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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4860 Data: 29
de abril de 2014
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SABADOIDO DE PARTIDAS E CHEGADAS
PARTE II
-E, então, Claudiomiro? - saudou-o o
Luca.
-O Vagner, mais uma vez, não deve vir
hoje.- manifestou-se meu irmão.
-Viram a entrevista do Joaquim Barbosa
ao Roberto D' Ávila?
-Essa entrevista foi tarde.
-Mas você pode gravar, na sua televisão
da NET,Gina.
-E eu vou gravar entrevistas,
Carlinhos?!... - reagiu a Gina.
Claudio, por outro lado, respondeu ao
Luca afirmativamente.
-O Joaquim Barbosa, fazendo a ressalva
que Napoleão foi ditador, disse que tinha uma grande admiração por ele como
homem de estado.
-O Código Civil Napoleônico foi tão
importante quanto as batalhas que ele venceu. - afirmou meu irmão, que é mais
ligado aos juristas do que aos militares.
-Ele disse que passou na prova do
Itamaraty e foi barrado na entrevista por ser negro?
-Referiu-se ao racismo no Brasil, mas
não se deteve nesse ponto. - satisfez o Luca a minha curiosidade.
-Falando em Itamaraty... - nas
reticências, Luca sacou do envelope um recorte de jornal feito pela Rosa.
Tratava-se de um artigo do Ruy Castro na Folha de São Paulo.
-Você não vai ler tudo?- incomodou-se
meu irmão.
-Não, Claudiomiro, vou ressaltar apenas
um parágrafo.
E leu a parte em que um repórter da
Última Hora perguntou ao Nélson Rodrigues, muito doente, quais seriam as suas
derradeiras palavras e ele disse: “Que boa besta é o Marx”.
Depois de frase tão contundente, até o
Claudio quis saber o que vinha a seguir. E o Luca, resumidamente, foi adiante:
Nélson Rodrigues desancava os líderes comunistas, Stalin e Mao Tse-Tung.
-Esta parte eu vou ler. E leu:
-”Mas as coisas mudam. O ministro do
Esporte, Aldo Rebelo, mandou rodar 50 mil exemplares de um livro de crônicas do
Nélson, “A Pátria de (sic) Chuteiras”, para distribuição em escolas e
bibliotecas. A seleção foi feita pelo próprio Aldo Rebelo, eminente cartola do
PC do B – partido que, como se sabe, sempre se ditou caninamente por Marx,
Stalin e Mao Tse-Tung. É refrescante saber que Aldo Rebelo trocou suas antigas
admirações por Nélson Rodrigues.”
Em seguida, estendeu o braço de modo que
eu visse a crônica.
-Sabe o porquê deste “sic”?
Sem aguardar, fui adiante:
-Nélson Rodrigues escreveu, de fato, “em
chuteiras”, mas a presidente Dilma, mete-se a citá-lo e sempre comete alguma
lambança. Como ela disse, num discurso, “A Pátria de Chuteiras”, ficou assim.
-O inverno está longe, mas já faz frio. -
mudou a Gina de assunto.
-O frio que eu sentia nos invernos do
colégio interno... - arrepiou-se o Luca com a lembrança.
-Li, numa carta da Rosa, que ela diz que
você superou muitas coisas, entre elas, o colégio interno. Você, enfim, sofreu
como um menino dos romances de Charles Dickens, mas não me recordo de menção
alguma dela a esse escritor.
-Que ela leu toda a obra dele, ou quase
toda, eu não tenho dúvidas.
-Eu também não. - concordei.
Claudio passou o tema da conversa para o
cinema. Luca elogiou os filmes brasileiros a que tem assistido, enquanto a Gina
se opunha a eles.
-Tenho visto boas cinebiografias, como
“Caro Francis.” - entrei no debate.
-Ele morreu mal.- disse o Claudio.
Tomei a palavra:
-Gostei muito, nesse documentário, da
reação do Gustavo Krause, quando foi chamado de “Jeca” pelo Paulo Francis ao
ser nomeado ministro da Fazenda pelo Itamar Franco. Gustavo Krause, ao ser
entrevistado, disse que homens como Sérgio Porto, Nélson Rodrigues e Paulo
Francis são necessários para sacudir um país da mesmice intelectual; e disse
que era jeca mesmo.
-É difícil se ver isso. - elogiaram o
“ofendido”, com exceção da Gina.
-Filme que vi agora, na televisão e
gostei mais do que da primeira vez foi “Irma la douce”- manifestei-me.
-O Billy Wilder é sempre bom. -
pronunciou-se o Claudio.
Nesse instante, a Gina retornou para
dentro de casa, enquanto soavam do teclado do Daniel, mais uma vez, as notas
tristes do “Tema da Vitória”.
-Billy Wilder não é o diretor de
“Testemunha de Acusação”?
-Isso, Luca.
-Depois, fui ler o trecho da biografia
do Billy Wilder, da Charlotte Chandler, sobre o filme, compreendi, então,
algumas coisas que estranhara.
-E o que você estranhou no filme,
Carlinhos?
-Achei a Shirley MacLaine travada no
papel de Irma e soube, lendo, que ela sentiu ciúmes da atenção que o Billy
Wilder dava ao Jack Lemmon. Afirmou ela que o filme deveria se chamar “Nestor,
o Doce”, e não “Irma la Douce.”
-Nestor Patou, este era o nome do
personagem do Jack Lemmon. - afirmou meu irmão com a expressão de triunfo por
ter se lembrado do sobrenome francês.
E foi adiante:
-Quem está muito bem na fita é o Lou
Jacobi.
-Esse papel seria do Charles Laughton,
mas ele faleceu antes das filmagens.
Luca retornou ao assunto anterior.
-O Gustavo Krause não foi aquele que
ficou muito pouco tempo no ministério?
-Não chegou a dois meses. Ele dizia que,
para suportar as pressões do cargo, passou a tomar Lexotan. - respondi.
-O Fernando Henrique era macaco velho,
tinha jogo de cintura para enfrentar a hiperinflação.
-Ele, Luca, dizia que bastava pôr a
cabeça no travesseiro que dormia, que isso era uma bênção. - lembrei.
-Vou pegar os copos da bebida. - soergueu-se
o Claudio da cadeira.
-E a Rosa, como está?
-Carlinhos, há uma semana que não vejo a
Rosa. Ela deixa as suas coisas na banca de jornal do Édson e eu, as minhas.
Tudo medido em envelopes; depois, cada um pega o seu.
-Nos romances dos séculos passados,
aludiam muito à posta-restante. A Rosa deve se sentir à vontade dando mais uma
utilidade para a banca de jornal.
-Mas ela prefere mesmo é que seja uma
troca com remetente e destinatário cara a cara. - disse-me.
-Ela já superou a morte do Cipião?
-Ela é extremamente dedicada aos gatos.
-Reportou-se ao felino, Luca, e eu me
lembrei de uma gatófila ilustre, a psiquiatra Nise da Silveira.
-Ela trabalhou no hospício do Engenho de
Dentro e era seguidora do Jung. - manifestou-se o Luca.
-Há um texto dela tão significativo que
até sei de cor.
E pus-me a reproduzi-lo:
“Não se curem além da conta. Gente
curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer
um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente,
eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.”
Nem terminei de falar, e ele se pôs a
recitar versos de Fernando Pessoa sobre o rei Dom Sebastião, do poema
“Mensagem”:
“Sem a loucura que é o homem,
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?”
-Ficou bêbado antes de beber, Luca? -
brincou o Claudio, que voltava com os copos de bebida ao vê-lo declamando.
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