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quarta-feira, 7 de maio de 2014

2608 - uma Brahma para Brahms



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4858                                 Data: 23 de  abril de 2014
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130ª VISITA À MINHA CASA

-Quem diria que, aos 10 anos de idade, o sucessor de Beethoven tocava nas tabernas de Hamburgo! - exclamei.
-E Mozart, com essa idade, já havia tocado para reis e papa, e já preparava duas óperas. - respondeu-me Brahms, que me agraciava com uma visita à minha casa.
-Por que você, tão garoto, já se expunha nas noites de Hamburgo para pessoas, acredito, comumente bêbadas?
-Meu pai era contrabaixista e o seu meio de vida era tocar em bares e tabernas próximas ao porto, onde sempre havia gente suficiente para formar uma plateia.
-Ele fez com você o que papai Leopoldo fez com Mozart e a irmã, exploração de mão de obra infantil, com a diferença que os irmãos tocavam para a nobreza e o clero.
-Não julgue meu pai superficialmente. Ele expressou seu encantamento com a minha habilidade para a música, quando eu mal completava 7 anos de idade. Decidiu, então, que eu estudaria com Otto Cossel para desenvolver minha aptidão. Mas o nosso dinheiro era curto e eu, já um homenzinho, com 10 anos de idade, concordei em trabalhar com ele para aumentar o orçamento da família.
-Você, então, nunca se sentiu explorado?
-De forma alguma; desde cedo, conheci a ética do trabalho. Eu investia na minha formação. Para mim, a música estava acima de tudo e eu não me importava se a plateia carregava joias ou sacos de cimento.
-Quando falam em Brahms, as pessoas pensam logo no homem de barbas longas, como se já tivesse nascido assim; porém, a sua infância, adolescência e mocidade foram ricas.
-Talvez porque eu tivesse composto as minhas quatro sinfonias depois dos 40 anos. - levantou a hipótese.
E prosseguiu com dados autobiográficos:
-Com 10 anos de idade, eu realizei o meu primeiro concerto público, executando obras de Mozart e Beethoven.
-Como as apresentações em cervejaria eram lucrativas e seu pai precisava pagar suas aulas... - intervim com um tom de voz insinuante.
-Assim, eu tive aulas com Eduard Marxsen que, além de ser compositor, regia a Filarmônica de Hamburgo.
-Trata-se de um clichê, Brahms, mas não tenho pejo em usá-lo na falta de uma comparação melhor, no momento: você era um diamante que estava sendo lapidado.
-Com Eduard Marxsen, recebi as primeiras noções de composição, e, assim, constatei que o meu destino estava infinitamente ligado à música.
-E as suas incursões pela noite, trouxeram-lhe outras recompensas, pelo que li dos seus biógrafos.
-Efetivamente; conheci o violinista húngaro Eduard Reményi, que, por razões que não cabe aqui contar, se refugiou em Hamburgo. Combinamos, então, uma tournée, como bem dizem os franceses, pelas salas alemães de concertos.
-Era a hora de sair do ninho. - manifestei-me.
-Conheci, primeiramente, o já consagrado violinista Joseph Joachim, que viria a ser meu grande amigo.
-Para ele, você compôs o seu esplendoroso concerto para violino e orquestra. - acrescentei.
-Em seguida, conheceu Franz Liszt.
-Naquela época, era de grande valia conhecer Liszt...
Rapidamente, corrigiu-se:
-Na verdade, em qualquer época.
-E o seu encontro com o casal Robert e Clara Schumann?
Sem dar-lhe tempo de responder, fui enfático:
-O momento mais importante da sua vida.
-Provavelmente. - meneou a cabeça com um sorriso melancólico.
-Robert Schumann ficou deslumbrado quando viu o seu trabalho e previu que estava diante de um gênio.
-Eu me achava com 20 anos de idade e ele, juntamente com Clara, eram conhecidos por todo o universo musical.
-Robert Schumann não era só um mestre das notas musicais, como lidava bem com as palavras. Ele escreveu um artigo na Nova Gazeta Musical, que intitulou “Novos Caminhos”, enaltecendo-o o mais que pôde. Foi esse artigo o passaporte que lhe abriu, com mais facilidade, o caminho para o triunfo.
-Não há a menor dúvida. E pensar que, no ano seguinte, por sofrer de melancolia psicótica, ele tentaria o suicídio atirando-se no rio Reno. - lamentou.
-A vida dele sempre foi sempre difícil. Casou-se com Clara depois de uma briga que chegou aos tribunais, porque o professor de piano Friedrich Wieck, pai dela, que também deu a ele aulas de piano, preparou-a para ser a maior concertista da Europa e não esposa de um músico promissor que aleijara a mão com uma geringonça para alargar os dedos para, assim,  tornar-se um virtuose do instrumento.
-Mas Clara Schumann, juntamente com Franz Lizst, foi a maior pianista da Europa. - interveio com veemência.
-Apesar do grande amor, que unia o casal Schumann, ela o conheceu no momento em que a doença mental arruinava o seu marido, que saía de uma crise para entrar em outra pouco depois. Faleceu três anos depois desse significativo encontro de 1853.
-Você se refere aos mexericos sobre um caso de amor entre mim e ela?... - interveio, mas sem demonstrar indignação.
-Os historiadores sofrem da doença da bisbilhotice. - ponderei.
-Mas o caso aqui é mais música do que história. Desde aquele primeiro encontro em 1853, nós três percebemos que estávamos irremediavelmente unidos pela arte musical.
-Cartas e outros papéis trocados entre você, Brahms, e Clara Schumann foram destruídos em comum acordo.
-Sim, porque não diziam respeito a mais ninguém.
-E a sua vida naqueles primeiros anos em que Robert Schumann chamou a atenção de todos para a sua genialidade?
-Eu perambulava entre Hanover e Düsseldorf motivado pela amizade. Em Hanover, eu ficava na residência de Joachim e, em Düsseldorf, na residência dos Schumann, onde ajudava Clara a cuidar dos filhos, quando Robert estava internado e ela tinha que viajar como concertista de piano.
-O mundo da música, naquela época, estava dividido entre modernistas e conservadores, e você se posicionou contra os vanguardistas.
-Eu me meti, desafortunadamente, numa polêmica estéril. Eu considerava que as sinfonias, os concertos, as músicas de câmera não estavam ultrapassados, que os poemas sinfônicos de Liszt e os dramas musicais de Wagner não preenchiam todo o espaço da nossa arte. Isso era tão óbvio, que eu não devia desperdiçar minha energia em debates.
-Como os wagnerianos eram formadores de opinião e a crítica musical era, em grande parte, ocupada por eles, você ficou com a pecha de reacionário.
-Houve uma guerra entre os meus admiradores e os de Wagner, e eu não queria ser baluarte de corrente alguma.
-Muitos anos depois da sua morte, precisamente na década de 30 do século XX, o pai do dodecafonismo, Arnold Schoenberg, colocou as coisas nos seus devidos lugares.  Provou o quanto você foi inovador, e até revolucionário, mesmo sem se desprender dos grandes mestres do passado, como Bach.
-No meu escritório de trabalho, eu coloquei um enorme busto de Beethoven.
-Ele o observava enquanto você compunha.
-Eu escutava atrás de mim o ressoar dos passos do gigante.
-Mas você não se amedrontou. A sua primeira sinfonia é considerada a décima de Beethoven.
-Já ouço as cordas finais... - murmurou com o olhar ausente.
E partiu.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Onde se lê "salas alemães de concertos", leia-se "salas alemãs de concertos."

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