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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4843 Data: 03 de
abril de 2014
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EU, ELIO E O SENADOR PINHEIRO MACHADO
-Elio, o que é aquilo, dois homens com
armas na mão, um defronte do outro, como nos filmes do faroeste que víamos no
cinema?
-É um duelo, Carlos.
-Os duelistas estão vestidos com muito
apuro, não parecem aqueles cowboys que só tomavam banho aos sábados. -
observei.
-Dois tiros soaram simultaneamente, mas
apenas um duelista tombou.
Um número incontável de pessoas correu
até o homem ferido.
-Que bagunça, Elio!... Nos duelos que li
nos livros do Alexandre Dumas e de outros escritores do século XIX, havia mais
organização.
Apesar da minha crítica, juntei-me ao
grupo alvoroçado que envolvia o homem caído, que era socorrido pelo médico.
-Ele sobreviverá; o tiro atingiu-o no ilíaco.
- diagnosticou o galeno.
-Ufa!... Imaginei que nosso chefe tinha
sido castrado a bala. - disse alguém, em voz baixa, com um caderninho e um
lápis na mão com todo o jeito de repórter.
Quando retornei, o Elio há havia colhido
informações que nos situaram no tempo e no espaço.
-Estamos em 1906, no governo do Afonso
Pena. Este duelo que vimos foi entre o senador Pinheiro Machado e o jornalista
Edmundo Bittencourt, que sobreviverá a esse tiro.
-Os duelos estão proibidos, mas, pela
posição social dos dois, eles não serão presos. - acrescentou.
-Elio, não prenderam Olavo Bilac e
Pardal Mallet quando duelaram a florete, esses dois também continuaram livres.
-E como os dois duelistas terminaram?
-Olavo Bilac feriu levemente seu
adversário na barriga. Os gozadores
fizeram um trocadilho em que diziam que o oponente do Bilac quis voar como uma
águia, mas “pardal mal é...”
Depois de esboçar um sorriso, Elio
comentou seriamente:
-Pinheiro Machado sabe lidar com armas
melhor do que eles todos, pois, com 15 anos e idade, fugiu da fazenda do pai,
no Rio Grande do Sul e foi lutar na Guerra do Paraguai.
-Sim, mas ele viria a seu muito mais
político do que militar. - frisei.
-Pinheiro Machado participou do
Congresso Constituinte de 1890/1891.
-A primeira constituição de uma série de
constituições que o Brasil republicano viria a ter. - seguiram-se as minhas
palavras às do Elio.
-Sei, Carlos, que você é monarquista.
-Sou parlamentarista com monarquia.
Ele discordou, mas não levamos a celeuma
adiante, pois já bastavam os nomes citados que se enfrentaram de armas em punho
devido à paixão política.
-Em 1893, Pinheiro Machado deixou o
Senado Federal para combater contra a Revolução Federalista que eclodiu no seu
estado, Rio Grande do Sul.
-Ensinaram-lhe isso no Colégio Militar?
-Não; minha mãe me dizia, nas suas aulas
de História do Brasil, que o Pinheiro Machado sempre manteve acesa a chama de
militar. Ele, pelos serviços prestados na luta contra os revoltosos, recebeu,
por bravura, a patente de general.
Antes mesmo do duelo a que assistimos, o
nome do Senador Pinheiro Machado já era extremamente influente no cenário
político. No Senado, travou debates
homéricos com Rui Barbosa; ele recebera o cognome e “Chefe”, e o tribuno
baiano, de “Mestre”.
Eu e Elio aproveitamos a oportunidade e
fomos assistir aos dois polemistas. Pinheiro Machado discursava:
-”Se eu me manter...”
-”Se eu me mantiver”. - corrigiu-o Rui
Barbosa esboçando um sorriso de superioridade.
-Enquanto Vossa Excelência aprendia a
escrever bonito, eu matava e morria na Guerra do Paraguai. - reagiu Pinheiro
Machado.
-Bela réplica. - murmurei.
-Carlos, apesar de o político Pinheiro
Machado ser conservador, e Rui Barbosa, liberal, ele é muito mais ligado às
pessoas do povo do que o “Águia de Haia”.
E as palavras do Elio se tornaram ainda
mais exatas quando a máquina do tempo nos transportou para uma das festas do
senador gaúcho no seu palacete no Morro da Graça.
-Por que você não apareceu na minha
última festa?- interpelou ele um jovem esguio de uns 20 anos de idade.
-É o João da Baiana. - sussurrou-me o
Elio, carregando-me para perto dos dois.
-Não pude vir, Senador, porque, na festa
da Nossa Senhora da Penha, a polícia apreendeu o meu pandeiro.
-Um absurdo! - bradou.
E lhe deu de presente um pandeiro, mas
antes, escreveu algo no couro, como os dizeres: “Com a minha admiração, ao João
da Baiana. Pinheiro Machado.” Ele leu essas palavras, e seus olhos faiscaram:
-Isto é um salvo-conduto que me protege
em todos os recantos do Brasil.
-E pensar que Rui Barbosa faria um
estentóreo discurso contra o presidente Hermes da Fonseca porque promoveu um
sarau da Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete... - ciciei.
A influência do Senador Pinheiro Machado alcançou a plenitude quando ele
apoiou o Marechal Hermes da Fonseca em oposição a Rui Barbosa na eleição à
presidência da República em 1910. O seu
candidato, por pouco, não obteve o dobro da votação do Rui Barbosa. Pinheiro
Machado já era conhecido como o condestável, o “fazedor de presidentes”.
Mas ele não era uma unanimidade. Certa
vez, uma pequena multidão inamistosa o aguardava na saída da redação do jornal
“O País”.
-Eis uma cena da nossa história que
sempre quis testemunhar. - confessei.
-Quem fugiu de casa com 15 anos de idade
para lutar na Guerra do Paraguai não se permitirá ficar encurralado por
arruaceiros. - disse-me o Elio.
Ele, de fato, não se deteve; entrou no
seu carro e deu a seguinte ordem ao chofer:
-Vá em frente; não tão rápido que pareça
covardia, nem tão devagar que pareça provocação.
Estávamos, agora, em 1915, no palacete
do Senador. Sentado numa cadeira estofada, bebericava o seu chimarrão, enquanto
proseava com um grupo de parlamentares e congêneres.
-Veja, Carlos, há sempre um parlamentar
pronto para trazer a chaleira de água quente para reabastecer a sua cuia de
chimarrão.
-É a “turma do bico da chaleira”, que
entrou para o folclore político brasileiro e também foi tema de uma marchinha e
carnaval.
-Uns bajuladores...
De súbito, Pinheiro Machado se levantou,
deixando a cuia de chimarrão com um dos presentes, e anunciou a sua ida ao
Hotel dos Estrangeiros onde visitaria seu amigo, o Dr. Rubião Júnior, que
chagara de São Paulo.
-É agora que acontecerá a tragédia. -
disse-me o Elio com uma voz macabra.
Evidentemente, eu e Elio, testemunhas
oculares da história, rumamos também para lá.
No vestíbulo do Hotel dos Estrangeiros,
o General Pinheiro Machado se dirigiu a dois deputados federais pelo estado de
São Paulo.
Demonstrando excelente humor, ele chamou
os dois para subirem até os aposentos do Dr. Rubião Júnior. Os dois, mesmo
mostrando-se alegres, recusaram.
Nesse ínterim, um sujeito, não tão bem
trajado como os demais, perguntou quem era o Sr. Pinheiro Machado.
-Carlos, é o Manso de Paiva.
-Estranhíssimo que não conheça o
Senador. - comentei.
Quando atravessava o saguão de entrada
para a sala do hotel, Pinheiro Machado recebeu uma punhalada pelas costas de
Manso de Paiva, que poucos viram de tão discreta.
O
General Pinheiro Machado desceu calmamente a escadaria, encaminhou-se para a
sala de visitas do hotel e, somente lá, declarou que recebera uma punhalada nas
costas. Sentou-se numa cadeira e expirou.
Foi uma comoção geral que se alastraria
por todo Brasil.
Sem esboçar resistência, o assassino
entregou o punhal dizendo que agira por conta própria.
-Isso não me parece verdade, Elio.
-Mas essa versão é a que ficará. -
afirmou-me, enquanto nos afastávamos de lá.
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