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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4981 Data: 06 de novembro de 2014
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ORLANDO SILVA E FRANK SINATRA NO RÁDIO MEMÓRIA
PARTE III
-Voltamos com o Orlando Silva, que vai
cantar do meu saudoso amigo Paulo Tapajós, cantor, compositor, “Quero Beijar-te
as Mãos”, arranjo de Lyrio Panicali.
Logo depois de observada a solicitação
do Jonas Vieira, o DNA canoro do Sérgio Fortes aflorou:
-Esta música é de cantor, é de quem
sabe cantar, uma raça hoje em extinção no país, no planeta. A última frase é de
quem sabe respirar, sustentar a nota, parar no momento certo.
-É de quem sabe o que está fazendo. -
corroborou o Jonas.
-É alta criatividade.
Jonas Vieira retomou a palavra:
-É o que eu digo sobre o Orlando Silva;
não teve estudo, é tudo dele, a maneira de cantar... Para mim, Orlando Silva é
uma teofania.
Todos os leitores deste periódico sabem
o que significa teofania, mas não custa repetir: teofania é um conceito de
cunho teológico que quer dizer que Deus se manifesta em qualquer lugar, coisa
ou pessoa.
A palavra de novo com o Jonas Vieira:
-Quando você descobre Orlando Silva,
repito, é como se descobrisse Beethoven, com a ressalva que um é clássico e o
outro, popular. Você descobre que existe um ser altamente poderoso que criou
tudo, que é responsável por tudo. Tudo está na raiz da inteligência que move o
mundo.
Sérgio Fortes entrou também nas
especulações teológicas:
-Eu costumo relacionar a música com a
existência de Deus. Se pararmos para pensar, nada conduz que extraordinários
artistas tivessem todo aquele brilho. Meu pai mencionava algumas figuras
mitológicas, na área da ópera, pessoas que, na vida civil, eram obscuras; no
entanto, pisavam o palco, o maestro dava o sinal para a orquestra, e eles
encarnavam Deus.
-É fantástico! Pixinguinha, por
exemplo, Radamés Gnattali... Para mim, é uma teofania.
Sérgio Fortes ouviu e fez um adendo:
-O Radamés ainda teve estudo, tocou no
Teatro Municipal o concerto nº1 para piano e orquestra do Tchaikovsky. Agora,
há pessoas impressionantes. Há um episódio com um tenor extraordinário, que meu
pai, com 15 anos de idade, teve a má ideia de lhe pedir um autógrafo e esperou
no camarim por uma hora e quinze minutos, tempo que ele levou para assinar o
nome.
Ouvíamos e logo nos ocorreu uma frase
de Nietzsche:
-”Sem a música, a vida seria um erro”.
Depois
da reflexão dos dois apresentadores do Rádio Memória, veio a Pausa para
Meditação com a crônica do Fernando Milfont, “O Poeta e Suas Idiossincrasias”.
Quando retornou o Jonas Vieira, ele
pediu para fazer um registro: a entrada do Ferreira Gullar na Academia
Brasileira de Letras.
-Temos de convidá-lo a tornar aqui.
-Eu já convidei, Sérgio, ele aceitou.
Virá próximo da posse.
Depois dos reclames de praxe dos
programas da emissora, disse em tom desafiador:
-Sérgio, o Sinatra vai cantar ou não?
Após a gravação do “Quero Beijar-te as
Mãos”, Jonas Vieira não via ninguém à frente do seu ídolo.
-Frank Sinatra vai cantar “Blue Moon”,
de Richard Rodgers e Lorenz Hart.
Depois da inspirada introdução da
orquestra de Nelson Riddle, reinou a voz do artista ítalo-americano.
-A gravação original de “Blue Moon” foi
de Billy Eckstine. Foi um sucesso enorme. Ele também foi um grande cantor; da
época dos grandes cantores.
Depois deste comentário, Jonas Vieira
se ateve à atualidade brasileira, criticando, com pertinência, governantes e
governados, que marcam passo ou marcham,
como o José do poema de Carlos Drummond de Andrade, sem saber para onde.
-Este país só avança com o fim do voto
obrigatório. Aqui, ainda se discute se baixa ou não a maioridade penal. A
violência está demais; prende-se o indivíduo e ele sai pior para matar,
assaltar e se drogar. Outra coisa: liberem as drogas. Este modelo que cá está
não resolve. Se quer fumar maconha, fume; se quer beber cachaça, que beba. Deve
haver, sim, uma campanha educativa. Ficam os traficantes cheios de dinheiro,
comprando armamentos pesados...
A amplitude de oscilação do diapasão
diminuiu quando Jonas Vieira falou de si próprio:
-Eu nunca cheirei, vou logo avisando.
-Nem Chanel nº 5?
-Chanel nº 5 sim, Sérgio.
Com Sérgio rindo, ele passou de novo
para o Cantor das Multidões:
-Voltemos ao doutor Orlando Silva. A
gravação é de 1945, na transição do Orlando Silva da fase tenorina para a
abaritonada. Criação do grande
compositor cearense Lauro Maia, “Quando dois Destinos Divergem”.
-Ele morreu muito cedo. - comentou o
Sérgio tão logo soou a última nota da triste canção.
-Naquela
época, era muito comum morrer-se de tuberculose; Noel Rosa, Jorge Faraj...
Nesse instante, ele interrompeu uma
listagem que, talvez, chegasse aos grandes poetas brasileiros: Castro Alves,
Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu.
-Grande Jorge Faraj!... poetaço, autor
de “A Deusa da Minha Rua”.
Voltou ao Lauro Maia, e memorou o que
dissera sobre ele uns quatro domingos atrás, inclusive que ele apresentara Luiz
Gonzaga a Humberto Teixeira, primo dele.
-E o nosso Frank Sinatra?
-Jonas, o nosso Frank Sinatra... Mais
Cole Porter?... então, vamos de “You Do Something with Me”.
-Posso cantar, Sérgio?
-Antes de Sinatra?... É melhor depois.
O responsável pelo programa acatou a
sugestão, dizendo:
-Se eu cantar, é capaz de o Sinatra se
levantar do túmulo.
As harmonizações que vinham da
orquestração deixaram o Jonas – para usar um adjetivo da sua predileção –
acachapado.
-Esta orquestra é do Billy May.
Parece...
-O meu registro diz Nelson Riddle o
autor do arranjo.
-Deve ser, Sérgio, o arranjo do Nelson
Riddle e a orquestra do Billy May. Eles
trabalharam juntos, mas o Nelson veio antes.
-Cole Porter é outro fenômeno, outra
coisa extraterrestre, Jonas.
-Juntar Cole Porter, Orlando Silva,
Pixinguinha... Essa gente, nós tivemos o privilégio de viver a mesma época.
-Devem estar promovendo grandes saraus
no céu...
-Para Deus ouvir. - completou as
palavras do Sérgio Fortes.
Hora da próxima música.
-Orlando Silva retorna com o grande
Lupicínio Rodrigues. Essa música é inspirada numa briga do Orlando Silva com a
Zezé Fonseca. O casal rompeu depois que houve muita música entre eles.
Lupicínio Rodrigues mostra exatamente isso em “Brasa”.
Empolgado,
Jonas Vieira se pôs a cantarolar o samba.
-Vou cantar para a Bete. - prometeu o
seu parceiro.
Jonas Vieira bisou “Brasa”, embora
ninguém tivesse pedido.
-E o Sinatra? - cobrou.
-It All Depends On You.”, de Silva
Brown e Handerson.
-Os compositores são do segundo time. -
desdenhou o Jonas Veira com os risos do Sérgio Fortes ao fundo.
-Aproximavam-se as nove badaladas e
Jonas Vieira tentou se apressar, mas a dupla de compositores o deteve um pouco.
-Ataulfo Alves e Mário Lago. Que
dupla!... Vamos encerrar carnavalescamente . “Atire a Primeira Pedra”, com
Orlando Silva no carnaval de 1944.
Atirada a primeira pedra, a dupla de
apresentadores do Rádio Memória atirou outras pedras e, com toda razão, no
carnaval baiano de hoje.
-Como o carnaval era riquíssimo!
-Acabou o carnaval.
-Nem Jó suportaria o que se ouve hoje.
Hoje, o carnaval de rua é um trem
elétrico com uma multidão pipocando e se acotovelando. Eles não disseram isto,
porque, como no final de “Os Maias”, de Eça de Queirós, o bonde passava para
Carlos Eduardo e João Egas.
-Vamos pegar o bonde, Sérgio.
-Eu peguei muito o 14, que passava pelo
Santo Inácio.
-Senhores ouvintes, um demorado abraço.
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