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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4858 Data: 23
de abril de 2014
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130ª VISITA À MINHA CASA
-Quem diria que, aos 10 anos de idade, o
sucessor de Beethoven tocava nas tabernas de Hamburgo! - exclamei.
-E Mozart, com essa idade, já havia
tocado para reis e papa, e já preparava duas óperas. - respondeu-me Brahms, que
me agraciava com uma visita à minha casa.
-Por que você, tão garoto, já se expunha
nas noites de Hamburgo para pessoas, acredito, comumente bêbadas?
-Meu pai era contrabaixista e o seu meio
de vida era tocar em bares e tabernas próximas ao porto, onde sempre havia
gente suficiente para formar uma plateia.
-Ele fez com você o que papai Leopoldo
fez com Mozart e a irmã, exploração de mão de obra infantil, com a diferença
que os irmãos tocavam para a nobreza e o clero.
-Não julgue meu pai superficialmente.
Ele expressou seu encantamento com a minha habilidade para a música, quando eu
mal completava 7 anos de idade. Decidiu, então, que eu estudaria com Otto
Cossel para desenvolver minha aptidão. Mas o nosso dinheiro era curto e eu, já
um homenzinho, com 10 anos de idade, concordei em trabalhar com ele para
aumentar o orçamento da família.
-Você, então, nunca se sentiu explorado?
-De forma alguma; desde cedo, conheci a
ética do trabalho. Eu investia na minha formação. Para mim, a música estava
acima de tudo e eu não me importava se a plateia carregava joias ou sacos de
cimento.
-Quando falam em Brahms, as pessoas
pensam logo no homem de barbas longas, como se já tivesse nascido assim; porém,
a sua infância, adolescência e mocidade foram ricas.
-Talvez porque eu tivesse composto as
minhas quatro sinfonias depois dos 40 anos. - levantou a hipótese.
E prosseguiu com dados autobiográficos:
-Com 10 anos de idade, eu realizei o meu
primeiro concerto público, executando obras de Mozart e Beethoven.
-Como as apresentações em cervejaria
eram lucrativas e seu pai precisava pagar suas aulas... - intervim com um tom
de voz insinuante.
-Assim, eu tive aulas com Eduard Marxsen
que, além de ser compositor, regia a Filarmônica de Hamburgo.
-Trata-se de um clichê, Brahms, mas não
tenho pejo em usá-lo na falta de uma comparação melhor, no momento: você era um
diamante que estava sendo lapidado.
-Com Eduard Marxsen, recebi as primeiras
noções de composição, e, assim, constatei que o meu destino estava
infinitamente ligado à música.
-E as suas incursões pela noite,
trouxeram-lhe outras recompensas, pelo que li dos seus biógrafos.
-Efetivamente; conheci o violinista
húngaro Eduard Reményi, que, por razões que não cabe aqui contar, se refugiou
em Hamburgo. Combinamos, então, uma tournée, como bem dizem os
franceses, pelas salas alemães de concertos.
-Era a hora de sair do ninho. -
manifestei-me.
-Conheci, primeiramente, o já consagrado
violinista Joseph Joachim, que viria a ser meu grande amigo.
-Para ele, você compôs o seu
esplendoroso concerto para violino e orquestra. - acrescentei.
-Em seguida, conheceu Franz Liszt.
-Naquela época, era de grande valia
conhecer Liszt...
Rapidamente, corrigiu-se:
-Na verdade, em qualquer época.
-E o seu encontro com o casal Robert e
Clara Schumann?
Sem dar-lhe tempo de responder, fui
enfático:
-O momento mais importante da sua vida.
-Provavelmente. - meneou a cabeça com um
sorriso melancólico.
-Robert Schumann ficou deslumbrado
quando viu o seu trabalho e previu que estava diante de um gênio.
-Eu me achava com 20 anos de idade e
ele, juntamente com Clara, eram conhecidos por todo o universo musical.
-Robert Schumann não era só um mestre
das notas musicais, como lidava bem com as palavras. Ele escreveu um artigo na
Nova Gazeta Musical, que intitulou “Novos Caminhos”, enaltecendo-o o mais que
pôde. Foi esse artigo o passaporte que lhe abriu, com mais facilidade, o
caminho para o triunfo.
-Não há a menor dúvida. E pensar que, no
ano seguinte, por sofrer de melancolia psicótica, ele tentaria o suicídio
atirando-se no rio Reno. - lamentou.
-A vida dele sempre foi sempre difícil.
Casou-se com Clara depois de uma briga que chegou aos tribunais, porque o
professor de piano Friedrich Wieck, pai dela, que também deu a ele aulas de
piano, preparou-a para ser a maior concertista da Europa e não esposa de um
músico promissor que aleijara a mão com uma geringonça para alargar os dedos
para, assim, tornar-se um virtuose do
instrumento.
-Mas Clara Schumann, juntamente com
Franz Lizst, foi a maior pianista da Europa. - interveio com veemência.
-Apesar do grande amor, que unia o casal
Schumann, ela o conheceu no momento em que a doença mental arruinava o seu
marido, que saía de uma crise para entrar em outra pouco depois. Faleceu três
anos depois desse significativo encontro de 1853.
-Você se refere aos mexericos sobre um
caso de amor entre mim e ela?... - interveio, mas sem demonstrar indignação.
-Os historiadores sofrem da doença da bisbilhotice.
- ponderei.
-Mas o caso aqui é mais música do que
história. Desde aquele primeiro encontro em 1853, nós três percebemos que
estávamos irremediavelmente unidos pela arte musical.
-Cartas e outros papéis trocados entre
você, Brahms, e Clara Schumann foram destruídos em comum acordo.
-Sim, porque não diziam respeito a mais
ninguém.
-E a sua vida naqueles primeiros anos em
que Robert Schumann chamou a atenção de todos para a sua genialidade?
-Eu perambulava entre Hanover e
Düsseldorf motivado pela amizade. Em Hanover, eu ficava na residência de
Joachim e, em Düsseldorf, na residência dos Schumann, onde ajudava Clara a
cuidar dos filhos, quando Robert estava internado e ela tinha que viajar como
concertista de piano.
-O mundo da música, naquela época,
estava dividido entre modernistas e conservadores, e você se posicionou contra
os vanguardistas.
-Eu me meti, desafortunadamente, numa
polêmica estéril. Eu considerava que as sinfonias, os concertos, as músicas de
câmera não estavam ultrapassados, que os poemas sinfônicos de Liszt e os dramas
musicais de Wagner não preenchiam todo o espaço da nossa arte. Isso era tão
óbvio, que eu não devia desperdiçar minha energia em debates.
-Como os wagnerianos eram formadores de
opinião e a crítica musical era, em grande parte, ocupada por eles, você ficou
com a pecha de reacionário.
-Houve uma guerra entre os meus
admiradores e os de Wagner, e eu não queria ser baluarte de corrente alguma.
-Muitos anos depois da sua morte,
precisamente na década de 30 do século XX, o pai do dodecafonismo, Arnold
Schoenberg, colocou as coisas nos seus devidos lugares. Provou o quanto você foi inovador, e até
revolucionário, mesmo sem se desprender dos grandes mestres do passado, como
Bach.
-No meu escritório de trabalho, eu
coloquei um enorme busto de Beethoven.
-Ele o observava enquanto você compunha.
-Eu escutava atrás de mim o ressoar dos
passos do gigante.
-Mas você não se amedrontou. A sua
primeira sinfonia é considerada a décima de Beethoven.
-Já ouço as cordas finais... - murmurou
com o olhar ausente.
E partiu.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOnde se lê "salas alemães de concertos", leia-se "salas alemãs de concertos."
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