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O BISCOITO MOLHADO
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EU E ELIO NO BANDO DE LAMPIÃO
-Carlos, a água que vemos é o suor. A
boca secou sob esse sol escaldante. A poeira rejeita qualquer vida sob ela. Os
animais não têm carne sobre a carcaça.
-Elio, não estamos no ambiente das
filmagens de Vidas Secas. Deixe de exageros, até mandacaru se vê por aqui. -
chamei-o à fria realidade, que não estava assim tão fria.
-Mas que estamos na inóspita caatinga, é
uma verdade. - frisou.
-Seus ascendentes viveram no clima frio
da Europa, mas logo você se acostumará. - animei-o.
E andamos, andamos, desviando-nos dos
espinhos e das queixadas de boi, até que o Elio parou e fez uma observação:
-Se pelo menos a Baleia estivesse
conosco para distrair a nossa atenção...
-Baleia?!... Pensando em mar numa hora dessas?
-É a cadela, Carlos.
De repente, divisamos no horizonte um
bando a cavalo que crescia à nossa vista como se o olhássemos com binóculos.
Eram cangaceiros.
-Vocês não são macacos?...
-Eu não, nem acredito no evolucionismo.
- garantiu o Elio com a voz titubeante.
-Quando cubro um macaco com a mira do
meu rifle, ele morre porque Deus quer; se Ele não quisesse, eu errava o alvo.
Em seguida, percorreu-nos com os olhos
dos pés à cabeça e concluiu:
-Bem, vocês não estão vestidos com o
uniforme dos macacos.
Virou a cabeça para trás e disse com a
determinação de quem não é contrariado.
-Carne Seca, traga dois cavalos, alpercatas
e roupa para os dois.
-Vocês não vão se juntar a nós com esses
trajes de palhaços. - voltou-se para nós?
-Sim, Seu ...
-Virgulino Ferreira da Silva.
-É o Lampião. - disseram os olhares que
eu e Elio trocamos com uma eloquência que a fala não atingiria.
E assim, eu e Elio entramos para o bando
de Lampião.
No meio daqueles cangaceiros armados até
os dentes, nós dois não trocávamos uma sílaba, mas, quando nos víamos fora do
alcance dos ouvidos deles, que eram uns 100, conversávamos.
-Carlos, você reparou como a Maria
Bonita é jeitosinha...
-Controle-se, Elio, pense que nem
costureira ela é.
-Ela me olhou de uma maneira...
-Desvie o olhar, Elio, desvie o olhar.
Você sabe o que aconteceu com o marido dela?...
-Ela era casada antes de conhecer o
Lampião?
-Era casada com José Neném, um
sapateiro. Lampião a viu, quando ela estava com 19 anos de idade. Maria Neném
aceitou ser Maria Bonita, enrolou o seu colchão debaixo do braço e acenou um
adeus ao marido abandonado que, ainda assim, levou sete tiros, e um deles o
cegou do olho direito.
Eu não estava certo desses sete tiros, mas
precisava amainar o fogo do Elio.
-O diabo é que este potente sol inflama
o meu instinto reprodutor, mas controlarei o dito cujo.
-Controle, Elio, controle.
Cético, com a promessa do Elio, intentei
ser convincente no meu discurso.
-Você sabe por que ele recebeu o
codinome de “Rei do Cangaço”?... Pela crueldade com que tratava as pessoas.
Lampião mata seus inimigos encravando punhais entre a clavícula e o pescoço.
Ataca, com seu bando, fazendas e cidadezinhas, pilhando, queimando, estuprando
e até sequestrando crianças. Uma vez, antes de executar um desafeto, obrigou-o
a comer 1 quilo de sal, ou seja, se escapasse da peixeira, morreria de derrame
cerebral.
-Carlos, um livro que li dizia que
Lampião era um Robin Hood, que roubava os comerciantes e fazendeiros abonados
para distribuir com os mais pobres.
-Certamente um livro de autor comunista,
que romantiza os bandoleiros. - bradei com veemência.
-Uma coisa é certa, ele inferniza o
sertão por quase 20 anos; várias volantes já foram enviadas pelo governo e o
seu bando derrotou todas.
-Já deteve a sua atenção nas armas
deles, Elio?... São espingardas Mauser, pistolas semiautomáticas, rifles
Winchester...
-Contrabandeadas não foram, pois os
meliantes do cangaço ainda não tinham chegado a esse nível de crime como nos
Estados Unidos da Lei Seca.
-Essas armas são despojos das volantes e
grupos paramilitares que eles derrotam pelo caminho. - disse-lhe.
-Todos concordavam numa coisa, Carlos:
Lampião era um arguto estrategista.
-E conhecia bem o terreno; foi almocreve
antes de passar para a sobressaltada vida de criminoso. - acrescentei.
A máquina do tempo nos fez recuar 10
anos, conduzindo-nos a 1926, mas sem nos arrancar daquele lugar espinhoso e de
vegetação rala. Continuávamos no bando de Lampião.
A aproximação de um cangaceiro de maus
bofes interrompeu uma conversação entre mim e o Elio.
-O chefe quer falar com vocês dois.
E, enquanto estremecíamos com o
inesperado, o sujeito bradou:
-O que estão esperando?... Vamos lá.
Se fosse alguma coisa terrível para nós,
seríamos arrastados até ele, e não convocados, embora de maneira ríspida.
Tínhamos de manter a tranquilidade.
Diante de Lampião, nesse momento, por
estranho sortilégio da mente, vieram-me as incontáveis histórias que li e ouvi
sobre ele, os muitos filmes, e nenhum deles terminou bem.
Recebeu-nos com uma carta na mão e
ajeitando os óculos no nariz.
-Chamei vocês dois porque quero ouvir a
opinião de quem é de fora.
Era algo sério, pois o seu rosto,
envolto pelos cabelos espicaçados, estava mais crispados do que o costumeiro.
-O governo federal pediu a nossa ajuda
para combater a Coluna Prestes. Vocês, que me parecem bonitinhos das cidades do
sul, sabem o que é isso?... Essa Coluna?...
-É uma marcha que reúne militares
rebelados, principalmente tenentes. - antecipei-me
-A importância da Coluna Prestes foi
tamanha que inspirou Mao Tse Tung na Grande Marcha, na China, o que
consolidaria a sua vitória sobre Chiang Kai-shek.
Ouvi e cutuquei o Elio, que saíra do
contexto.
-Esses tenentes são rebeldes como
nós?!... Ainda assim, penso em combatê-los, pois nos oferecem fuzis
automáticos. O diabo é eles quererem que usemos as suas fardas; nenhum dos meus
homens quer vesti-las, muito menos eu. Prefiro usar as roupas com que vocês
chegaram aqui.
Enfim, jogou fora a sua hesitação:
-Aceitarei a proposta do governo pelos
fuzis automáticos.
Dispensados, eu e Elio cochichamos.
-A que ponto caiu o governo Artur
Bernardes, pedir ajuda a cangaceiros criminosos.
-E o Prestes não era ainda comunista,
Carlos, nessa época.
Avançamos 12 anos no tempo, estávamos em
1938, numa fazenda, cujo nome nós não sabíamos, no Sergipe. Adormeci lendo as
notícias sobre as ações autoritárias do Estado Novo de Getúlio Vargas num
jornal datado de 27 de julho de 1938.
Amanhecia. Uma voz chegou-me aos ouvidos:
“Acorda, Maria Bonita. Levanta, vá fazer o café.”
Alguns do bando ainda dormiam, outros
estremunhavam. De repente, espocaram tiros de todos os lados. Aquele terrível
despertador colocou todos de pé. Uns se levantavam para retornar ao chão,
esvaindo-se em sangue.
-Malditos macacos! Caímos numa
emboscada!
O som de armas, que não perdia o fôlego,
colocava todos de cabelo em pé; eram as metralhadoras Hotchkiss, em número de
quatro, que tornavam a luta desigual.
-Carlos, agora, sei o nome desta
fazenda: Angicos. - sacudiu-me o Elio.
Lampião já estava morto, Maria Bonita,
ao seu lado, agonizava. Os policiais, que vinham de Alagoas, não temendo mais
as balas inimigas, vieram empunhando facões terminar o serviço.
Deu-se início à degola dos derrotados.
-Carlos, vão cortar a cabeça da Maria
Bonita, que ainda vive. - disse o Elio tomado pelo horror.
Vislumbrei que um cangaceiro sobrevivera
e dava início a sua fuga.
-Elio, vamos atrás dele para escapar
desta carnificina.
E assim o fizemos. Depois de horas de
cavalgada, soubemos o seu nome: Corisco.
-Elio, começamos esta história na “Vidas
Secas” e vamos terminar no “Deus e o
Diabo na Terra do Sol”.
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