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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4992 Data: 24 de novembro de 2014
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139ª VISITA À MINHA CASA
-Sou mais lembrado como uma pessoa que
se entregou mais à bebida do que à música. - foram as primeiras palavras de
Mussorgsky quando chegou à minha casa.
-Nada disso, mesmo as crianças, desde
1940, ouviram a sua música.
-Se os adultos não a entenderam, imagino
as crianças.
-No filme Fantasia, do Walt Disney, a
sua obra “Uma Noite no Monte Calvo” é tocada.
Ela é arrepiante, a ambientação exigia isso, mas, em seguida, sem pausa,
entra a “Ave Maria”, de Schubert e a petizada sente que valeu a pena ouvir uma
música contrastando com a outra, a plateia adulta também.
-Eu tive obras de muito mais fôlego do
que esta que feriram os ouvidos. Minhas criações ficaram conhecidas por versões
revisadas de outros compositores.
-Recentemente, Mussorgsky, as suas
partituras originais estão disponíveis, e os seus trabalhos são executados na
sua forma original.
-Morri novo, com 42 anos de idade, mas
mesmo que tivesse vivido 100 anos, não veria as minhas músicas chegando às
plateias na sua forma original, sem ser... como direi?...
-Pasteurizadas. - completei.
E segui adiante.
-Na sua obra-prima, a ópera “Boris
Godunov”, você utilizou o ritmo da fala dos mujiques e não as melodias líricas
que enlevam o público ouvinte. As suas harmonias são muito expressivas, é
incontestável, mas foram consideradas excêntricas. Estanharam também coros e
personagens populares com papéis importantes.
-Comecei a compor “Boris Godunov” com 29
anos de idade.
-Com o transcorrer do tempo, ela se
tornou um marco da música russa. - assinalei.
-Que polêmica causou! A versão original,
de 1870, foi recusada. Tive de fazer alterações para que ela fosse encenada,
Rimsky-Korsakov me ajudou na revisão.
-E conseguiu estreá-la?
-Em 1873, no Teatro Maryinsky, mas o
estranhamento continuou, não com a intensidade de 3 anos atrás.
-”Boris Gudonov” foi baseado num poema
de Pushkin. Os artistas russos veneravam Pushkin e você Mussorgsky, dessa vez,
não fugiu à regra.
-Dostoievsky vestiu luto quando ele
morreu num duelo.- lembrou.
-Tchaikovsky, cuja música era mais
ocidental, se detinha muito pouco nas raízes do seu país, mas respeitava
sobremaneira Pushkin, a ponto de estrear a sua melhor ópera, para mim, “Eugen
Onegin”, num conservatório com alunos, porque julgava a música dele aquém dos
versos de Pushkin.
-Eu era um ano mais velho do que
Tchaikovsky. Ele não era do meu grupo...
-O Grupo dos Cinco. - interrompi.
-Se tive desentendimentos com os
componentes do Grupo dos Cinco, imagine com Tchaikovsky, cuja música era oposta
à minha.
-Tchaikovsky, numa carta à sua mecenas,
Nadezhda von Meck, disse que o seu talento talvez fosse superior ao de todos os
membros do Grupo dos Cinco. Um elogio, Mussorgsky, pois eles eram ótimos compositores.
-Balakirev, Borodin, César Cui, Rimsky
Korsakov, e eu.
-Prosseguindo na sua carta, ele escreveu
que você acreditava cegamente nas teorias ridículas do seu círculo e na própria
genialidade. Tchaikovsky disse para ela que você tinha lampejos de talento, mas
que era desprovido de originalidade.
-Você pulou os trechos mais ásperos
dessa carta.
Era melhor mudar de assunto.
-Mussorgsky, você se dedicou à arte
musical desde cedo?
-Aos seis anos de idade, eu recebia
aulas de piano da minha mãe.
-Porém, muito jovem, tornou-se cadete no
Regimento Preobrazhensky da Guarda Imperial? - intervim.
-Voltando às aulas, aprendi com rapidez.
Eu tinha 9 anos, quando toquei um concerto do irlandês que veio para a Rússia,
John Field; eu executava também pecas de Liszt para meus parentes e amigos. Com
10 anos, eu e meu irmão fomos levados a São Petersburgo, onde estudaríamos no
Colégio São Pedro. Lá, prossegui com a música e, aos 12 anos, compus uma peça
para o piano. Como a tradição da minha família era o serviço militar, entrei
para a Escola de catete com 13 anos de idade.
-E foi lá, no Regimento Preobrazhensky,
que conheceu Balakirev, que lhe ensinou técnica musical?
-Sim, convivi muito com ele. Assisti, em
1859, a uma ópera de Glinka e fiquei
assombrado. Visitei Moscou e passei a amar todas as coisas russas.
-Ainda assim, Mussorgsky, você se
inclinou pelos modelos musicais estrangeiros.
-Eu tinha 21 anos, ainda não era
impulsionado pelo nacionalismo. Trabalhei na ópera “Édipo em Atenas', dos 19
aos 22 anos de idade, mas a deixei incompleta. Não me sentia bem nessa
composição, havia acentuada influência de Balakirev e de estrangeirismos. Eu
estava indo pelo caminho errado.
-Nesse período, 1861, precisamente,
deu-se a emancipação dos servos, e, com isso, o padrão de vida da sua família
caiu.
-Vi-me obrigado a retornar a Karevo,
minha terra natal, intentando evitar meu empobrecimento iminente.
-Afastando-se de Balakirev, você se
tornou, praticamente, um autodidata?
-Paulatinamente, sim. Trabalhei na ópera
“Salambô”, do livro de Flaubert, mas perdi o interesse e a abandonei.
-O alcoolismo passou a fazer parte da
sua vida?
-A morte da minha mãe me aniquilou.
-Ela faleceu em 1865, e, dois anos
depois, você compôs “Uma Noite no Monte Calvo de que já falamos.
-Balakirev se recusou a regê-la. Mais
tarde, chamou-me de idiota. Não guardo saudade alguma daquele “Grupo dos
Cinco”.
-No ano seguinte, você mergulhou na
elaboração da sua obra magna, a ópera Boris Godunov?
-Para meus desafetos, que eram muitos,
eu mergulhei mesmo foi na bebida.
-Mussorgsky, quem canta no registro de baixo só se torna
legendário depois de enfrentar o papel de
Boris Godunov, assim foi com Fiódor Shaliapin, Bóris Cristoff, Cesare
Siepi, entre outros.
-É um alento. -limitou-se a dizer.
-”Khovanshchina” é uma ópera composta
bem depois?
-Sim; entre 1872 e 1881.
-Mesmo os seus admiradores disseram que
a qualidade da sua música decaía, mas ”Khovanshchina” ainda era uma obra
inspirada.
-Há nela motivos líricos que foram bem
aceitos.
-Apesar dessa suposta decadência, a sua
suíte “Quadro de uma Exposição” consta, até hoje, no repertório de todas as
orquestras sinfônicas do mundo.
-Como, se compus para piano?
-Ravel, um dos maiores mestres da
orquestração de todos os tempos, fez um arranjo para a orquestra e essa sua
obra é tão tocada quanto as de Tchaikovsky.
Riu com a comparação.
-O grande escritor russo Ivan
Turgenev conta que o viu tocando no
piano as suas peças e que ficou impressionado com o seu nariz vermelho.
-Como a minha cara de bêbado?... Eu me
entreguei inteiramente ao vício da bebida. A dispsomania tomou conta de mim.
-Em 1880, você foi demitido do seu posto
no serviço governamental?
-E no ano seguinte, internaram-me por
causa das minhas carraspanas.
-Dizem que era o seu aniversário, você
deu um dinheirinho ao enfermeiro para comprar umas garrafas de vodca, para
comemorar e acabou morrendo.
-O meu aniversário foi uma semana antes
da minha morte, não fiquei sete dias bebendo. O pessoal exagera. - comentou
sorrindo.
Com um adeus, Mussorgky partiu.
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