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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4861 Data:
01 de maio de 2014
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131ª VISITA À MINHA CASA
-Charles Dickens, você menino, sofreu
muito, mas o paroxismo do seu sofrimento foi provocado por sua mãe, que queria
que você continuasse trabalhando na colagem de rótulos de graxa na fábrica de
um amigo da família, não é isso?
Eu não pretendia lembrar casos delicados
da vida do grande escritor inglês, que me visitava, mas ele mesmo me demoveu
dessa ideia, contando-me tristes acontecimentos da sua infância.
-Meu pai era um perdulário, sonhador,
não aceitava a realidade, que a sua posição social caíra; endividou-se muito.
-E os credores foram implacáveis?
-Nós nos mudamos para um bairro mais
pobre de Londres, Camden Town; moramos em quartos baratos. Meu pai empenhou os
talheres, para fazer frente às dívidas e se desfez do meu paraíso, que era a
biblioteca. Mas a realidade foi ainda mais cruel e ele foi preso.
-O prisioneiro por dívidas, naquele
tempo, na Inglaterra, podia ter a família morando com ele no presídio?
-Sim; e eu fui destacado para trabalhar
numa fábrica que produzia graxa para os sapatos com betume. Eu ganhava seis
xelins por semana para sustentar a minha família encarcerada na prisão para
endividados. Eu só ia para lá dormir e, depois, seguia para o torturante
trabalho.
-Com essa quantia irrisória, Dickens,
você não conseguiu sanar as dívidas do seu pai?
-Claro que não. Ele conseguiu sair da
cadeia, com a família, e melhorar a sua situação financeira, quando recebeu uma
herança do meu avô.
-A sua mãe, no entanto, queria que você
permanecesse no trabalho de rotular frascos de graxa.
-Nunca a perdoei por essa maldade. Se eu
dissesse o contrário, estaria mentindo para mim mesmo, o que é a pior forma de
mentira.
-Você se identificava com o seu pai, não
é verdade?
-Gostava mais dele, apesar das suas
estripulias que se refletiram na minha vida, como vimos.
-Os estudiosos da sua obra afirmam que o
personagem Wilkins Micawber, do David Copperfield, foi inspirado no seu pai.
Sem tocar nessa questão, por demais
óbvia, disse-me que certa vez, ainda menino,
se encantou com uma grandiosa mansão, era a Gad' s Hill Place. Ao
expressar meu deslumbramento, papai me disse que, se eu fosse perseverante, se
trabalhasse duro, eu poderia algum dia vir a morar nela.
-Os sonhos do seu pai o contagiaram? -
interrompi.
-Ao saber que cenas do Henrique V de
Shakespeare foram encenadas lá, fiquei ainda mais encantado com o passar dos
anos. Trabalhei duro e com o dinheiro que consegui com a minha obra literária,
adquiri aquela casa.
-Foi uma maneira de demonstrar que seus
sonhos de infância não soçobraram todos diante da dura realidade. - disse, arrependendo-se,
logo em seguida, por esse comentário tosco.
-Meu pai não foi um doidivanas, como
muitos podem julgar.
-Ficou gravada numa placa em Gad' s
Hill Place o conselho que o seu pai lhe dera para consegui-la e o tempo em
que foi sua propriedade, de 1856 até 9 de junho de 1870, data da sua morte.
-Apraz-me saber que lembraram as
palavras do meu pai para mim, sem elas, provavelmente, eu moraria em outro
lugar.
As desilusões amorosas o marcaram muito,
Dickens? - perguntei, mas com tonalidade afirmativa.
-Meu primeiro grande amor foi Maria
Beadnell, e eu era correspondido, porém, o pai dela era banqueiro, enquanto eu
pulava de um emprego para outro, de escritório de advocacia – tenho minhas
reservas com os advogados – a estenógrafo de tribunal. O pai a levou para uma
viagem à França para curá-la do seu amor por mim e, quando ela retornou, viu-me
com outros olhos. Como eu sofri!
-Maria Beadnell viu um pobretão com
dezoito anos de idade. Muito tempo depois ela intentou requentar esse amor.
-Como me iludi! Eu não vivia bem com
minha esposa há muito tempo, quando soube que iria rever meu primeiro grande
amor, o meu coração acelerou. A realidade desabou para mim: passaram-se vinte e
cinco anos no segundo em que a vi; enrugada, gorducha, feia, tola...
-E a sua esposa Catherine Hogarth?
-Casamos em 1836, e foram dez filhos.
Minha cunhada Mary, de 17 anos, veio morar conosco para ajudar a irmã grávida.
Ela morreu no ano seguinte nos meus braços. Sua morte prematura me aniquilou
por muito tempo.
-Você sublimou esse drama na tocante
narrativa da morte da pequena Nell no seu romance Loja de Antiguidades?
-Sempre se encontrará passagens da minha
vida e pessoas que me marcaram nos meus livros.
-Você se separou da sua esposa, mas sem
se divorciar.
-Vivíamos a era vitoriana, o divórcio
era um estigma. Nós nos apartamos um do outro, contudo, custeei todos os seus
gastos enquanto viveu.
-Outra irmã dela, Georgina, também
cuidava dos seus filhos, e permaneceu nessa tarefa mesmo depois da sua
separação. Houve rumores...
Charles Dickens interrompeu-me com
alguma brusquidão.
-Daqui a pouco, terei de ir-me, e não
nos detemos em uma só obra literária minha.
-Sei que você era um trabalhador
compulsivo, que foram muitas as páginas que escreveu. Seu primeiro romance foi
“Os Documentos Póstumos do Clube Pickwick”.
-Eles me queriam para redigir textos
baseado em ilustrações; fui, evidentemente, contrário a isso, apesar de
iniciante, o razoável seria a inversão de papéis.
-As imagens surgindo dos textos.
-Robert Seymour foi um talentoso
ilustrador, suicidou-se, o que é lamentável. Havia outro ilustrador, que era
conhecido pela alcunha de Phiz, e ele ilustrou também o meu romance seguinte,
“Oliver Twist”.
-Conheço “Oliver Twist” pelo livro,
pelas versões cinematográficas, pela minissérie realizada pelo BBC. Como o
menino sofreu até alcançar um verdadeiro lar!
-Primeiramente, “Oliver Twist” foi
divulgado em folhetins semanais,
-Você mostrou, nesse romance, o submundo
da sociedade vitoriana, os desfavorecidos, os males sociais.
-Em Londres, na época, viviam mais de um
milhão e meio de almas. Muitos camponeses tinham sido expulsos das terras para
que se expandisse, principalmente, a criação de ovinos; eles vieram, então,
procurar emprego nas fábricas de tecido londrinas.
-Os socialistas alardeavam que os
espoliados eram a mão de obra barata da indústria têxtil. E que o trabalho
infantil foi a grande chaga da economia britânica.
-Eu senti isso na pele, mas não limitei
tudo o que vivi ao cenário econômico, a ser um porta-voz da classe operária.
-Você era talentoso demais para isso.
Você era um artista. - enfatizei.
Como se mantivesse calado, prossegui:
-Por não ter sido um revolucionário,
politicamente falando, suas criações foram aceitas por todos, ricos e pobres, e
a sua fama se espalhou pelo mundo e perdura até hoje.
-Meus personagens não melhoraram de vida
pegando em armas.
-”Canção de Natal”, publicado em 1843,
quando você estava com trinta e um anos de idade, é lembrado até hoje em quase
todo o espectro da arte. O “Scrooge” da sua história é a personificação da
sovinice. É nome de uma das mais conhecidas figuras da história em quadrinhos
que, no Brasil, é chamado de Tio Patinhas.
-Os fantasmas assombraram o avarento. -
esboçou um sorriso aludindo ao seu conto de Natal.
-Leon Tolstoi, um dos mais consagrados
romancistas da literatura universal, apontava “David Copperfield como a grande
obra-prima das letras.
-Eu tinha, no meu espírito, toda a
matéria-prima para transformá-la em obra de arte.
-David Copperfield foi o romance em que
você expôs mais a sua vida?
Não me respondeu, pois partira para
outras plagas.
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