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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4007 Data: 16
de agosto de 2012
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NOS BASTIDORES
DO PALÁCIO CAPANEMA
Subitamente, eu e Elio, que estávamos junto
aos voluntários da pátria que retornavam da Guerra do Paraguai, nos vimos em pleno Rio de Janeiro, em
1936, próximos de arquitetos. Como isso ocorreu? Dirão os leitores da nossa viagem
pelo tempo que a causa foi o ópio, mas, para que não imaginem que este
periódico enaltece qualquer tipo de droga, garantimos que não. Dirá o Dieckmann
que tudo foi provocado pelo pó de pirlimpimpim que choveu sobre nós. Que seja.
-Carlos, aquele cidadão, debruçado sobre
uma prancheta no meio da turma, é o Lúcio Costa e o Oscar Niemeyer também está
aqui..
-Veja, Elio, um senhor se aproxima
deles.
Em seguida, propus que os ladeássemos
com o objetivo de ouvi-los.
-O que o senhor acha do projeto, Le
Corbusier? - mostrou-se ansioso o Lúcio Costa.
-O edifício do Ministério da Educação e
Saúde tem de destoar da merda do Agache com aquele estilo eclético horripilante
dos prédios dos outros ministérios. - esbravejou.
-Carlos, o Le Corbusier é rival do
arquiteto francês Alfred Agache, que responde pelo plano urbanístico da nossa
cidade, incluindo a Esplanada dos Ministérios. - murmurou-me o Elio.
-Olha, Elio, ele faz modificações no
projeto.
-O ministro é vaidoso e quer um palácio
nos trópicos, o Palácio Capanema. – enfatizou Lúcio Costa.
Olhamos no relógio e constatamos que o
tempo voara, já estávamos em 1945, nos estertores do Estado Novo.
O Palácio tinha sido inaugurado;
ostentava toda a fachada de vidro com persianas brise-soleil projetadas por Le
Corbusier de tal maneira que vedava o sol acompanhando o seu movimento.
-Carlos, o Palácio Capanema é o embrião
das obras que serão criadas por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer daqui a dez anos,
em Brasília.
-Muitos acadêmicos consideram isto aqui
uma aberração. - frisei.
-Estive, por aqui, poucos anos antes de
nós iniciarmos esta série de viagens pelo tempo e constatei que a decadência se
instalou com elevadores interditados, pisos com rachadura e infiltrações.
Soube, depois, que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) envida esforços para reformar esse prédio de tantas histórias. – disse
o Elio.
-Já que estamos aqui, em 1945, vamos
tirar proveito e testemunhar algumas dessas histórias. - animei-o.
Vimos, então, o ministro Gustavo
Capanema, ao telefone, solicitando de um marchand
estadunidense quadros de Van Gogh e Picasso para pôr no seu gabinete.
-Não conseguirá; não há verba para isso.
- cochichou o Elio.
Em seguida, o ministro ligou para
Cândido Portinari e contratou uma obra, com motivo marinho, para ficar sobre os
pilotis do edifício. O artista brasileiro pintou, então, um painel de 33 metros quadrados
com inúmeros peixes enquadrados em losangos.
-Elio, você vê o que eu vejo?
-Os peixes têm a cara do ministro
Gustavo Capanema.
-O Carlos Lacerda dizia que o ministro
tinha uma testa de dois andares, os peixes também.
-O Portinari caricaturou o Gustavo Capanema.
- deduziu o Elio.
O ministro teve o mesmo pensamento, pois
mandou que encaixotassem tudo aquilo e, em seguida, pediu que o pintor
apresentasse outra obra com motivo marinho.
Eu e Elio nos encontrávamos no térreo do
edifício, quando vimos um grupo de mulheres à espera dos elevadores.
-Elio, vamos nos juntar a elas, pois
nada temos a perder e tudo a ganhar.
-Talvez haja uma costureira entre elas. -
assanhou-se.
A mulherada saltou no segundo andar onde
trabalhava o chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema.
-Elio, é o Carlos Drummond de Andrade. –
exultei de admiração.
-E ele fala de poesia para elas. - disse
um Elio não menos extasiado.
-Carlos, recite um dos seus poemas para
nós. – solicitou uma das suas admiradoras.
O poeta se escusou, alegando que era mau
declamador, mas as moças retrucaram com o argumento que Manuel Bandeira sim,
declamava mal, mas ainda assim as atendia. Dando-se por vencido, o poeta
recitou “Poema de Sete Faces”.
Nesse momento, Lúcio Costa passou e,
pela sua expressão fechada, via-se que aquela chacrinha o desagradava. Ele, na
verdade, se sentia incomodado com aquele fluxo de admiradoras porque a sua sala
ficava ao lado; mudou, então, de sala.
Não passou muito tempo e a sala do chefe
de gabinete do ministro também foi transferida, situava-se, agora, no oitavo
andar. Junto à porta de entrada dessa sala encontrava-se a biblioteca e a
responsável por ela era a funcionária Lygia Fernandes.
-Carlos, as mulheres que agora sobem ao
oitavo andar para ouvir as poesias de Drummond não conseguem o seu objetivo.
-A responsável pela biblioteca sempre
diz, para elas, que o senhor chefe gabinete está em reunião com o ministro.
-Carlos, agora eu me lembro, Lygia
Fernandes foi a outra na vida dele por mais de trinta anos, até ele morrer.
Não era só essa história do Palácio
Capanema que atraía a nossa atenção.
Um dos mais elogiados escultores do
Brasil, Celso Antônio, contribuiu com a estátua “Maternidade” para a arte do
Palácio Capanema. No alto da escada que conduz ao primeiro andar, lá estava ela
para ser apreciada.
-O que você acha, Carlos?
-Gostei, mas Lúcio Costa, que passou
perto de mim, pelo rosto crispado, parece que tem outra opinião.
-Talvez seja uma dor de cabeça apenas. –
especulou o meu companheiro de viagem pelo tempo.
E um dia as pessoas que chegavam ao
Palácio Capanema deram pela falta da estátua.
-Onde está a “Maternidade”? –
perguntavam sofregamente.
Mistério profundo.
Meses se passaram, e nada. Jorge Amado,
lá de Moscou, até pensou em escrever um livro que intitularia “O Sumiço da
Estátua”, mas terminaria, anos depois, redigindo “O Sumiço da Santa”.
Um funcionário chegou, meses depois, ao
trabalho anunciando que vira a “Maternidade” numa praça pública.
Era a estátua, de fato, de Celso
Antônio. Lúcio Costa, chefe de
arquitetura do Departamento do Patrimônio Histórico, confessou o “crime”.
-Aquilo me desagradava profundamente. Eu
não aguentava mais me deparar com essa estátua todos os dias. Eu a doei, então,
para a prefeitura. – revelou.
-Pelo jeito, a “Maternidade” não volta
mais para cá. – previu o Elio muito acertadamente.
Enquanto isso, no telefone, o ministro
Gustavo Capanema, que não conseguira quadros de Van Gogh e Picasso, cobrava os
quadros que pedira ao Museu Nacional de Belas Artes. Dias depois, chegaram
“Oficinas”, de Pancetti, e “As Gêmeas” de Guignard.
-São duas belas obras. – disse o Elio,
quando as viu.
-O ministro não vai devolver esses
quadros ao Museu Nacional de Belas Artes. – apostei.
-Vamos ao oitavo andar ouvir as poesias
do Drummond. - propôs o Elio.
Fomos, mas ele estava namorando.[†]
[*] O redator do seu O BISCOITO MOLHADO foi alertado para
a falta de lógica de dois viajantes poderem surpreender o poeta e a namorada em
outro dia que não o da visita. Elegantemente, aquiesceu, porém devolveu e
manteu, considerando que a emoção do encontro com o poeta deu-lhe a devida
licença. Acredita o Distribuidor que tanta poesia o faria também resguardar o
poeta, caso a Dona Lygia não houvesse chegado antes.
Claro que não
existe manteu, mas se ele pode, o Dieckmann também pode.
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