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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

2742 - Bêbados


           

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4992                                    Data: 24  de  novembro de 2014

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139ª VISITA À MINHA CASA

 

-Sou mais lembrado como uma pessoa que se entregou mais à bebida do que à música. - foram as primeiras palavras de Mussorgsky quando chegou à minha casa.

-Nada disso, mesmo as crianças, desde 1940, ouviram a sua música.

-Se os adultos não a entenderam, imagino as crianças.

-No filme Fantasia, do Walt Disney, a sua obra “Uma Noite no Monte Calvo” é tocada.  Ela é arrepiante, a ambientação exigia isso, mas, em seguida, sem pausa, entra a “Ave Maria”, de Schubert e a petizada sente que valeu a pena ouvir uma música contrastando com a outra, a plateia adulta também.

-Eu tive obras de muito mais fôlego do que esta que feriram os ouvidos. Minhas criações ficaram conhecidas por versões revisadas de outros compositores.

-Recentemente, Mussorgsky, as suas partituras originais estão disponíveis, e os seus trabalhos são executados na sua forma original.

-Morri novo, com 42 anos de idade, mas mesmo que tivesse vivido 100 anos, não veria as minhas músicas chegando às plateias na sua forma original, sem ser... como direi?...

-Pasteurizadas. - completei.

E segui adiante.

-Na sua obra-prima, a ópera “Boris Godunov”, você utilizou o ritmo da fala dos mujiques e não as melodias líricas que enlevam o público ouvinte. As suas harmonias são muito expressivas, é incontestável, mas foram consideradas excêntricas. Estanharam também coros e personagens populares com papéis importantes.

-Comecei a compor “Boris Godunov” com 29 anos de idade.

-Com o transcorrer do tempo, ela se tornou um marco da música russa. - assinalei.

-Que polêmica causou! A versão original, de 1870, foi recusada. Tive de fazer alterações para que ela fosse encenada, Rimsky-Korsakov me ajudou na revisão.

-E conseguiu estreá-la?

-Em 1873, no Teatro Maryinsky, mas o estranhamento continuou, não com a intensidade de 3 anos atrás.

-”Boris Gudonov” foi baseado num poema de Pushkin. Os artistas russos veneravam Pushkin e você Mussorgsky, dessa vez, não fugiu à regra.

-Dostoievsky vestiu luto quando ele morreu num duelo.- lembrou.

-Tchaikovsky, cuja música era mais ocidental, se detinha muito pouco nas raízes do seu país, mas respeitava sobremaneira Pushkin, a ponto de estrear a sua melhor ópera, para mim, “Eugen Onegin”, num conservatório com alunos, porque julgava a música dele aquém dos versos de Pushkin.

-Eu era um ano mais velho do que Tchaikovsky. Ele não era do meu grupo...

-O Grupo dos Cinco. - interrompi.

-Se tive desentendimentos com os componentes do Grupo dos Cinco, imagine com Tchaikovsky, cuja música era oposta à minha.

-Tchaikovsky, numa carta à sua mecenas, Nadezhda von Meck, disse que o seu talento talvez fosse superior ao de todos os membros do Grupo dos Cinco. Um elogio, Mussorgsky, pois eles eram ótimos compositores.

-Balakirev, Borodin, César Cui, Rimsky Korsakov, e eu.

-Prosseguindo na sua carta, ele escreveu que você acreditava cegamente nas teorias ridículas do seu círculo e na própria genialidade. Tchaikovsky disse para ela que você tinha lampejos de talento, mas que era desprovido de originalidade.

-Você pulou os trechos mais ásperos dessa carta.

Era melhor mudar de assunto.

-Mussorgsky, você se dedicou à arte musical desde cedo?

-Aos seis anos de idade, eu recebia aulas de piano da minha mãe.

-Porém, muito jovem, tornou-se cadete no Regimento Preobrazhensky da Guarda Imperial? - intervim.

-Voltando às aulas, aprendi com rapidez. Eu tinha 9 anos, quando toquei um concerto do irlandês que veio para a Rússia, John Field; eu executava também pecas de Liszt para meus parentes e amigos. Com 10 anos, eu e meu irmão fomos levados a São Petersburgo, onde estudaríamos no Colégio São Pedro. Lá, prossegui com a música e, aos 12 anos, compus uma peça para o piano. Como a tradição da minha família era o serviço militar, entrei para a Escola de catete com 13 anos de idade.

-E foi lá, no Regimento Preobrazhensky, que conheceu Balakirev, que lhe ensinou técnica musical?

-Sim, convivi muito com ele. Assisti, em 1859,  a uma ópera de Glinka e fiquei assombrado. Visitei Moscou e passei a amar todas as coisas russas.

-Ainda assim, Mussorgsky, você se inclinou pelos modelos musicais estrangeiros.

-Eu tinha 21 anos, ainda não era impulsionado pelo nacionalismo. Trabalhei na ópera “Édipo em Atenas', dos 19 aos 22 anos de idade, mas a deixei incompleta. Não me sentia bem nessa composição, havia acentuada influência de Balakirev e de estrangeirismos. Eu estava indo pelo caminho errado.

-Nesse período, 1861, precisamente, deu-se a emancipação dos servos, e, com isso, o padrão de vida da sua família caiu.

-Vi-me obrigado a retornar a Karevo, minha terra natal, intentando evitar meu empobrecimento iminente.

-Afastando-se de Balakirev, você se tornou, praticamente, um autodidata?

-Paulatinamente, sim. Trabalhei na ópera “Salambô”, do livro de Flaubert, mas perdi o interesse e a abandonei.

-O alcoolismo passou a fazer parte da sua vida?

-A morte da minha mãe me aniquilou.

-Ela faleceu em 1865, e, dois anos depois, você compôs “Uma Noite no Monte Calvo de que já falamos.

-Balakirev se recusou a regê-la. Mais tarde, chamou-me de idiota. Não guardo saudade alguma daquele “Grupo dos Cinco”.

-No ano seguinte, você mergulhou na elaboração da sua obra magna, a ópera Boris Godunov?

-Para meus desafetos, que eram muitos, eu mergulhei mesmo foi na bebida.

-Mussorgsky,  quem canta no registro de baixo só se torna legendário depois de enfrentar o papel de  Boris Godunov, assim foi com Fiódor Shaliapin, Bóris Cristoff, Cesare Siepi, entre outros.

-É um alento. -limitou-se a dizer.

-”Khovanshchina” é uma ópera composta bem depois?

-Sim; entre 1872 e 1881.

-Mesmo os seus admiradores disseram que a qualidade da sua música decaía, mas ”Khovanshchina” ainda era uma obra inspirada.

-Há nela motivos líricos que foram bem aceitos.

-Apesar dessa suposta decadência, a sua suíte “Quadro de uma Exposição” consta, até hoje, no repertório de todas as orquestras sinfônicas do mundo.

-Como, se compus para piano?

-Ravel, um dos maiores mestres da orquestração de todos os tempos, fez um arranjo para a orquestra e essa sua obra é tão tocada quanto as de Tchaikovsky.

Riu com a comparação.

-O grande escritor russo Ivan Turgenev   conta que o viu tocando no piano as suas peças e que ficou impressionado com o seu nariz vermelho.

-Como a minha cara de bêbado?... Eu me entreguei inteiramente ao vício da bebida. A dispsomania tomou conta de mim.

-Em 1880, você foi demitido do seu posto no serviço governamental?

-E no ano seguinte, internaram-me por causa das minhas carraspanas.

-Dizem que era o seu aniversário, você deu um dinheirinho ao enfermeiro para comprar umas garrafas de vodca, para comemorar e acabou morrendo.

-O meu aniversário foi uma semana antes da minha morte, não fiquei sete dias bebendo. O pessoal exagera. - comentou sorrindo.

Com um adeus, Mussorgky partiu.

 

 

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