----------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4282 Data: 27 de
setembro de 2013
-------------------------------------------------------------------
94ª VISITA À MINHA CASA
Arthur Rubinstein...
Depois de me recobrar do espanto,
acrescentei:
-Pena que eu não tenho um piano em casa
para recebê-lo.
-Ora, eu não saio pelo mundo atrás de
piano. - reagiu com veemência.
E prosseguiu:
-Não preciso me concentrar no trabalho o
tempo todo. Gosto de ver o lado alegre das coisas. Gosto de ver pessoas
interessantes, que não precisam nem gostar de música, elas podem até odiá-la.
Apetece-me assistir a um evento esportivo só pela diversão. Isso também me
interessa. Estou sempre atraído pelo que acontece ao meu redor.
-Sim, mas você com dois anos de idade já
ficava encantado pelo piano.
-Minhas irmãs mais velhas tocavam piano
e eu esperava o momento de elas terminarem; então, eu subia no banco e
dedilhava as teclas.
-Todos, certamente, ficavam
maravilhados.
Ouviu o elogio e sorriu sardonicamente.
-Nessa idade, quando eu conseguia saltar
três degraus da escada, considerava uma grande proeza, e esperava os aplausos.
E ninguém dava a mínima, ignoravam-me, mas quanto eu tocava, era felicitado; eu
não entendia por que, pois era tão fácil...
-Você nasceu em Lodz, em 1887 e recebeu
o nome de Arthur.
-Meu irmão viu um violoncelista com esse
nome, falou tanto nele, que me chamaram de Arthur. Gosto do nome. Musset disse:
“Passe as mãos nos meus cabelos e me chame de Arthur.”
As palavras do poeta foram ditas em
francês, que era um dos muitos idiomas que Arthur Rubinstein falava fluentemente.
-Eu era polonês de origem judaica.
-Com três anos de idade já lhe era
ministradas aulas regulares de piano.
-Sim e com oito anos ingressei no
conservatório de Varsóvia. Um ano depois, apresentei-me em Lodz, tocando
Mozart.
-E aos dez anos de idade o enviaram para
Berlim, onde tomaria aulas com Heinrich Berth?
-Um dos meus tios escreveu uma carta
para o grande violinista, amigo de Brahms, Joseph Joachim...
-Músico húngaro, de origem judaica, para
quem Brahms compôs o concerto para violino e orquestra. - interrompi
intempestivamente.
-Joseph Joachim demonstrou interesse em
me conhecer, e a minha mãe me levou a Berlim. Eu não falava nem iídiche, muito
menos o alemão...
-Sua família não sofreu em se separar de
você ainda tão menino?
O grande músico, que não era de se
mostrar embaraçado, pensou muito em responder, e preenchi logo o silêncio.
-Você não recebeu muito afeto dos seus
pais?
-Meu pai era muito ocupado, tinha uma
fábrica de tecidos que perderia depois; ficou pobre. Eu o vi muito pouco na
vida, a minha mãe também.
E continuou:
-Com quatro anos de idade, eu pedia um
chocolate ao meu pai e ele me dizia: “imagine que você já engoliu um.” Eu
tentava imaginar, mas não conseguia.
-E você com seus filhos?
-Dou o chocolate, dou um segundo, um
terceiro e até um quarto. Depois, pergunto: “não querem mais chocolate?”
Depois de rir, voltou ao passado.
-Quando os meus pais morreram, eu já
estava na América. É uma página triste da minha vida.
-Em 1906, você tocou no Carnegie Hall
com a Orquestra da Filadélfia?
-Você adiantou os acontecimentos. -
criticou-me depois de responder-me afirmativamente.
-Talvez porque você falou na América...
- justifiquei-me para emendar outra pergunta.
-E quando se deu a sua estreia como
pianista em Berlim?
-Na virada do século, eu estava com
treze anos de idade.
-E foi para Paris com dezessete anos de
idade?
-Fui sozinho para lá. Isso em 1904, um
ano de grande importância para mim, pois me emancipei, não seria mais aluno de
piano de ninguém. Os estudos continuariam, evidentemente, pois até o nosso fim
estamos aprendendo, mas aluno, nunca mais. E também descobri os encantos de
Paris, que passou a ser meu lar, embora minha vida fosse de viajante.
-Você nunca pensou em outra carreira que
não fosse ligada à música?
-Sinto com frequência as vibrações das
coisas e fico feliz quando isso acontece.
A música é um bom veículo. É uma arte metafísica. Há emoções musicais
que nos distanciam de tudo, de qualquer forma elas nos elevam. Não, pertencemos
mais a esse planeta...
-O maestro Daniel Barenboim que, quando
jovem, o conheceu, afirmou que a música era, para você, a vida, tudo que amava,
mas que você era contra a música encerrada numa torre de marfim.
-Eu digo que para executar bem uma peça musical,
eu precisava ler bons livros, visitar museus, ir ao teatro, admirar as mulheres
bonitas, frequentar os cafés... Viver, enfim.
-Ou seja, vida e música para você não
eram excludentes?
-De forma alguma. - foi peremptório.
-Em 1916, você obteve verdadeiros
triunfos na Espanha, onde tocou Manuel de Falla e Enrique Granados.
-Há um grande compositor da Espanha que
você não citou.
Depois dessa admoestação, dada de bom
humor, viajou pelas reminiscências com entusiasmo.
-Eu estava na Espanha com um grupo de
pessoas, entre elas o compositor Paul Dukas. Destacava-se um gordo, com uma
barbicha, muito alegre, que nos fazia rir. Certo dia, Paul Dukas me entregou
partituras de obras de Isaac Albéniz, que era o tal gordo de barbicha, que
tanto nos alegrou. Ele já havia morrido.
-Ele morreu em 18 de maio de 1909. -
interferi.
-Olhei as partituras e exclamei: “Nossa,
que difícil!...” Havia tantos bemóis e tantas outras dificuldades.
-E você as tocou logo?
-Tocar obras espanholas sem o “sotaque”
é um perigo e eu não me atrevi a tocar essas partituras em público.
-Mas o seu espanhol é excelente, o
sotaque não é pronunciado.
-Mas falar é outra coisa.
E foi adiante:
-Um dia, a viúva de Isaac Albéniz me
convidou para um almoço em sua casa e eu fui, evidentemente. Em determinado momento, ele me pediu para
tocar peças do marido; fui para o piano com o coração confrangido.
-Deixou-a encantada e comovida. -
deduzo.
-Os espanhóis acham que fui espanhol em
outra vida por causa da música.
-De como você interpreta as músicas dos
compositores da Espanha. - acrescentei.
-Eu era muito amigo de Picasso e ele me
pediu para tocar alguma coisa. Como ele não entendia as obras sérias, toquei
músicas simples, peças populares, zarzuelas, enfim. Quando terminei, ele estava
abismado: “Você toca como se fosse espanhol... De onde você tirou esse
ritmo?”... E eu disse: “Tirei do estômago”. Picasso reagiu: “Eu pinto com o
estômago.”
Depois de um silêncio, ele concluiu com
a expressão marota:
-Fiquei sabendo, assim, de onde vêm a
música e a pintura.
-E a sua briga com Villa Lobos?
Nenhum comentário:
Postar um comentário