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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4 837 Data: 22 de março de 2014
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128ª VISITA À MINHA CASA
Evidentemente que a visita do rei
Ricardo I à minha casa, na Rua Modigliani, sacolejou a minha memória,
conduzindo-me à infância.
-Uma cena do filme sobre você nunca se
apagará da minha mente: aquela em que uma flecha vara a tenda de batalha onde
você se encontrava, atinge-o no peito e você sobrevive.
-Na vida real, doeu bastante. -
ironizou.
-Fiquei tão abalado, que murmurei na
cadeira do cinema Cachambi: “Foi no coração e ele não morreu, por isso é o
coração de leão”.
-Realizaram outros filmes sobre mim; não
assistiu a eles?
-Não; vi apenas o de 1954 com George
Sanders como você, Rex Harrison como Saladino, Virginia Mayo como Lady Edith
Plantageneta, Laurence Harvey como Sir Kenneth of Huntington. Esses são os
artistas principais; o diretor da película foi David Butler e o roteirista se
baseou na novela de Walter Scott “O Talismã”.
-Você se lembra, então, de muita coisa.
-Isso, eu pesquisei, agora, mas a cena
em que tentaram matá-lo, essa ficou marcada no meu espírito.
-Na verdade, essa flecha me atingiu no
abdômen, quando, por problemas de fronteira, eu combatia os franceses. E, em
consequência do ferimento, eu morri.
Mas você, sendo rei, não usava armadura?
-Não. - foi a sua resposta seca.
-Sim, você era intimorato; partia à
frente dos seus soldados de peito aberto.
-Deram-me o cognome “coração de leão”
pela minha valentia. Antes da minha ascensão ao trono inglês, eu já era assim
chamado.
E acrescentou com um sorriso mordaz:
-Até os leões, atingidos no coração,
morrem.
-Apesar dos riscos exagerados que
passou, como rei-soldado, o seu reinado não foi muito curto.
-Reinei dos 32 aos 42 anos de idade.
-Seus pais foram Henrique II e Leonor da
Aquitânia.
-Eu era o terceiro herdeiro; o
primogênito Guilherme morreu criança e, depois dele, Henrique, que recebeu o
cognome “O jovem”.
-Você estava na adolescência quando a
sua mãe, Leonor da Aquitânia, se separou do rei.
-Eu a acompanhei quando partiu para
Poitiers. Lá, recebi uma educação esmerada dentro dos moldes da cultura
francesa.
-Seus opositores ingleses acusavam-no de
não falar inglês, além de não dar importância alguma ao país em que nasceu.
-E meu irmão, João, tentaria, mais
tarde, usurpar-me o trono com meias verdades, enquanto eu lutava na Terceira
Cruzada. Quanto ao inglês, só a plebe o falava.
-Mas você preferia viver no Ducado de
Aquitânia.
-Eu segui a minha mãe, como já disse e,
em 1168, eu me tornava Duque da Aquitânia; contava com 11 anos de idade.
-A política do seu pai, Henrique II, era
dividir seus territórios pelos filhos.
-Partindo da Aquitânia, ocorreu uma
revolta generalizada contra o rei. Eu me uni à minha mãe na deflagração dessa
revolta.
-Mas o seu pai, com muito custo, pois
lutou durante um ano, conseguiu controlar os motins contra ele.
-Perdoou a mim e ao meu irmão Henrique,
mas encarcerou a minha mãe.
-Você estava com 16 anos de idade; o seu
pai deduziu que você foi manobrado pela Leonor da Aquitânia, por isso o perdoou
e a pôs na masmorra.
-Esse perdão teve um sabor amaríssimo,
porque ele me obrigou a um humilhante pedido de desculpas.
-Você era jovem, influenciável... Não
deveria ser tão orgulhoso.
Irritou-se com o meu comentário.
-Desde garoto, eu já conhecia os campos
de batalha.
E bradou:
-Nunca me reconciliei com o meu pai.
-Sem a poderosa presença da sua mãe, em
Aquitânia, a nobreza se revoltou e espocaram rebeliões para substitui-lo por um
dos seus irmãos.
-Para lá fui com um exército e sosseguei
todos os rebeldes com a violência que se fazia necessária.
-E, em 1183, morre seu irmão Henrique e
você se torna o sucessor imediato do trono da Inglaterra.
-Cinco anos depois, meu pai, que já não
me suportava, resolveu entregar o ducado de Aquitânia a João, meu irmão mais
novo.
-O rei subavaliou a têmpera do filho. -
assinalei.
-Evidentemente que eu não aceitaria
pacificamente a minha destituição. Uni-me ao rei Felipe II de França e
enfrentamos as tropas de Henrique II,
-Derrotado, o seu pai faleceu.
-Logo que morreu, em 1189, tornei-me rei
da Inglaterra, duque da Normandia e conde de Anjou.
E prosseguiu após tomar fôlego:
-Fui coroado na Abadia de Westminster.
Mas eu não era homem de me sentar no trono para ouvir mexericos de cortesões
sabujos. Eu era um guerreiro e, por isso, ao me tornar rei, percebi que era o
momento de preparar uma expedição à Terra Santa, a Terceira Cruzada.
-Seus adversários acusaram-no de, por
causa dessa cruzada, raspar o tesouro do seu pai, cobrar novos impostos, vender
títulos e cargos por valores exorbitantes, e de libertar o rei Guilherme I da
Escócia da vassalagem por uma pequena fortuna.
-Foi necessário isso tudo, pois era um
investimento com retorno lucrativo. A minha preocupação, na época, era o
traiçoeiro Felipe II da França.
-Mas ele não foi seu aliado?
-Em política, o aliado da véspera pode
ser o figadal inimigo do dia seguinte. A história está farta de exemplos.
-E você neutralizou a ameaça de perda de
territórios para a França, convidando o seu rei para participar da Terceira
Cruzada.
Às minhas palavras, chispou malícia do
olhar do rei Ricardo I e ele se pôs a falar.
-Em Sicília, na primeira paragem dos
cruzados, nós nos envolvemos com a política de lá e saqueamos algumas cidades.
O Sacro Império me detestou, contudo, eu não me abalei e lhe impus Artur I, meu
sobrinho, como herdeiro.
-Ao chegar com seu exército em Chipre,
no ano seguinte, 1191, abateu os habitantes que lhe resistiram e, depois de
obrigar o governante Isaac Comneno a abdicar, apossou-se da ilha.
-Não falemos apenas de corpos
trespassados por espadas em 1191. Neste ano, eu me casei com a princesa
Berengária de Navarra.
-Casamento que não o impediu de, logo
depois, chegar à Terra Santa.
-Cheguei a tempo de romper o cerco que
Saladino, líder da gente impura, submetia os batalhadores católicos.
-Você, com bravura, obrigou o temido
Saladino a recuar suas forças, o que fez que a sua fama de herói se espalhasse
por toda parte.
-Sim, mas os meus pérfidos aliados,
Felipe II e o duque Leopoldo V da Áustria, se desavieram contra mim, Como se
não bastasse, o meu irmão mais novo, se meteu muito mais do que devia nos
negócios da Inglaterra. Tive, então, de voltar sem realizar o meu maior
objetivo: conquistar Jerusalém.
-Nos preparativos do regresso, você se
recusou a ver de longe Jerusalém?
-Mesmo o meu coração de leão baquearia
diante da imagem da minha frustração.
-Na viagem de retorno, seus inimigos,
com Leopoldo V da Áustria à frente, o aprisionaram. Em seguida, você foi entregue
ao imperador Henrique VI do Sacro Império.
-Puseram-me durante quatorze meses num
cativeiro austríaco.
-Com seus feitos nas batalhas e a fama
advinda delas, respeitaram-no e o trataram com respeito.
-Eu era bem mais valioso vivo do que
morto. Exigiram, então, da Inglaterra, resgate para me libertar.
E comentou:
-Conheciam, certamente, a história do
imperador Júlio César.
-Era um resgate de valor imensurável. -
disse-lhe.
-Praticamente, o dobro da renda anual da
coroa inglesa.
-Tanto na sua partida para a Terceira
Cruzada quanto na volta, o tesouro da Inglaterra foi raspado.
-Arrependi-me publicamente dos meus
pecados, e, pela segunda vez, fui coroado rei da Inglaterra.
-Mas não sossegou no trono e partiu para
mais uma guerra.
-Os problemas fronteiriços com a França
persistiam. Numa dessas batalhas, recebi uma flechada; talvez como aquela do
cinema que tanto o marcou e não resisti ao ferimento.
-Seu irmão, João Sem Terra, conseguiu,
finalmente, tornar-se rei.
Limitou-se a balançar a cabeça.
-Mas teve de assinar a Carta Magna que
lhe foi imposta.
Não sei se me ouviu, pois partira para
não sei que batalha.
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