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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4985 Data: 15 de novembro de 2014
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O BISCOITO MOLHADO HÁ 51 ANOS
Em dia de grandes jogos, sempre
aparecia um rádio de pilha e umas dez pessoas em volta dele na Rua Americana.
Nessa noite, jogavam Botafogo e Santos, decidindo a Taça Brasil de 1963, em
melhor de 3. O Brasil havia sido campeão do mundo, no ano anterior, com cinco
jogadores do Botafogo na seleção titular. Mas os onze jogadores do Santos formavam uma seleção invencível, ainda
mais com o Pelé em campo. No meio de tantos craques, se instalaram na minha
mente, dessa partida, os tiros de canhões que saíram dos pés do Pepe, pelo
Santos, e do Quarentinha, pelo Botafogo, nas batidas de falta.
Final da partida, 4 a 2 para o time do
Pepe.
Eu era o único botafoguense da turma de
ouvintes, Mosquito não estava lá para dividir comigo a carga dos gozadores.
Mosquito, todos sabiam, mas só sussurravam, era maconheiro. A maconha era um
tabu. Um dia, o Róbson, conhecido por quase todo o bairro, passou pela Rua
Americana, em plena luz do dia, fumando maconha. Foi um escândalo naquele tempo
de Invernada de Olaria, que era temida até por crianças que teriam, no máximo,
nas suas folhas corridas, furto de bolas de gude. Mosquito, de que todos
gostavam, nós víamos compondo sambas, torcendo pelo Botafogo, mas ninguém o viu
com uma maconha entre os dedos.
No dia seguinte à derrota do Botafogo,
Seu Dilmar, com o seu inseparável charuto, morador da última casa da nossa vila
da Rua São Gabriel, apesar de torcedor do Fluminense não encarnou em mim.
Estava mais preocupado com o Austin, fabricado na década de 50, do Seu Antônio
da casa 22. Talvez, em pagamento das aulas de direção que recebia do Seu
Dilmar, deixava o carro com ele, ou tudo era por amizade, o mais provável.
-Carlinhos, chame o Claudio e o Lopo;
vamos dar uma volta por aí no carro no carro do Antônio.
-Seu Dilmar, eles não vão largar as
pipas que estão soltando agora.
E fomos nós dois.
-Era você que assoviava, ontem, de
manhã?... Seu pai disse que era.
-Eu sei que assovio mal pra cacete. Se
eu soubesse assoviar bem, diminuiria a minha frustração de não tocar violino,
piano...
-Na sua idade, você tem de tocar outra
coisa.
Não foram bem estas palavras, mas aqui
vão elas, pois eu não conseguiria reproduzi-las no papel com o jeito paternal
do Seu Dilmar mesmo quando falava palavrões.
Uma viagem de carro com ele era para
mim, garoto de 15 anos de idade, uma diversão. Vislumbrou um transeunte sem uma
das orelhas, diminuiu a aceleração do Austin, ladeou-o por alguns metros e
gritou: “Esqueceu a orelha em casa”. Depois, dirigiu até a fila de umas 10
pessoas à espera do lotação para a Penha, deu meia parada e outro grito:
“Carona para a Penha, quem vai?” Sempre parava num boteco onde pedia guaraná e
empadas, sendo que uma delas, certa vez com meus irmãos presentes, se esfarelou
na minha mão, quando a premi com os dedos e ele me comprou outra.
Na segunda partida decisiva entre
Botafogo e Santos, havia um rádio elétrico com um longo fio, na nossa vila,
sintonizado na locução do Oduvaldo Cozzi. Não me juntei, então, à turma da
Americana. Entre mim, Seu Antônio, Guaraci, Seu Dilmar estava o Tarzan, que
torcia fanaticamente pelo Botafogo, morador da casa nº 15. Ele não recebeu esse codinome porque era musculoso
como o chefe da torcida organizada da década de 60 do Botafogo e sim, pela sua
magreza de pobre da Biafra.
Tarzan e Seu Dilmar nutriam um pelo
outro uma antipatia não revelada verbalmente. Dias atrás, Tarzan dissera que
tinha de ir, sem falta, ao zoológico para ver o animal que comia 15 galinhas
por dia; candidamente, perguntei qual era: “O galo”. - respondeu. Havia
plateia, que me fizesse sentir constrangido? Não me recordo. O gozador
gargalhou? Não me recordo também. Só lembro os músculos do rosto do Seu Dilmar
que se franziram, como se a vítima da piada fosse ele.
Nesse segundo jogo, Amarildo se
sobressaiu. Era o Possesso que o Nélson Rodrigues previu, na Copa do Mundo do
Chile, mesmo parecendo mais louco do que profeta, pois Amarildo era o reserva
do Pelé quando a profecia foi escrita nas páginas do Globo.
Final da partida, 3 a 1 para o time do
Amarildo. Tarzan foi à loucura. Diante de tanta alegria, senti-me até meio
tolhido em exibir o meu contentamento.
-Este é o Botafogo que venceu todas as
partidas do Santos, com Pelé, em 1962, e depois ganhou a Copa do Mundo para o
Brasil. - gritava como se quisesse monopolizar
a alegria botafoguense.
Três ou quatro dias depois, veio o que
se chamava de negra (não sei se ainda chamam). Botafogo e Santos decidiriam
quem ficaria com o troféu da Taça Brasil. Na nossa vila, o cenário anterior se
repetiu: o mesmo rádio elétrico com um longo fio, a locução do Oduvaldo Cozzi e
os mesmos interessados naquela peleja de 90 minutos.
-Dilmar, vamos apostar seis garrafas de
cerveja. - desafiou-o o Tarzan.
Seu Dilmar soltou uma baforada do
charuto; gostava de corridas de cavalo e de jogo do bicho, não ficava uma
semana sem fazer a sua fezinha, aceitou prontamente a aposta.
Como o Pelé jogou nessa noite! Era o
mesmo Pelé que meses atrás enlouquecera o fortíssimo esquadrão do Benfica, de
Euzébio, em plena Lisboa, levando o Santos a ganhar de 5 a 2 e se tornar o
Campeão Mundial Interclubes de 1962. Para esburacar ainda mais a defesa do time
do Botafogo, o técnico tirou o Nilton Santos, que já sentia o peso dos 37 anos
de idade, da zaga, onde jogava na sobra e o escalou na lateral esquerda,
posição em que foi insuperável quando mais jovem.
Veio o primeiro gol do Santos, o
segundo... Tarzan murchava enquanto o Seu Dilmar soltava mais baforadas do
Suerdieck do que o de costume.
Então, Zé Carlos, o beque central do
Botafogo, um dos poucos em campo que não era craque, recebe uma bola e cisma de
driblar o Pelé; pagou pela ousadia: outro gol do Santos, do Pelé. Decepcionado,
Tarzan não esperou o apito do juiz, pagou a aposta e se recolheu em casa.
5 a 0. Não tínhamos time para perder de
5, o Benfica também não, mas perdemos. Seu Dilmar, sempre previdente, já tinha
gelado as cervejas na geladeira. Trouxe não só as garrafas como os copos, e
pediu que chamássemos o pessoal da Rua Americana, pois havia cerveja para
todos.
Naquela noite, traí o Botafogo, bebi
como um santista,
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