribuidor
do seu O BICOITO MOLHADO esteve em Xangai, a menos chinesa das cidades da China
(Hong-Kong fora) e pode ver hábitos um tanto diferentes, como cozinhas,
lavanderias (o tanque e o varal) e banheiros comunitários. Em guetos que lembram
muito qualquer comunidade brasileira, só muda a integração entre os moradores.
(**) A fama
da frota de Cuba, com automóveis americanos pré-1959, fez, na verdade a maior
propaganda que os automóveis americanos poderiam merecer.
(**) Este
Biscoito foi o mais internacional de todos os Biscoitos. Por coincidência, o
Distribuidor estava minutos antes discutindo com um amigo que esteve em Oshkosh,
no evento de aviões. Talvez seja um motivo para tirar o visto americano, coisa
que o Distribuidor abomina. Este é o grande diferencial dos EUA, eles sempre
procuram oferecer o que têm de melhor. E faturar em cima, a meu ver,
licitamente.
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