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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4863 Data: 04
de maio de 2014
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SABADOIDO DE SINDICALISTAS A GETÚLIO
-O Paulinho não devia dizer que o lugar
da Dilma é na Papuda. - criticou meu irmão a parte do discurso do líder da
Força Sindical nas comemorações do Dia do Trabalhador.
-Li, hoje, que ele mal se continha em
pé, de tão bêbado.
-Querendo ou não, ela é a Presidente do
Brasil, não pode ser ofendida assim. - insistiu na crítica. (*)
-Não espere educação refinada dos
sindicalistas, Claudio. Tenho um colega de trabalho que, devido a um trauma, um
acidente de carro, ficou com uma voz roufenha, cavernosa, que mal se escuta.
Certa vez, fui com ele ao porto de Vitória entrevistar o chefe do OGMO.
-O que é isso? - estranhou.
-Órgão Gestor de Mão de Obra, onde se
encontram os representantes dos trabalhadores portuários. Lá, quando esse meu
colega, mal abriu a boca, o sindicalista bradou: “O que é isso, muita cachaça?”
-Ele falou isso? - reagiu meu irmão,
surpreendido.
-Pois é; poderia até ser um câncer na
garganta, mas essa turma não tem a menor sensibilidade, seja agredindo ou
brincando. Ele, por sinal, brincava.
Claudio se encontrava na sua cadeira de
descascar laranja, pois o Globo, nesse sábado, chegou cedo.
-Claudio, por acaso, me deparei com o
Roberto D' Ávila entrevistando o Mário Soares de Portugal.
-Ele já está bem velho.
-Mário Soares está com 89 anos; cabeça
ótima, lembrando-se de quase tudo... A entrevista se deu no enorme escritório
dele, em Portugal, no meio de uma imensa biblioteca.
-Por que ele foi até lá entrevistá-lo?
-Porque, em 25 de abril, fez 40 anos da
Revolução dos Cravos.
-Mário Soares era muito amigo do Brizola
e do Darcy Ribeiro.
-O Roberto D' Ávila estranhou que se
destacava lá, no escritório, a figura esculpida do Tiradentes, Mário Soares
explicou que soube, pelo Itamar Franco, quando embaixador do Brasil em terras
lusitanas, da história do Tiradentes. Como era uma figura histórica que lutou
pela liberdade, nada mais justo que o homenageasse também – foi a sua
explicação.
-Carlão, assistiu ao programa sobre o
Aírton Senna no Sport TV? - era o Daniel irrompendo cozinha a dentro.
-Foi a pergunta que o meu chefe me fez
ontem?
-Você trabalhou?... Lá, na Casa da
Moeda, o dia espremido entre feriado e dia de semana vai obrigatoriamente para
a forca.
-Como o Tiradentes. - não deixou o
Claudio a piada escapar.
-Só vi uns dez minutos do programa.
-Carlão, transmitiram onze corridas do
Aírton Senna da partida à bandeirada de chegada.
-Não vai me dizer que você ficou mais de
quinze horas defronte a televisão, Daniel?
-Vi e gravei tudo.
Pretendia falar que não me detive com
essa recordação dos vinte anos da morte do grande piloto brasileiro por causa
do travo de amargura que volta como uma regurgitação, mas ele, muito animado,
se antecipou:
-Muito bom!... Parecia que todo aquele
tempo retornava.
E foi adiante:
-A corrida no Japão em que o Prost e o
Senna bateram, na largada, ficando o título com o Senna, poderia parar ali, mas
a Sport TV passou a corrida inteira.
-E aquela corrida em que o Senna passou
por oito carros na primeira volta?...
-É claro que eles passaram? - não me
deixou terminar.
E repetiu, o que fazia desde garoto,
como se fosse um mantra, as palavras do locutor Galvão Bueno, quando celebrou
a vitória nessa corrida:
“Senna deu um show no seco, no molhado,
no arrojo, na estratégia, na capacidade...” - a retórica prosseguiu, mas nós,
diferentemente dele, não conseguimos memorizá-la.
Nesse instante, a Gina fez a sua entrada
na cozinha, com um tablet e se dirigiu ao filho.
-Se vai pedalar na Lagoa, volta logo
para não sairmos tarde para o almoço.
-Vou, então, me vestir.
Com a saída do Daniel, eu e Claudio
falamos de cantores, enquanto a Gina convergiu a sua atenção para o visor de um
tablet.
-Ouvi, Claudio, aquela música que o Luca
costuma cantarolar: “eu bebo para ter argumento...”
-”Palavras ao vento”, do Cristóvão
Bastos e Aldir Blanc. - identificou-a.
-Ouvi essa canção com a Nana Caymmi, e...
-Ela canta muito bem; é afinada. -
interrompeu-me.
-É uma voz diferenciada, um timbre
único. - completei.
Depois de ele pegar uma laranja na
geladeira, continuamos com o canto.
-Dormi e acordei no meio do programa de
jazz do Nélson Tolipan na Rádio MEC; ouvi, então, uma voz parecida com a do
Frank Sinatra, mas a impressão digital dele.
E antes de alguma gozação, acrescentei:
-A voz, como o dedo, identifica a
pessoa.
-E quem cantava?
-Soube, depois, que era o Frank Sinatra
Júnior.
-Ele foi sequestrado pelos amigos
mafiosos do Sinatra, para alcançar a fama, mas não conseguiu.
-A Maria Rita tem a voz parecida com a
da mãe, mas a plateia percebe que falta alguma coisa indizível. - disse-lhe.
-A Ellis Regina foi uma grande cantora,
mas não tudo isso que dizem.
-Claudio, ela foi excelente.
-Prefiro a Clara Nunes.
-Eu coloco a Ellis Regina num patamar
acima junto com a Elizete Cardoso, a...
-Outra grande cantora é a Gal Costa.
-Era a cantora que o Tom Jobim convocava
para cantar as músicas dele. A cantora tinha de ser refinada para as criações
dele. A voz dela é de cristal.
-Cristal quebrado. - entrou a Gina na conversa
embora estivesse com os olhos ainda pregados no visor do tablet.
-Quanto à Maria Betânia, canta mais com
o útero do que a garganta, ou seja, é cantora para canções com carga emocional.
Resumindo: não gosto dela. - comentei.
-Não é grande coisa. - concordou meu
irmão.
-A grande cantora da música popular
brasileira é a Dalva de Oliveira.
-Com aquela voz anasalada, Carlinhos.-
interveio de novo a Gina.
Para tonificar a sua opinião, mexeu umas
teclas do tablet, e brotou a voz da Dalva de Oliveira. Diante de tanto
poderio vocal, percebi que ela balançou:
-Tudo bem: a voz é forte, mas anasalada.
Quando o Luca chegou para mais uma
sessão do Sabadoido, o assunto foi cinema.
-Viu Getúlio?
-Vi Getúlio, Henrique, Manuel,
Joaquim... quem mais Luca?- Gina, nesse sábado estava impossível.
-O filme – esclareceu, rindo.
Saímos eu e Claudio por poucos minutos;
retornamos, ele com dois copos de caipiroska, e eu com a bexiga esvaziada.
-Luca, você sabe muito que eu não gosto
do cinema nacional. - frisou a Gina.
-Eu gosto. - retrucou.
-Eu também. - juntou-se a ele meu irmão.
-Carlinhos não tem ido mais ao cinema?
-Espero que as fitas saiam em DVD ou que
levem na televisão. Já bastam as películas a que assisti, sentindo o cheiro
nauseabundo de baldes de pipoca e ouvindo pessoas sem educação falando no
celular.
-Aquela época dos anos 50, as músicas,
os carros e mais coisas exercem atração sobre mim. (**)
-Bem, Luca, mas são retratados apenas os
últimos dezenove dias da vida do Getúlio Vargas. - assinalou o Claudio.
-Vou me aprontar porque o Daniel chega
daqui a pouco. - justificou-se Gina para se retirar desse Sabadoido.
-Quem faz o Carlos Lacerda? - perguntei,
embora tivesse lido a reportagem sobre o lançamento do filme no dia anterior.
-Aquele ator que fez o Luís Cláudio na
minissérie “Engraçadinha depois dos 30.” - circunvagou o Luca.
-Alexandre Borges. - foi mais incisivo o
Claudio.
-Muito elogiado como Getúlio Vargas vem
sendo o Toni Ramos.
Às palavras do Luca, seguiram-se as
minhas.
-Li boas referências à atuação do Toni
Ramos, até mesmo ótimas, mas um crítico fez umas ressalvas.
-Que ressalvas?
-O Toni Ramos não pronuncia o “l”
acastelhanado, como os gaúchos, e, nas vogais, também comete algumas falhas.
-Isso é ortoépia, como diz a Rosa
Grieco? - interrompeu-me.
-Esse crítico escreveu que Daniel Day
Lewis viajou para Kentucky, antes das filmagens e, assim, incorporou o Abraham
Lincoln.
-Carlinhos, qual o ator que, hoje,
supera o Daniel Day Lewis? - interveio meu irmão com veemência.
-É verdade; Daniel Day Lewis se encontra
em outro patamar. A comparação é injusta.
Mal terminei de falar, e um estrondo nos
sacudiu das cadeiras; era Daniel, o da Gina, que chegava da Lagoa chutando o
portão.
(*) Todo e
qualquer Presidente da República merece respeito, porém não é falta ao respeito
sugerir que determinada pessoa, seja ela quem for, possa ou deva estar presa.
No caso em questão, não deve ser difícil comprovar que há crime suficiente para
enjaular a Presidente Dilma, com respeito e após o devido processo criminal.
(**) Há pelo
menos um erro crasso em relação aos automóveis: as Mercedes-Benz que aparecem
são de 1956 em diante, enquanto a fita retrata 1954. Quando se depara com uma
escorregadela deste nível, deve se esperar muito mais coisa errada.
O nome da canção com a antológica letra do Aldir Blanc é "Resposta ao Tempo", e não "Palavras ao Vento".
ResponderExcluir"Uma voz parecida com a do Frank Sinatra, mas sem a impressão digital dele."
ResponderExcluirFoi omitida a preposição "sem" no texto.