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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4849 Data:
12 de
abril de 2014
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129ª VISITA À
MINHA CASA
Coelho Neto, não sei se li ou se é
delírio mnemônico: você invadindo o gramado em um jogo do Fluminense e
distribuindo golpes de capoeira nos adversários agressivos?
O escritor, que me lisonjeava com sua visita, esboçou um sorriso antes de
falar.
-Fui
torcedor do Fluminense...
E rapidamente se corrigiu:
-Sou Fluminense; sempre que o Nélson
Rodrigues, nas suas crônicas, convocava os tricolores vivos e mortos para
assistir a um Fla x Flu ou a outro certame que envolvia o tricolor das
Laranjeiras, eu me erguia da tumba para atender ao seu pedido.
Enquanto eu o olhava deslumbrado, ele ia
em frente:
-Vestia meu terno branco, pegava o meu
chapéu de coco, a minha bengala, e partia para o Maracanã.
-Para o Maracanã. - repeti o fim da sua
frase como se fosse o Eco mitológico.
-É verdade que, no início, eu me perdia,
materializando-me no estádio da Lagoa ou das Laranjeiras.
E justificou-se:
-O Maracanã foi construído bem depois da
minha morte.
-Você foi presidente do Fluminense?
-Não; presidi as reuniões que trataram
da construção do novo estádio, participei do conselho deliberativo e fui
diretor de artes.
-De uma coisa tenho certeza, Coelho
Neto, você é o autor da letra do hino oficial do Fluminense com a melodia do It's a long, long way to
Tipperary, de H. Williams.
-De fato; o hino estreou em 1915 na
solenidade de inauguração da terceira sede do clube.
-”O Fluminense é um crisol...”
Interrompi no primeiro verso, crispando
o rosto ao pronunciar a última palavra, o que foi notado por ele, observador
arguto.
-Não gostou do verbete “crisol”?
-Não é uma palavra que os torcedores
aceitem; eles a julgarão humorística ou pedante.
-Não me conformo que haja verbetes
mortos no dicionário; todos têm direito à vida; de viver na boca das pessoas ou
nos seus escritos. Tentei, o mais que pude, palestrando ou escrevendo, dar vida
a todas as palavras.
-Assim, escreveu mais de 120 romances.
-Mais ou menos.- intentou mostrar-se
modesto.
-Recordo-me que o Nélson Rodrigues
confessou, numa crônica, que, garoto, trabalhando numa redação de jornal, falou
com você, pelo telefone, assombrado pelas dezenas de milhares de páginas da sua
lavra.
-Também trabalhei em jornal.
Era a oportunidade de eu abordá-lo com
perguntas biográficas e não a deixei passar.
-Seu primeiro trabalho foi no Jornal do
Comércio?
-Sim; eu estava com 17 anos e me julgava
poeta.
-Isso, aqui no Rio de Janeiro, mas seu
estado natal é o Maranhão.
-Sou maranhense como tantos outros
literatos.
-Nasceu em que cidade?
-Nasci em Caxias. A insídia política do
estado obrigou meu pai a sair de lá com a família. Eu contava com seis anos de
idade.
-Seu pai era português como o pai de
Gonçalves Dias?
-Sim; sua atividade era no comércio. A
minha mãe era índia, chama-se Ana Silvestre Coelho.
-Ainda jovem você foi do Rio de Janeiro
para São Paulo?
-Eu fui estudar Direito em Campinas.
Antes, aqui, nesta cidade, cursei o Colégio Pedro II e me matriculei na
Faculdade de Medicina.
-Como a carreira de médico não lhe
interessou, partiu para Campinas. - deduzi em voz alta.
-Lá, cursando Direito, as coisas não
correram muito bem, pois me envolvi num imbróglio com um professor.
Transferi-me, então, para a Faculdade de Recife, onde tive Tobias Barreto como
mestre.
-E como foi, Coelho Neto?
-Concluí o primeiro ano e retornei a São
Paulo, onde me juntei aos abolicionistas e aos republicanos. Sem concluir o
curso de Direito, vim de volta para o Rio de Janeiro em busca de um emprego na
Gazeta da Tarde de José do Patrocínio.
-Você narra essa passagem da sua vida no
romance “A Conquista”. Li um trecho dele na “Nova Antologia Brasileira”, do
Clóvis Monteiro.
-Chegando à cidade, ao influxo da grande
vida, resfoleguei desafogadamente.
-E como foi trabalhar com José do
Patrocínio, que os amigos chamavam Zé do Pato?
-Os artigos do José eram como imensos
jequitibás que vêm possantemente arrastados do fundo da selva virgem.
-Cinco anos depois, ou seja, em 1890,
você se casa com Maria Gabriela Brandão, filha do professor Alberto Olympio
Brandão.
-Tivemos quatorze filhos.
-Seu sogro era um educador de renome
relacionado com a alta sociedade fluminense.
-Não vou negar que o prestígio dele também
foi responsável pela minha nomeação para diversos cargos públicos.
-Você foi secretário do governo do
estado, ocupou o magistério de História da Arte na Escola Nacional de Belas
Artes, lecionou literatura no Colégio Pedro II. Depois, foi nomeado para as
cátedras de História do Teatro e Literatura Dramática. E ainda foi deputado
federal pelo Maranhão por duas vezes.
Como você encontrou tempo para escrever tantos romances?
-Para quem é disciplinado, como eu,
sempre se encontra tempo. A minha principal fonte de renda, até então, era a atividade jornalística.
-Quatorze filhos para criar...
-Na realidade, sete. Perdendo meus
filhos na infância por doenças, desisti de mantê-los em ambientes fechados e
expus os sete que sobreviveram à vida ao ar livre; coloquei-os para praticarem
educação física e a tornarem-se grandes atletas.
-Seu filho João Coelho Neto, o Preguinho
do Fluminense, campeão em várias modalidades de esporte, foi considerado pela
revista Placar o atleta mais completo do século.
-Minha filha Violeta, com dez anos de
idade, já era uma das maiores do nado crawl do Rio de Janeiro derrotando
os adultos.
-Mais tarde, ela se tornaria a mais
consagrada intérprete brasileira da ópera Madame Butterfly.
-O fôlego dela veio da piscina. -
afirmou.
-Seu filho mais velho, Emmanuel, o Mano,
tricampeão pelo Fluminense, campeão sulamericano de 1919, sofreu um acidente no
jogo entre o Fluminense e o São Cristóvão que lhe custou a vida aos 24 anos de
idade.
-Sublimei a minha dor em um romance que dediquei à sua memória e em um
poema.
-Esse drama não arrefeceu o seu ímpeto
pela prática de esportes?
-Minha paixão continuou; em 1923,
chefiei a delegação do Fluminense que foi à Bahia jogar futebol e tênis.
-Coelho Neto, você recebeu o título de
“Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em votação realizada pela revista “O
Malho” em 1928; no entanto, eu não via romances seus nos sebões que eu
frequentava umas três vezes por semana, apesar de eles passarem de uma centena.
-Talvez o fato de a minha editora, a
Lello, ser portuguesa...
-Conheci “O Turbilhão”, isso porque foi
lido em capítulos num programa da Rádio Ministério da Educação nos anos 60. Não
me esqueço da personagem que se envolve com o espiritismo e enlouquece.
-Eu fui um intransigente adversário do
espiritismo, mas me converti depois de ouvir, na extensão do telefone, um
diálogo entre a minha neta, morta com pouca idade, e a mãe dela. Em 1923, no
Salão da Guarda Velha, proferi um discurso expressando a minha conversão ao
espiritismo.
-Você se disse o último dos helenos, em
polêmica com os modernistas de 1922, e isso lhe custou caro. Segundo o
acadêmico Arnaldo Niskier: “A vitória do modernismo se fez como se houvesse
necessidade de abater um grande inimigo, no caso, Coelho Neto”.
-Mas se procurarem bem, encontrarão meus
livros. - disse antes de partir.
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