O BISCOITO MOLHADO
Edição 4182 Data: 06 de
Maio de 2013
88ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-E aconteceu o que sua mãe tanto temia,
quando você partiu para Paris: o seu apetite voraz pelas mulheres e o seu fraco
pela bebida alcoólica.
-Meu pai muitas vezes chegou bêbado aos
seus domínios e foi ordenhar as vacas.
Ele era também atraído pelas mulheres, mas ficou bem mais contido porque
não estava em Paris.
-Você também herdou dele o amor pelas
artes.
-Havia semelhanças entre nós, mas, como
já disse, nós não nos harmonizávamos. Eu gostava mesmo era da minha mãe.
-Vivendo com os boêmios de Paris, você
inventou o “terremoto”.
Com um sorriso, ele disse em sua língua
o nome do coquetel que concebera:
-”Tremblement de Terre”.
-Em que consistia o ”Tremblement de
Terre”?
-Uma mistura de metade de absinto e
metade de conhaque, servido em copo de vinho batido com gelo em coqueteleira.
-Com o absinto tendo 70% de teor
alcoólico, imagino o estrago que isso fazia.
-Depois de um trago, você se sentia em
Lisboa em 1º de novembro de 1755, ou em Pompeia em 24 de agosto de 79.
Depois de rir, como se fosse uma
peraltice de criança, foi adiante:
-Falaram que a minha bengala era oca
para eu inserir bebida nela, mas muitas coisas foram faladas sobre mim.
-No Jardim de Père Foret, um oásis no
meio da agitação de Montmartre, você pintou uma série de óleos ao ar livre de
Carmen Gaudin.
-A minha musa ruiva.
-Ela era prostituta e modelo, e você a
retratou como lavadeira.
-”A Lavadeira” de 1888 é um dos meus
orgulhos de pintor.
-Nessa época, você estava muito ligado a
Degas.
-Éramos vizinhos; pintei a sua amante e
modelo Suzanne Valadon.
-Ela se tornaria sua amante também.
Não se importando com a minha
indiscrição, seguiu adiante.
-Retratei-a à mesa, frente a uma garrafa
e a um copo em “Gueule Bois” ( “Ressaca”).
-A expressão dela está perfeita.
-Eu conhecia os efeitos da ressaca como
poucos.
-Você desenhava como ninguém, produzia
cartazes litográficos, revolucionou o desenho gráfico e definiu o estilo que
seria chamado de Art Nouveau.
-Eu pretendia que a arte alcançasse um
público bem maior do que o que frequentava galerias e museus.
-E conseguiu sem que seu valor se
perdesse. - frisei.
-Então, em 1889, foi inaugurado o Moulin
Rouge e a sua atenção se desviou do Moulin da la Galette para lá. -
prossegui.
-O dono do Moulin Rouge me pediu um
poster para difundir a nova casa de entretenimento.
-E você criou o que poderia ser chamado
de o primeiro poster moderno.
-Bem, foram afixados vários posters do
Moulin Rouge em paredes, árvores, vidraças, mas as pessoas os arrancavam para
levar para casa como se fosse uma obra artística.
-E eram; você tirou a arte do seu
pedestal e a levou às pessoas comuns. As prensas, as reproduções mecânicas,
frutos da revolução industrial, se encarregavam de multiplicar o seu trabalho.
-Vejam a ironia da sorte: eu, um nobre
apequenado pelas exigências da aristocracia, popularizando o que estava
restrito aos mais ricos.
-O seu dom era reconhecido tanto pelos connoisseurs
como pela... digamos, escumalha.
-Pelos conhecedores e pelas classes mais
baixas, você quer dizer?
-Isso.
-Bem, a crítica não me atacava como fazia
com alguns colegas meus. Orgulho-me de ter participado do Salão dos
Independentes, em Paris, da exposição dos Vinte e das galerias de Boussod e
Valadin.
-O surgimento do Moulin Rouge sacudiu
Paris e, de certo modo, a sua vida.
-Lá, mais do que em qualquer lugar,
víamos os mais diversos tipos de pessoa; até o futuro rei da Inglaterra,
Eduardo VII, lá esteve.
-Mas o nobre que sentiu o cabaré Moulin
Rouge como o seu habitat natural foi você, Toulouse-Lautrec.
-Era a minha casa e eu considerava todos
ali meus parentes. As prostitutas eram minhas irmãs. É verdade que cometi
muitos incestos... - sorriu maliciosamente ao encerrar sua intervenção.
-Lá, você teve assento cativo e retratou
como ninguém a vida noturna parisiense.
-Pintei principalmente as cantoras e
dançarinas, que eram em maior número.
-Mostrou para a posteridade a comedida e
discreta dançarina Jane Avril, bem como Louise Weber. Esta, efusiva, sem
freios, porém cativante, que era conhecida como La Goulue (A Gulosa).
-Eu me dava muito bem com Louise Weber.
-Foi ela que criou o movimento mais
ousado do Cancan. - observei.
Fez-se uma pausa, e fui adiante:
-Muitos pintores, Degas, entre eles,
pintaram muitas prostitutas, mas ninguém chegou à sua excelência em captar o
verdadeiro espírito dessas moças.
-Eu as pintei com a naturalidade em que
elas viviam, não melancólicas, como muitos pintores a viram. Eu, afinal,
mergulhei na vida dos bordéis. Via no dia a dia, prostitutas, cafetinas,
fregueses.
-Um dos seus quadros mais conhecidos
retrata essas mulheres sentadas num largo divã onde há um lugar vazio.
-O lugar ficou vazio porque me levantei
para pintá-las. - disse com uma gargalhada.
-É isso que o observador logo pensa:
esse lugar no divã é do Toulouse-Lautrec, que se ausentou por alguns minutos.
-Contam que o marchand Maurice Julien,
sempre que o procurava em casa, era informado que você estava no bordel.
-Não entendo porque ele não se dirigia
direto para o bordel, quando queria me ver.
-Bem, Toulouse-Lautrec, a exaustão, a
sífilis e o alcoolismo desses dias loucos, folles journées,
apresentaram-lhe a conta.
-E eu tinha tanto o que fazer ainda...
Após esse lamento, prosseguiu:
-Eu delirava, sentia-me paralisado.
Internaram-me, então, numa clínica psiquiátrica para desintoxicação.
-Você já era popular; atingido como foi
pela doença, as suas obras foram mais requisitadas ainda.
-Escrevi para o meu pai lembrando-lhe o
que me dissera na minha juventude, que o confinamento mata.
-Ele também lhe disse que a vida
saudável era ao ar livre sob o sol.
Parecendo não se importar com minhas
palavras, Toulouse-Lautrec disse que, logo quando pôde saiu daquele lugar.
-Meu marchand Maurice Julien me propôs
uma ampla exposição da minha obra. Como aquilo me animou! Fiquei praticamente
cem dias no ateliê pintando febrilmente e colocando tudo em ordem; cataloguei
todas as minhas obras.
Como se sentisse que o fim estava
próximo. - pensei, mas nada disse.
-Sem bebidas e mulheres, minha atenção
se voltou exclusivamente para as telas de pintura.
-O seu último grande quadro, para
muitos, tem como tema um exame de medicina de Paris. Esse exame não é amistoso,
não é acadêmico, é, na verdade, um interrogatório.
-Passei por vários exames médicos, não
como estudante, mas como paciente; então, esses momentos sempre foram tensos
para mim, e os levei para essa pintura.
-Logo depois, o mal voltou e o atingiu
com toda força.
-Tive um derrame cerebral e morri nos
braços da minha mãe com trinta e seis anos.
-Foram poucos anos de vida, mas a sua
obra, para a nossa felicidade, foi profícua: mais de 1000 quadros, 5000
desenhos com 363 gravuras e cartazes.
-Se eu não vivesse parte da minha vida
nos bastidores do submundo, criaria tanto? - indagou com inflexão afirmativa.
-Toulouse-Lautrec, a sua cidade natal,
Albi, montou, no Palácio do Bispo, em 1922, um museu com as suas obras. A
partir de então, é um local de peregrinação de turistas e estudiosos.
-Não sei se ouviu as minhas palavras
sobre o reconhecimento que as gerações futuras também lhe dedicaram, pois
partiu enquanto eu falava.
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