Total de visualizações de página

segunda-feira, 7 de abril de 2014

2587 - Coração de Leão

----------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4 837                               Data: 22  de março de 2014
--------------------------------------------------------------------

128ª VISITA À MINHA CASA

Evidentemente que a visita do rei Ricardo I à minha casa, na Rua Modigliani, sacolejou a minha memória, conduzindo-me à infância.
-Uma cena do filme sobre você nunca se apagará da minha mente: aquela em que uma flecha vara a tenda de batalha onde você se encontrava, atinge-o no peito e você sobrevive.
-Na vida real, doeu bastante. - ironizou.
-Fiquei tão abalado, que murmurei na cadeira do cinema Cachambi: “Foi no coração e ele não morreu, por isso é o coração de leão”.
-Realizaram outros filmes sobre mim; não assistiu a eles?
-Não; vi apenas o de 1954 com George Sanders como você, Rex Harrison como Saladino, Virginia Mayo como Lady Edith Plantageneta, Laurence Harvey como Sir Kenneth of Huntington. Esses são os artistas principais; o diretor da película foi David Butler e o roteirista se baseou na novela de Walter Scott “O Talismã”.
-Você se lembra, então, de muita coisa.
-Isso, eu pesquisei, agora, mas a cena em que tentaram matá-lo, essa ficou marcada no meu espírito.
-Na verdade, essa flecha me atingiu no abdômen, quando, por problemas de fronteira, eu combatia os franceses. E, em consequência do ferimento, eu morri.
Mas você, sendo rei, não usava armadura?
-Não. - foi a sua resposta seca.
-Sim, você era intimorato; partia à frente dos seus soldados de peito aberto.
-Deram-me o cognome “coração de leão” pela minha valentia. Antes da minha ascensão ao trono inglês, eu já era assim chamado.
E acrescentou com um sorriso mordaz:
-Até os leões, atingidos no coração, morrem.
-Apesar dos riscos exagerados que passou, como rei-soldado, o seu reinado não foi muito curto.
-Reinei dos 32 aos 42 anos de idade.
-Seus pais foram Henrique II e Leonor da Aquitânia.
-Eu era o terceiro herdeiro; o primogênito Guilherme morreu criança e, depois dele, Henrique, que recebeu o cognome “O jovem”.
-Você estava na adolescência quando a sua mãe, Leonor da Aquitânia, se separou do rei.
-Eu a acompanhei quando partiu para Poitiers. Lá, recebi uma educação esmerada dentro dos moldes da cultura francesa.
-Seus opositores ingleses acusavam-no de não falar inglês, além de não dar importância alguma ao país em que nasceu.
-E meu irmão, João, tentaria, mais tarde, usurpar-me o trono com meias verdades, enquanto eu lutava na Terceira Cruzada. Quanto ao inglês, só a plebe o falava.
-Mas você preferia viver no Ducado de Aquitânia.
-Eu segui a minha mãe, como já disse e, em 1168, eu me tornava Duque da Aquitânia; contava com 11 anos de idade.
-A política do seu pai, Henrique II, era dividir seus territórios pelos filhos.
-Partindo da Aquitânia, ocorreu uma revolta generalizada contra o rei. Eu me uni à minha mãe na deflagração dessa revolta.
-Mas o seu pai, com muito custo, pois lutou durante um ano, conseguiu controlar os motins contra ele.  
-Perdoou a mim e ao meu irmão Henrique, mas encarcerou a minha mãe.
-Você estava com 16 anos de idade; o seu pai deduziu que você foi manobrado pela Leonor da Aquitânia, por isso o perdoou e a pôs na masmorra.
-Esse perdão teve um sabor amaríssimo, porque ele me obrigou a um humilhante pedido de desculpas.
-Você era jovem, influenciável... Não deveria ser tão orgulhoso.
Irritou-se com o meu comentário.
-Desde garoto, eu já conhecia os campos de batalha.
E bradou:
-Nunca me reconciliei com o meu pai.
-Sem a poderosa presença da sua mãe, em Aquitânia, a nobreza se revoltou e espocaram rebeliões para substitui-lo por um dos seus irmãos.
-Para lá fui com um exército e sosseguei todos os rebeldes com a violência que se fazia necessária.
-E, em 1183, morre seu irmão Henrique e você se torna o sucessor imediato do trono da Inglaterra.
-Cinco anos depois, meu pai, que já não me suportava, resolveu entregar o ducado de Aquitânia a João, meu irmão mais novo.
-O rei subavaliou a têmpera do filho. - assinalei.
-Evidentemente que eu não aceitaria pacificamente a minha destituição. Uni-me ao rei Felipe II de França e enfrentamos as tropas de Henrique II,
-Derrotado, o seu pai faleceu.
-Logo que morreu, em 1189, tornei-me rei da Inglaterra, duque da Normandia e conde de Anjou.
E prosseguiu após tomar fôlego:
-Fui coroado na Abadia de Westminster. Mas eu não era homem de me sentar no trono para ouvir mexericos de cortesões sabujos. Eu era um guerreiro e, por isso, ao me tornar rei, percebi que era o momento de preparar uma expedição à Terra Santa, a Terceira Cruzada.
-Seus adversários acusaram-no de, por causa dessa cruzada, raspar o tesouro do seu pai, cobrar novos impostos, vender títulos e cargos por valores exorbitantes, e de libertar o rei Guilherme I da Escócia da vassalagem por uma pequena fortuna.
-Foi necessário isso tudo, pois era um investimento com retorno lucrativo. A minha preocupação, na época, era o traiçoeiro Felipe II da França.
-Mas ele não foi seu aliado?
-Em política, o aliado da véspera pode ser o figadal inimigo do dia seguinte. A história está farta de exemplos.
-E você neutralizou a ameaça de perda de territórios para a França, convidando o seu rei para participar da Terceira Cruzada.
Às minhas palavras, chispou malícia do olhar do rei Ricardo I e ele se pôs a falar.
-Em Sicília, na primeira paragem dos cruzados, nós nos envolvemos com a política de lá e saqueamos algumas cidades. O Sacro Império me detestou, contudo, eu não me abalei e lhe impus Artur I, meu sobrinho, como herdeiro.
-Ao chegar com seu exército em Chipre, no ano seguinte, 1191, abateu os habitantes que lhe resistiram e, depois de obrigar o governante Isaac Comneno a abdicar, apossou-se da ilha.
-Não falemos apenas de corpos trespassados por espadas em 1191. Neste ano, eu me casei com a princesa Berengária de Navarra.
-Casamento que não o impediu de, logo depois, chegar à Terra Santa.
-Cheguei a tempo de romper o cerco que Saladino, líder da gente impura, submetia os batalhadores católicos.
-Você, com bravura, obrigou o temido Saladino a recuar suas forças, o que fez que a sua fama de herói se espalhasse por toda parte.
-Sim, mas os meus pérfidos aliados, Felipe II e o duque Leopoldo V da Áustria, se desavieram contra mim, Como se não bastasse, o meu irmão mais novo, se meteu muito mais do que devia nos negócios da Inglaterra. Tive, então, de voltar sem realizar o meu maior objetivo: conquistar Jerusalém.
-Nos preparativos do regresso, você se recusou a ver de longe Jerusalém?
-Mesmo o meu coração de leão baquearia diante da imagem da minha frustração.
-Na viagem de retorno, seus inimigos, com Leopoldo V da Áustria à frente, o aprisionaram. Em seguida, você foi entregue ao imperador Henrique VI do Sacro Império.
-Puseram-me durante quatorze meses num cativeiro austríaco.
-Com seus feitos nas batalhas e a fama advinda delas, respeitaram-no e o trataram com respeito.
-Eu era bem mais valioso vivo do que morto. Exigiram, então, da Inglaterra, resgate para me libertar.
E comentou:
-Conheciam, certamente, a história do imperador Júlio César.
-Era um resgate de valor imensurável. - disse-lhe.
-Praticamente, o dobro da renda anual da coroa inglesa.
-Tanto na sua partida para a Terceira Cruzada quanto na volta, o tesouro da Inglaterra foi raspado.
-Arrependi-me publicamente dos meus pecados, e, pela segunda vez, fui coroado rei da Inglaterra.
-Mas não sossegou no trono e partiu para mais uma guerra.
-Os problemas fronteiriços com a França persistiam. Numa dessas batalhas, recebi uma flechada; talvez como aquela do cinema que tanto o marcou e não resisti ao ferimento.
-Seu irmão, João Sem Terra, conseguiu, finalmente, tornar-se rei.
Limitou-se a balançar a cabeça.
-Mas teve de assinar a Carta Magna que lhe foi imposta.
Não sei se me ouviu, pois partira para não sei que batalha.







Nenhum comentário:

Postar um comentário