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terça-feira, 4 de novembro de 2014

2728 - as filhas de Deus


           

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4978                                 Data: 03 de  novembro de 2014

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O VAGNER NO SABADOIDO

 

-Vagner, eu morava ainda na Rua Cachambi, quando ouvi falar de você?

-Você saiu de lá quando, Carlinhos?

-Em meados de 1961, nós nos mudamos para a Rua São Gabriel, onde ficamos até 1965, quando viemos para a Chaves Pinheiro.

-E eu já era conhecido por você... Sempre fui famoso. - brincou.

-Eu saltava pipa do telhado da fábrica EMPER, de peças de rádio, tinha uns 11 anos de idade, quando a minha pipa se embolou com outra, e as duas foram engrossar o cemitério das pipas nos fios da Light. Disseram-me, então, que um tal de Vagner soltava a outra pipa.

-Vagner, o tal... Carlinhos. - corrigiu-me.

-Certo,

-O Reinaldo dizia que você, o Claudio e o Lopo eram conhecidos, aqui, como “Os três garotinhos”. - disse-me ele.

-Os Três Mosqueteiros começaram como nós. - não perdeu o Claudio a piada.

-Não me lembro de vocês vindo até aqui, na Chaves Pinheiro, quando eram “ Os  três garotinhos”.

  -Mas viemos, Vagner.

Fui mais minucioso do que meu irmão.

-Certa vez, por causa de uma pendenga que envolvia pipas, o Claudio foi até a Chaves Pinheiro dar um cacete no Tonico espanhol. Uma turma da Cachambi, em que eu estava, o acompanhava. Frente a frente com o Tonico, houve discussão entre os dois, o Claudio desferiu um soco, mas acertou o olho de um colega nosso.

-Foi fogo amigo. - disse meu irmão, enquanto o Vagner ria.

-Naquele tempo, o Claudio era galo de briga, engalfinhava-se na escola quase todos os dias, levando a mamãe à loucura.

-O Tonico era fanático por pipa, mas não era de nada na briga.

-O grande representante da Espanha, nas lutas de rua, era o Zé Espanhol. - lembrou o Vagner.

-Convivi com o pessoal da Rua Estevão Silva, nos últimos quatro anos do campo Cachambi, e o Zé Espanhol era muito respeitado por lá pela valentia. Um El Cid Campeador. - finalizei rindo com a própria piada.

-Ele deu porrada no Henrique. - interveio meu irmão.

-Que Henrique?!... - puxou o Vagner pela memória.

-O goleiro do time do Seu Armando, da Estevão Silva.

-Lembro agora, Claudiomiro.

Tomei a palavra:

-Era uma luta desigual; o Henrique era meio-pesado e o Zé Espanhol, peso pluma. Ele me contou que a coisa estava feia, que levava desvantagem, até que conseguiu acertar um soco no supercílio do Henrique de onde jorrou um manancial de sangue, o combate foi encerrado naquele momento.

-O Zé era maluco, pedia ao Toninho da Dona Anacleta para soltar o cachorro e se atracava com ele. - ocorreu ao Vagner esse fato bizarro.

-Não conheço trabalhador como o Zé Espanhol. Como aqueles portugueses o exploraram! - falou, agora, com seriedade meu irmão.

-Mas ele se tornou dono de padaria em São Cristóvão, Claudiomiro.

-Era o mínimo que ele merecia. - foi a resposta do meu irmão.

-Você continuou com as pipas lá na Rua São Gabriel, Carlinhos?...

-Eu parei logo, não fui fanático como o Reinaldo, o Tonico... mas ele voltou para a Espanha ainda cedo.

Meu irmão respondeu por mim.

-O Carlinhos, lá em casa, foi o precursor; foi o primeiro a soltar pipa, o primeiro a fumar e o primeiro a tomar porre. O Lopo nunca quis saber de cigarros nem de carraspanas, embora não largue até hoje uma latinha de cerveja. O Carlinhos era fogo de palha, largava logo os vícios, eu não.

Vagner me olhou marotamente, e o Claudio concluiu:

-Carlinhos foi a minha má influência.

-Eu sou um ano e sete meses mais velho do que o Claudio, nada mais viável que eu desbravasse os maus caminhos. Depois, eu caía em mim, e saía fora, não no caso das pipas, que abandonei por outras razões.

-Abandonou por causa dos livros; era cu de ferro. - “acusou-me” meu irmão.

-Quando eu entrei no Visconde de Cairu, descobri que gostava de estudar. O ensino truncado do Manoel Bomfim, com ausência constante das professoras, da minha turma, pelo menos, não me entusiasmou muito.  

-Só me interessei pelos estudos muitos anos depois. Eu tinha muita energia para ficar sentado por mais de meia hora numa sala de aula.

-Eu te compreendo, Claudiomiro; eu te compreendo. - interveio o Vagner com um sorriso maroto.

-Vagner, você me emprestou grandes livros.

-A minha biblioteca não era das piores, Carlinhos.

-Vou tentar listar alguns desses livros seus que eu li.

-Se precisar de ajuda, estou pronto. - disse ele.

-”História Da Minha Vida”, do Charles Chaplin; Trotsky: O Profeta Armado, Trotsky: O Profeta Desarmado...

-Qual era o nome do autor?  - interrompeu-me.

-Isaac Deutscher; ele escreveu uma trilogia, mas não li o terceiro da série: Trotsky: O Profeta Banido.

-Carlinhos, no sebão, só havia esses dois livros  à venda. - explicou-me.

-Nessa época, o Carlinhos era esquerdista.

-Durou bem menos tempo do que meu vício pelo cigarro.- observei e segui adiante:

-”A Puta Respeitosa”, do Sartre; “Sacco e Vanzetti”... não recordo o nome do autor.

-Não houve um filme sobre eles?

-Houve. - respondeu outra vez por mim o Claudio.

-Eu assisti a ele no Cine Paratodos, no Méier. - manifestei-me.

-Eu tive, depois, de me desfazer dos meus livros. Veio, então, um representante de um sebão que queria comprar por peso, pagando centavos por quilo. Não fiz negócio e preferi dar os livros para os amigos.

-Jogar no lixo é crime. - declarei.

-Não me lembro de ter emprestado discos ao Carlinhos.

-Ele só ouvia óperas e música clássica. - interveio o Claudio.

-De certa maneira sim, mas o Reinaldo me trouxe, quando veio de Brasília, “Cais”, do Mílton Nascimento, que eu lhe pedira por carta.

-Pudera! O acompanhamento do “Cais” mais parece música erudita. - comentou meu irmão.

-Mas Vagner, estamos falando em pioneirismo, mas você, bem antes de o Émerson Fittipaldi levar todo o mundo a se interessar pelo automobilismo, já falava dos grandes pilotos. - intervim.

-Você dizia que o Luiz Pereira Bueno era melhor que o Émerson.

-E era, Claudiomiro; Luizinho Pereira Bueno já tinha muita experiência com os carros de corrida quando o Émerson apareceu.

 -Ele não teve tanta sorte quanto o Émerson. - disse-lhe eu para evitar polêmicas.

-Dirigir carros era o que eu mais gostava na vida.

-E as mulheres, Vagner?

-As mulheres, Claudiomiro, são um caso à parte. - manifestou-se com a expressão maliciosa.

Vagner era como o pai dos Irmãos Karamazov, que não dispensava nenhuma, dizendo que todas eram filhas de Deus.

Vagner tinha estilo. Grande Vagner.

 

    

 

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