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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

2735 - velhas traições


           

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4985                                 Data: 15  de  novembro de 2014

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O BISCOITO MOLHADO HÁ 51 ANOS

 

Em dia de grandes jogos, sempre aparecia um rádio de pilha e umas dez pessoas em volta dele na Rua Americana. Nessa noite, jogavam Botafogo e Santos, decidindo a Taça Brasil de 1963, em melhor de 3. O Brasil havia sido campeão do mundo, no ano anterior, com cinco jogadores do Botafogo na seleção titular. Mas os onze jogadores do  Santos formavam uma seleção invencível, ainda mais com o Pelé em campo. No meio de tantos craques, se instalaram na minha mente, dessa partida, os tiros de canhões que saíram dos pés do Pepe, pelo Santos, e do Quarentinha, pelo Botafogo, nas batidas de falta.

Final da partida, 4 a 2 para o time do Pepe.

Eu era o único botafoguense da turma de ouvintes, Mosquito não estava lá para dividir comigo a carga dos gozadores. Mosquito, todos sabiam, mas só sussurravam, era maconheiro. A maconha era um tabu. Um dia, o Róbson, conhecido por quase todo o bairro, passou pela Rua Americana, em plena luz do dia, fumando maconha. Foi um escândalo naquele tempo de Invernada de Olaria, que era temida até por crianças que teriam, no máximo, nas suas folhas corridas, furto de bolas de gude. Mosquito, de que todos gostavam, nós víamos compondo sambas, torcendo pelo Botafogo, mas ninguém o viu com uma maconha entre os dedos.

No dia seguinte à derrota do Botafogo, Seu Dilmar, com o seu inseparável charuto, morador da última casa da nossa vila da Rua São Gabriel, apesar de torcedor do Fluminense não encarnou em mim. Estava mais preocupado com o Austin, fabricado na década de 50, do Seu Antônio da casa 22. Talvez, em pagamento das aulas de direção que recebia do Seu Dilmar, deixava o carro com ele, ou tudo era por amizade, o mais provável.

-Carlinhos, chame o Claudio e o Lopo; vamos dar uma volta por aí no carro no carro do Antônio.

-Seu Dilmar, eles não vão largar as pipas que estão soltando agora.

E fomos nós dois.

-Era você que assoviava, ontem, de manhã?... Seu pai disse que era.

-Eu sei que assovio mal pra cacete. Se eu soubesse assoviar bem, diminuiria a minha frustração de não tocar violino, piano...

-Na sua idade, você tem de tocar outra coisa.

Não foram bem estas palavras, mas aqui vão elas, pois eu não conseguiria reproduzi-las no papel com o jeito paternal do Seu Dilmar mesmo quando falava palavrões.

Uma viagem de carro com ele era para mim, garoto de 15 anos de idade, uma diversão. Vislumbrou um transeunte sem uma das orelhas, diminuiu a aceleração do Austin, ladeou-o por alguns metros e gritou: “Esqueceu a orelha em casa”. Depois, dirigiu até a fila de umas 10 pessoas à espera do lotação para a Penha, deu meia parada e outro grito: “Carona para a Penha, quem vai?” Sempre parava num boteco onde pedia guaraná e empadas, sendo que uma delas, certa vez com meus irmãos presentes, se esfarelou na minha mão, quando a premi com os dedos e ele me comprou outra.

Na segunda partida decisiva entre Botafogo e Santos, havia um rádio elétrico com um longo fio, na nossa vila, sintonizado na locução do Oduvaldo Cozzi. Não me juntei, então, à turma da Americana. Entre mim, Seu Antônio, Guaraci, Seu Dilmar estava o Tarzan, que torcia fanaticamente pelo Botafogo, morador da casa nº 15.  Ele não recebeu esse codinome porque era musculoso como o chefe da torcida organizada da década de 60 do Botafogo e sim, pela sua magreza de pobre da Biafra.

Tarzan e Seu Dilmar nutriam um pelo outro uma antipatia não revelada verbalmente. Dias atrás, Tarzan dissera que tinha de ir, sem falta, ao zoológico para ver o animal que comia 15 galinhas por dia; candidamente, perguntei qual era: “O galo”. - respondeu. Havia plateia, que me fizesse sentir constrangido? Não me recordo. O gozador gargalhou? Não me recordo também. Só lembro os músculos do rosto do Seu Dilmar que se franziram, como se a vítima da piada fosse ele.

Nesse segundo jogo, Amarildo se sobressaiu. Era o Possesso que o Nélson Rodrigues previu, na Copa do Mundo do Chile, mesmo parecendo mais louco do que profeta, pois Amarildo era o reserva do Pelé quando a profecia foi escrita nas páginas do Globo.

Final da partida, 3 a 1 para o time do Amarildo. Tarzan foi à loucura. Diante de tanta alegria, senti-me até meio tolhido em exibir o meu contentamento.

-Este é o Botafogo que venceu todas as partidas do Santos, com Pelé, em 1962, e depois ganhou a Copa do Mundo para o Brasil. - gritava como se quisesse monopolizar  a alegria botafoguense.

Três ou quatro dias depois, veio o que se chamava de negra (não sei se ainda chamam). Botafogo e Santos decidiriam quem ficaria com o troféu da Taça Brasil. Na nossa vila, o cenário anterior se repetiu: o mesmo rádio elétrico com um longo fio, a locução do Oduvaldo Cozzi e os mesmos interessados naquela peleja de 90 minutos.

-Dilmar, vamos apostar seis garrafas de cerveja. -  desafiou-o o Tarzan.

Seu Dilmar soltou uma baforada do charuto; gostava de corridas de cavalo e de jogo do bicho, não ficava uma semana sem fazer a sua fezinha, aceitou prontamente a aposta.

Como o Pelé jogou nessa noite! Era o mesmo Pelé que meses atrás enlouquecera o fortíssimo esquadrão do Benfica, de Euzébio, em plena Lisboa, levando o Santos a ganhar de 5 a 2 e se tornar o Campeão Mundial Interclubes de 1962. Para esburacar ainda mais a defesa do time do Botafogo, o técnico tirou o Nilton Santos, que já sentia o peso dos 37 anos de idade, da zaga, onde jogava na sobra e o escalou na lateral esquerda, posição em que foi insuperável quando mais jovem.

Veio o primeiro gol do Santos, o segundo... Tarzan murchava enquanto o Seu Dilmar soltava mais baforadas do Suerdieck do que o de costume.

Então, Zé Carlos, o beque central do Botafogo, um dos poucos em campo que não era craque, recebe uma bola e cisma de driblar o Pelé; pagou pela ousadia: outro gol do Santos, do Pelé. Decepcionado, Tarzan não esperou o apito do juiz, pagou a aposta e se recolheu em casa.

5 a 0. Não tínhamos time para perder de 5, o Benfica também não, mas perdemos. Seu Dilmar, sempre previdente, já tinha gelado as cervejas na geladeira. Trouxe não só as garrafas como os copos, e pediu que chamássemos o pessoal da Rua Americana, pois havia cerveja para todos.

Naquela noite, traí o Botafogo, bebi como um santista,

 

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