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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4384 Data: 15 de março de 2014
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127ª VISITA À MINHA CASA
-Padre José de Anchieta, como o senhor
se sente como o próximo santo brasileiro?
Tentei mostrar-me entusiasmado, embora
estivesse perturbado com a sua inesperada visita.
-Eu não sou brasileiro, nasci nas Ilhas
Canárias.
-Padre, na minha época de garoto de
calças curtas, na escola primária, o seu nome era um dos mais citados pela
minha professora nas aulas de Conhecimento Gerais. Ficou-me, então, na cabeça,
que o senhor era brasileiro.
-Entendo a confusão, mas o Brasil foi o
país que mais me marcou.
-Outra confusão minha era pensar que o
nome do Arquipélago das Canárias fosse devido ao grande número dessas aves
canoras, mas, na realidade, ele veio da quantidade de cães. Não atentei para o
latim canis na etimologia da palavra “Canárias”.
Ele esboçou um sorriso generoso.
-O senhor foi mestre em latim, português
e na língua tupi.
-Escrevi uma gramática da língua
brasílica, como a chamávamos, “A Cartilha dos Nativos”.
-O senhor colocou em palavras e escreveu
a primeira gramática da fala dos indígenas. -dei ao seu trabalho, com a
sonoridade da minha voz, a importância que esse fato merecia.
-Embrenhei-me pelas matas, convivi com
os nativos, e aprendi com eles a sua língua. Ensinei e aprendi.
-O seu a “Arte da Gramática da Língua
Mais Usada na Costa do Brasil” foi impresso em Coimbra em 1595. Essa edição
apresenta folha de rosto com o emblema da Companhia de Jesus; restaram, hoje,
sete exemplares, um deles pertenceu a Dom Pedro II e está na Biblioteca
Nacional do Brasil, há lá um outro exemplar que pertenceu a um colecionador, os
outros cinco, não sei onde estão.
-Uma pena que a língua dos nativos, no
Brasil, não seja falada, hoje, juntamente com o português.
-Há países, na América do Sul, em que é
conhecida por alguns, além do castelhano, a fala dos indígenas. - disse-lhe.
-Eu tentei, com a minha gramática,
colocar no papel a língua brasílica, até então oral.
-Sim, José de Anchieta, a língua
brasílica, ramo do tupi-guarani, era o meio de comunicação entre todos aqui, no
Brasil, os índios, naturalmente, os portugueses e os escravos que chegavam da
África. O português só era usado nos relacionamentos com a Coroa Portuguesa.
-Mas se tornou uma língua extinta. -
penalizou-se.
-O Marquês de Pombal expulsou os
jesuítas do Brasil e tornou obrigatório o idioma português. Isso foi no século
XVIII.
-Há muito que eu estava morto. - esboçou
um sorriso triste.
-E como você chegou ao Brasil?
-O Padre Manuel de Nóbrega, que chefiou
a primeira missão jesuítica à América, solicitou mais religiosos para a
evangelização do Brasil. Entre os indicados pelo Providencial da Ordem dos
Jesuítas, Simão Rodrigues, eu me encontrava.
-O senhor era muito jovem?
-Eu estava com 20 anos de idade; era
Noviço. Embarquei na armada de Duarte Góis e cheguei ao Brasil em 13 de junho
de 1553.
-O senhor era parente do fundador da
Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, não era?
-Meu pai Juan Lopez de Anchieta tinha
laços de sangue com Inácio de Loyola, eram primos.
-E a sua mãe?
-Ela era natural das Ilhas Canárias.
Quanto ao meu pai, era basco, um revolucionário que combateu o imperador Carlos
V.
-Sua mãe era judia?
-Ela, não, seu pai, sim, mas se
converteu ao Reino de Castela. Meu avô era cristão-novo, portanto.
O senhor teve doze irmãos?
-Sim, mas apenas dois, contando comigo,
seguiram o sacerdócio.
-O senhor, com sua família, se mudou
para Portugal. Com quatorze anos de idade, foi estudar Filosofia no Real
Colégio das Artes e Humanidades junto à Universidade de Coimbra.
-A intolerância dos espanhóis com os
judeus, mesmo convertidos ao catolicismo, foi determinante para a nossa
mudança. Em Portugal, a Inquisição havia sido introduzida no reinado de João
III, em 1536, mas não era tão assustadora quanto à espanhola.
Ao que leva a intolerância: um futuro
santo, pela Igreja Católica, temendo ser torturado e morto como herege. -
pensei, mas sem me manifestar.
Chegando ao Brasil, conheceu o Padre Manuel
de Nóbrega?
-Tornamo-nos grandes amigos, porém, não
o conheci logo que pisei estas terras.
-Conheceu-o depois de se embrenhar por
“ínvios caminhos cobertos de espinhos”.
- como diria, séculos depois, nosso poeta Gonçalves Dias.
-Coube-me a ação missionária de
enveredar pelo planalto de Piratininga e participar da fundação do Colégio São
Paulo, acompanhado de outros jesuítas.
-Vocês faziam história, pois o Colégio
de Piratininga foi o embrião do surgimento da Cidade de São Paulo.
-A minha imaginação, por mais delirante
que fosse, não concebia que dali surgiria uma grande cidade, porque no primeiro
ano daquela povoação, éramos apenas 130 almas, sendo que só 36 delas haviam
sido batizadas.
-Soube-se que a data de fundação de São
Paulo é o dia 25 de janeiro por causa de uma carta sua aos seus superiores da
Companhia de Jesus. Deixe-me ver quais foram as sua palavras no computador.
-Não há necessidade, eu as tenho de cor.
E, sem perda de tempo, as reproduzir:
-”A 25 de janeiro do Ano do Senhor de
1551, celebramos, em paupérrima e estreitíssima casinha, a primeira missa, no
dia da conversão do Apóstolo São Paulo, e, por isso, a ele dedicamos nossa
casa.”
-Aprendemos esses fatos históricos já na
escola primária. - entusiasmei-me, pois era uma maneira de eu voltar aos tempos
de menino.
Como ele se mantivesse emudecido,
lembrei-lhe que, como religioso, ele não se limitou a educar e a catequizar os
gentios, mas também defendê-los da crueldade dos colonizadores.
-Muitos queriam escravizá-los e
tomar-lhes as mulheres. Como seguidores do cristianismo, tínhamos de intervir.
-Houve um momento crítico das desavenças
entre índios e colonizadores que redundaram na Confederação dos Tamoios. Como
foi resolvido, padre?
-Fui com o Padre Manuel de Nóbrega à
aldeia de Iperoig (Ubatuba) em busca de um armistício com os Tupinambás.
Ofereci-me como refém, enquanto o Padre Manuel de Nóbrega rumou para São
Vicente com o objetivo de ultimar as negociações de paz.
-Refém, os índios lhe ofereceram
mulheres – dizem os historiadores – e, para não cair na tentação, o senhor
escreveu nas areias da praia, um poema dedicado à Virgem Maria, que, mesmo as
ondas do mar levando seus versos, eles não foram esquecidos.
-O mar, que apagou os versos da areia,
não chegou à minha memória.
-Poucos anos depois da Confederação dos
Tamoios, o senhor e o Padre Manuel da Nóbrega enfrentaram os huguenotes, que
estabeleceram a França Antártica na Baía da Guanabara.
Fui companheiro de Estácio de Sá, que
combateu os invasores, e o assisti nos seus estertores.
-As turbulências da história nunca o
deixaram descansar.
-Veio um período mais calmo na minha
vida. Dirigi por três anos o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro, antes,
fundei a povoação de Reritiba no Espírito Santo.
-E foi nomeado Provincial da Companhia
de Jesus no Brasil.
-Com dez anos nessa função, pedi para
ser substituído, porém, tive ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas, em
Vitória, Espírito Santo. Retirei-me, finalmente, para Reritiba, onde faleci.
-Em 1617, os jesuítas brasileiros
oficializaram na Companhia de Jesus, o pedido da sua canonização. Transcorridos
séculos, e assumindo o papado um jesuíta, pela primeira vez, a sua canonização
será sacramentada.
Não sei se ouviu essa notícia, pois
partia para longe.
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