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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4283 Data: 28
de setembro de 2013
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94ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-E a sua briga com Villa Lobos? - repeti
a pergunta a Arthur Rubinstein.
-Em Buenos Aires, eu ouvi falar de um
jovem compositor brasileiro muito talentoso, Villa Lobos. Na verdade, foi
Ernest Ansermet quem me falou dele com muito entusiasmo; isso, em 1918.
-Ele tinha vinte anos de idade. -
interrompi.
-Quando segui para o Rio de Janeiro,
quis conhecê-lo. Assim, segui para o cinema onde ele trabalhava.
-O cinema Odeon.
-Ela tocava no piano, com uma pequena
orquestra, umas musiquinhas populares até que executou uma das suas obras,
“Danças Africanas”. Meu amigo de Buenos Aires estava certo e, então, fui
cumprimentá-lo no intervalo. E ele me disse:
-Vous êtes un virtuoso, vous ne pouvez
pas comprendre ma musique!...”
-Ele falou em francês, Rubinstein?
-Ele falou ofensivamente para eu
entender.
-Quis Villa Lobos dizer que os virtuosos
estão mais interessados em brilhar para a plateia do que entender o que os
compositores pretenderam expressar nas suas obras. E ele foi dizer isso logo
para você?!...
-Senti-me extremamente ofendido e segui
para o Palace Hotel, onde estava hospedado. Dormia eu debaixo de um mosquiteiro
quando, às oito horas da manhã, fui acordado com batidas na porta. Serviço de
quarto já?!... Abri a porta e me aparecem Villa Lobos com mais de dez músicos.
-Eles trabalhavam de tarde e de noite,
só estavam disponíveis nessa hora da manhã. - expliquei.
-E tocaram... Ele, com seus
acompanhantes, me arrebatou com suas criações.
-Sabendo que Villa Lobos se encontrava
em dificuldades financeiras, que estava no início da carreira, você adquiriu
algumas partituras dele por um ótimo preço, alegando que eram para um colecionador,
não queria melindrá-lo. É verdade isso?
-Importa que ele compôs o “Rudopoema”,
que me dedicou e muitas outras extraordinárias obras para o piano.
-Que você divulgou para todo o mundo musical.
- acrescentei.
-E ele merecia.
-Diziam alguns críticos que você não se
interessava muito pelos compositores do seu tempo.
-É para rir... Executei composições de
Villa Lobos, Karol Szymanowski, Granados, Albéniz, Manuel de Falla e o grande
Stravinsky, que me dedicou três movimentos de Petruschka.
-Os críticos sempre existem...
-Meus maiores críticos foram meus filhos
e minha mulher. Em certo recital, eu fui ovacionado; recebi flores, um dilúvio
de aplausos. Senti-me o maioral e rumei para o camarim, lá, encontrei um dos
meus filhos que me perguntou: “O que deu em você esta noite?”... E ele estava
certo: eu não toquei tão bem.
E acrescentou:
-Algumas vezes, falam-me que toquei como
Deus, mas Deus não toca piano.
-Você aproveitou bem a vida?
-Fizeram-me essa pergunta quando eu
tinha mais de 80 anos de idade e respondi prontamente: “ainda aproveito”.
Casei-me com quarenta e três anos de idade, mas sempre olhei as mulheres com
interesse. Tivemos quatro filhos e sei da dificuldade da minha mulher em
educá-los com os meus constantes deslocamentos, digo, por isso, que ela é
única.
-Os que o conheceram mais do que nós,
meros apreciadores da sua arte, disseram que você era diferente de todos os
outros intérpretes, que você, sim, era único.
-Eu era único e singular.
-Voltando a sua esposa, você a conheceu
e a namorou por bastante tempo.
-Vi Aniela Mlynarski em 1928, casamos em
1932.
-Você era requisitado em todo o mundo.
-Viajei muito. Gostava de viver, de
apreciar diferentes lugares e diversas pessoas e culturas. Isso tonificava a
minha arte mais do que ficar horas e mais horas numa sala em cima de um piano.
-Acredito que, na sua formação, não
havia como fugir das muitas horas da prática pianística.
-Eu levava chocolate para perto de mim;
a minha mão esquerda ficava sobre as teclas, enquanto a direita pegava o
chocolate que eu comeria em seguida.
O chocolate que o pai lhe negara,
pensei, enquanto ele continuava alegremente:
-Ou, então, eu pegava um desses romances
proibidos, Zola ou Guy de Maupassant... A minha mão esquerda eu dedicava às
teclas, enquanto a direita virava as páginas dos livros que eu leria.
-Houve quem o acusasse de não ensaiar,
de ser um pouco diletante...
-A minha criatividade foi gerada por
esse tipo de vida considerada preguiçosa: leituras de romances, poemas, idas
aos museus, às praças.
-Você não teve como amigos outros
pianistas?
-Não, porque o único livro que eles
tinham em casa era a lista telefônica.
-Como as águias que rejuvenescem depois
de muitos voos, quebrando bico e garras para que nasçam outros, depois do seu
casamento, você renovou a sua técnica, após estudos intensivos, e, em 1937, a
plateia americana, na frente das outras, viu um Arthur Rubinstein revigorado como
artista.
-Isso foi pouco antes da Segunda Grande
Guerra. Mudei-me para os Estados Unidos e obtive, em 1946, a cidadania americana.
-Você tentou compor?
-Tentei, mas as minhas obras eram
pastiches de Chopin, Schumann, Brahms... Rasguei tudo e me convenci que a minha
função era de transmitir as obras dos grandes autores.
-O maestro Daniel Barenboim afirmou que
Chopin era executado com uma anarquia rítmica, que surgiu você, possuidor de
uma grande ética em relação ao papel de intérprete e colocou ordem nisso tudo.
-Eu conhecia a história da música. Há os
que juntam as notas, mas isso é escandaloso. Respeito a música como ela foi
composta; entendo em que atmosfera ela foi criada. Não me vejo fazendo
cadências infernais nas composições que toco.
-Sim. - limitei-me a dizer.
-Chopin dizia que devemos entender uma
música com o seu sotaque correto. O sotaque de Chopin era natural para mim.
-Você foi consagrado como o grande
intérprete de Chopin, também de Brahms.
-Chopin não era realmente um romântico.
Ele viveu no período romântico e, claro, usou a linguagem dos românticos. Ele
foi um adepto apaixonado de Bach e Mozart e encarava Beethoven com
desconfiança. Chopin percebia a genialidade de Beethoven, seria um mau músico
se não percebesse. Chopin ensinava as sonatas dele aos seus alunos com profundo
respeito, mas desconfiava do romantismo de Beethoven. Não gostava, por isso, da
música de Schumann, achava que havia muita literatura romântica nela. E, de
certo modo, Chopin estava certo, afinal, ele aprendeu seu ofício com Bach e
Mozart, que não foram românticos, eram puros.
-E Mozart, Rubinstein?
-Adoro Mozart, ele me emociona. Penso
que gosto de Mozart acima de todos. Eu tocava Mozart, quando menino, com muita
convicção. Mozart não deve ser tocado de outro modo.
E prosseguiu:
-Gosto muito de Beethoven. Para mim,
algumas das suas obras são sublimes. Há dois quartetos, por exemplo, que eu não
posso ouvir; até hoje tenho medo que eles me façam chorar... Não consigo
resistir de tanto que eles tomam conta de mim. Beethoven era super-romântico.
Ele compunha algo e, de repente, aparecia uma frase com uma revolta. E toda a
sua filosofia religiosa surgia repentinamente, sua ira, sua tentativa de lutar
contra Deus. Beethoven foi um homem com uma mente demoníaca. Ele era uma pessoa
demoníaca.
-Sua filha afirmou que você se arriscava
mais nos apresentações públicas do que nos estúdios de gravação.
-Há intérpretes que tiram do bolso
fórmulas e mais fórmulas, eu pensava que, às vezes, temos de trocar o bolso
pelo coração. Eu via uma pessoa na plateia, independente de ser homem ou
mulher, bonito ou feio e o imaginava como o maior conhecedor de música de todos
que se encontravam no teatro, e tocava para ele.
-A guerra acabou, você viveu até 1982,
mas não foi tocar na Alemanha.
-Yehudi Menuhin foi, eu não, estava
acima das minhas forças. Como eu poderia tocar no país em que meus familiares
foram assassinados e todos os seus amigos?
O máximo que consegui foi dar um concerto na Holanda nas proximidades da
fronteira com a Alemanha.
-95 anos... Você viveu bem.
-Se você me permite dizer algo tão
indecente de tão arrogante... Ninguém foi mais feliz do que eu. Fui um
colecionador de momentos de eternidade.
-Você não acreditava, quando vivo, na
vida depois da morte?
-Não acreditava, mas eu dizia que, caso
existisse vida após a morte, eu ficaria encantadíssimo.
-E existe?
Sem responder-me, o grande pianista
partiu.
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