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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4281 Data: 24 de
setembro de 2013
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O SABADOIDO CADA VEZ MAIS DOIDÃO
PARTE III
Os telefonemas do Luca são rápidos,
esses do Sabadoido, bem entendido, mas o tempo do Claudio naquela ligação com
ele durava.
-Luca não vem. - previu a Gina.
Sim, não vem, pois o uso do celular para
avisar que chegou simplesmente substituiu o seu grito de “Claudiomiro”, no
portão, que o Daniel deu de imitar.
-”Só imito os grandes artistas.” -
disse-lhe o meu sobrinho, mas não o convenceu, ainda mais que o Luca já o vira
imitando diversas vezes o Lula, o Maluf, o Clodovil e até o Scooby Doo.
-Luca vem, mas para ficar apenas quinze
minutos, pois tem de fazer companhia à Glória, que passou por um teste de saúde
rigoroso. - informou o Claudio assim que desligou o telefone.
Daniel entrou na cozinha, fatiou um
pãozinho, recheou de manteiga e praticou a atividade mastigatória com louvor.
-Ontem foi o aniversário da Candinha.
-Pois é, Gina, eu soube hoje no Facebook
e lhe enviei parabéns envergonhados pelo atraso.
-Carlão, ela não foi da sua turma no
curso primário? Eu vi a fotografia de vocês no computador.
-Uma amiga de infância que se tornou
amiga virtual e assim, recebeu minhas saudações no dia do seu aniversário.
Vejam como o mundo muda. - observei.
O telefone tocou outra vez; era o Luca
avisando que já estacionara o carro na calçada. Meu irmão pegou o molho de
chaves que abriria o portão, enquanto eu passei a arrumar os cadernos do Globo
que ficaram espalhados sobre a mesa.
Encontrei na antiga garagem do fusquinha
da Gina, local das sessões do Sabadoido, o Claudio e o Luca, acomodados nas
suas cadeiras privativas e a Gina, no lugar do Vagner que, pelo avançado da
hora, não apareceria mais.
Luca discorria sobre o exame a que sua
mulher foi submetida, com interrupções pertinentes da Gina. Depois de telefonar para casa,
certificando-se que tudo corria bem, passou a narrar suas mazelas.
-Luca, essas dores que você sente não
são as provenientes das horas que você passa jogando pingue-pongue?
-Luca me respondeu trocando, sem
estardalhaços, pingue-pongue por tênis de mesa, e acentuado o fato que havia,
agora, uma novidade assustadora: a dor se irradiava para o braço esquerdo.
Não havia necessidade de ser psicóloga,
como a Gina, para concluir que o estado de saúde da glória afetou o seu estado
emocional.
Meu irmão, que pretende impedir que as
doenças sejam assunto das nossas reuniões, assim como o futebol, a política e a
religião eram banidas do Sabadoyle, conseguiu inserir a votação dos embargos
infringentes na nossa conversa. Luca se
empolgou:
-Você viu todo o voto do Celso de Mello,
Claudiomiro?
-Um voto de mais de duas horas?... Eu não.
- respondeu com gestos de impaciência.
-Eu tenho mais o que fazer. - seguiram
as palavras da Gina as dele.
Em duas horas, pode-se ver uma
obra-prima do cinema, ouvir até duas sinfonias de Beethoven, ou três concertos
de Mozart, ler um conto de Machado de Assis... - pensei sem me manifestar.
-Eu vi, inegavelmente havia muita
erudição ali, coisas para se aprender. Eu chamava a Glória para assistir, mas
ela respondia que não queria saber daquilo, que estava descrente da justiça no
Brasil.
Reportei-me, em silêncio, aos
comentários da Candinha no Facebook e inferi que as duas irmãs, como a maioria dos brasileiros lúcidos, estavam
desiludidas com as instituições brasileiras.
-Tenho aqui uma crônica muito boa do Ruy
Castro, na Folha de São Paulo... - disse o Luca, entortando o corpo para
apanhá-la na mesinha, e pôs-se a lê-la.
-Ele é um petista. - interrompeu-o com
aspereza meu irmão.
-Cláudio, eu nunca li nada do Ruy Castro
em que ele se mostrasse petista. - intervim.
-Deixe-me ler, Claudiomiro, que você vai
se surpreender.
Na crônica, intitulada “É de arrepiar”,
Ruy Castro enumerava os terrores pretéritos que apavoravam as pessoas; citou
Drácula, Múmia, Frankenstein, e outros como Manguito Rotator (grupo de músculos
e tendões para estabilizar o ombro), Espiroqueta Pálida (treponema pallidum,
bactéria que provoca a sífilis), Espondilite Anquilosante (inflamação incurável
na coluna vertebral). Então, o cronista, na voz do Luca, chega ao terror de
nosso tempo, que é inexplicável, como o do filme “Os Pássaros”, de Hitchcock, ou
incompreensível, como o holocausto atômico de “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick.
E a crônica e a leitura foram encerradas com o terror que provoca arrepios: os
“Embargos Infringentes.”
Rosa recortou do mesmo jornal outra
crônica sobre o assunto, de Marcelo Coelho, que não foi lida, mas que contém um
trecho que merece ser transcrito:
“Surgiu Barroso, é verdade, já no final
da história. Estava, entretanto, no papel de trovador, dedilhando o alaúde dos
fatos consumados. Mas sua voz canora não se contentou com o papel de acompanhante;
quis chamar a atenção, quis o estrelato televisivo, e aí desafinou. Marco
Aurélio de Mello colocou o “novato” no seu devido lugar.
Então, veio do portão um chamado
intempestivo: era o Vagner.
-Ele chega na hora de eu ir embora. -
reagiu o Luca.
-Vocês, agora, vão ficar aqui. - impôs o
Claudio.
Vagner sorriu ao escutar as queixas pelo
seu atraso, e se acomodou na cadeira onde se portaria como espectador passivo.
Luca trouxe à baila o romance de John
Steinbeck, citado por Marco Aurélio de Mello, no seu voto, mas logo
foi aparteado pelo Claudio:
-Eu pensei que um escritor não recebesse
o Nobel por um livro, mas estava enganado.
-Claudio, eu acredito que o prêmio é
dado pelo conjunto da obra e por determinado livro. Acredito que Gabriel Garcia
Márquez, por exemplo, não teria ganhado o Nobel se “Cem Anos de Solidão” fosse
o seu primeiro romance. - manifestei-me.
Meu irmão se reportou, em seguida, ao
programa de negociantes do “History Channel”, “Trato Feito”, em que apareceu um
camarada ofertando por 600 dólares o romance “O Velho e o Mar” com um autógrafo
do Ernest Hemingway. O negócio foi
sacramentado por 300 dólares, porque se tratava da 1ª edição e a assinatura,
controvertida. E o comprador ainda citou uma negociação que fizera com “Vinhas
da Ira”, de John Steinbeck, que, segundo ele, era de 1936.
Então, várias dúvidas pulularam como rãs
depois da chuva. Encarregaram a Gina de consultar o Google sobre os vencedores
do Prêmio Nobel da Literatura. Como Tolstoi, Marcel Proust, Carlos Drummond de
Andrade, Jorge Luís Borges, entre outros, não receberam essa láurea, demonstrei
pouco entusiasmado com essa busca no computador, ao contrário do Luca e do
Claudio, movidos pelo debate.
Gina trouxe até nós o seu notebook
e as dúvidas foram dirimidas:
-”Vinhas da Ira” é um livro de 1939, não
de 1936;
-Em 1936, o laureado pelo Nobel foi o
sogro de Charles Chaplin, Eugene O`Neil;
-John Steinbeck recebeu o Nobel em 1962
e “O Inverno de Nossas Desesperanças” é de 1961.
E o assunto passou a ser cinema, devido
ao trecho de uma carta da Rosa sobre o elenco de Johnny Guitar. E com debates
cinematográficos se encerrou mais uma sessão do Sabadoido.
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