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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4978 Data: 03 de novembro de
2014
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O VAGNER NO SABADOIDO
-Vagner, eu morava ainda na Rua
Cachambi, quando ouvi falar de você?
-Você saiu de lá quando, Carlinhos?
-Em meados de 1961, nós nos mudamos para
a Rua São Gabriel, onde ficamos até 1965, quando viemos para a Chaves Pinheiro.
-E eu já era conhecido por você...
Sempre fui famoso. - brincou.
-Eu saltava pipa do telhado da fábrica EMPER,
de peças de rádio, tinha uns 11 anos de idade, quando a minha pipa se embolou
com outra, e as duas foram engrossar o cemitério das pipas nos fios da Light.
Disseram-me, então, que um tal de Vagner soltava a outra pipa.
-Vagner, o tal... Carlinhos. -
corrigiu-me.
-Certo,
-O Reinaldo dizia que você, o Claudio e
o Lopo eram conhecidos, aqui, como “Os três garotinhos”. - disse-me ele.
-Os Três Mosqueteiros começaram como nós.
- não perdeu o Claudio a piada.
-Não me lembro de vocês vindo até aqui,
na Chaves Pinheiro, quando eram “ Os
três garotinhos”.
-Mas viemos, Vagner.
Fui mais minucioso do que meu irmão.
-Certa vez, por causa de uma pendenga
que envolvia pipas, o Claudio foi até a Chaves Pinheiro dar um cacete no Tonico
espanhol. Uma turma da Cachambi, em que eu estava, o acompanhava. Frente a
frente com o Tonico, houve discussão entre os dois, o Claudio desferiu um soco,
mas acertou o olho de um colega nosso.
-Foi fogo amigo. - disse meu irmão,
enquanto o Vagner ria.
-Naquele tempo, o Claudio era galo de
briga, engalfinhava-se na escola quase todos os dias, levando a mamãe à
loucura.
-O Tonico era fanático por pipa, mas não
era de nada na briga.
-O grande representante da Espanha, nas
lutas de rua, era o Zé Espanhol. - lembrou o Vagner.
-Convivi com o pessoal da Rua Estevão
Silva, nos últimos quatro anos do campo Cachambi, e o Zé Espanhol era muito
respeitado por lá pela valentia. Um El Cid Campeador. - finalizei rindo com a
própria piada.
-Ele deu porrada no Henrique. -
interveio meu irmão.
-Que Henrique?!... - puxou o Vagner pela
memória.
-O goleiro do time do Seu Armando, da Estevão
Silva.
-Lembro agora, Claudiomiro.
Tomei a palavra:
-Era uma luta desigual; o Henrique era
meio-pesado e o Zé Espanhol, peso pluma. Ele me contou que a coisa estava feia,
que levava desvantagem, até que conseguiu acertar um soco no supercílio do
Henrique de onde jorrou um manancial de sangue, o combate foi encerrado naquele
momento.
-O Zé era maluco, pedia ao Toninho da
Dona Anacleta para soltar o cachorro e se atracava com ele. - ocorreu ao Vagner
esse fato bizarro.
-Não conheço trabalhador como o Zé
Espanhol. Como aqueles portugueses o exploraram! - falou, agora, com seriedade
meu irmão.
-Mas ele se tornou dono de padaria em
São Cristóvão, Claudiomiro.
-Era o mínimo que ele merecia. - foi a
resposta do meu irmão.
-Você continuou com as pipas lá na Rua
São Gabriel, Carlinhos?...
-Eu parei logo, não fui fanático como o
Reinaldo, o Tonico... mas ele voltou para a Espanha ainda cedo.
Meu irmão respondeu por mim.
-O Carlinhos, lá em casa, foi o
precursor; foi o primeiro a soltar pipa, o primeiro a fumar e o primeiro a tomar
porre. O Lopo nunca quis saber de cigarros nem de carraspanas, embora não
largue até hoje uma latinha de cerveja. O Carlinhos era fogo de palha, largava
logo os vícios, eu não.
Vagner me olhou marotamente, e o Claudio
concluiu:
-Carlinhos foi a minha má influência.
-Eu sou um ano e sete meses mais velho
do que o Claudio, nada mais viável que eu desbravasse os maus caminhos. Depois,
eu caía em mim, e saía fora, não no caso das pipas, que abandonei por outras
razões.
-Abandonou por causa dos livros; era cu
de ferro. - “acusou-me” meu irmão.
-Quando eu entrei no Visconde de Cairu,
descobri que gostava de estudar. O ensino truncado do Manoel Bomfim, com
ausência constante das professoras, da minha turma, pelo menos, não me
entusiasmou muito.
-Só me interessei pelos estudos muitos
anos depois. Eu tinha muita energia para ficar sentado por mais de meia hora
numa sala de aula.
-Eu te compreendo, Claudiomiro; eu te
compreendo. - interveio o Vagner com um sorriso maroto.
-Vagner, você me emprestou grandes livros.
-A minha biblioteca não era das piores,
Carlinhos.
-Vou tentar listar alguns desses livros
seus que eu li.
-Se precisar de ajuda, estou pronto. -
disse ele.
-”História Da Minha Vida”, do Charles
Chaplin; Trotsky: O Profeta Armado, Trotsky: O Profeta Desarmado...
-Qual era o nome do autor? - interrompeu-me.
-Isaac Deutscher; ele escreveu uma
trilogia, mas não li o terceiro da série: Trotsky: O Profeta Banido.
-Carlinhos, no sebão, só havia esses
dois livros à venda. - explicou-me.
-Nessa época, o Carlinhos era
esquerdista.
-Durou bem menos tempo do que meu vício
pelo cigarro.- observei e segui adiante:
-”A Puta Respeitosa”, do Sartre; “Sacco
e Vanzetti”... não recordo o nome do autor.
-Não houve um filme sobre eles?
-Houve. - respondeu outra vez por mim o
Claudio.
-Eu assisti a ele no Cine Paratodos, no
Méier. - manifestei-me.
-Eu tive, depois, de me desfazer dos
meus livros. Veio, então, um representante de um sebão que queria comprar por
peso, pagando centavos por quilo. Não fiz negócio e preferi dar os livros para
os amigos.
-Jogar no lixo é crime. - declarei.
-Não me lembro de ter emprestado discos
ao Carlinhos.
-Ele só ouvia óperas e música clássica. -
interveio o Claudio.
-De certa maneira sim, mas o Reinaldo me
trouxe, quando veio de Brasília, “Cais”, do Mílton Nascimento, que eu lhe
pedira por carta.
-Pudera! O acompanhamento do “Cais” mais
parece música erudita. - comentou meu irmão.
-Mas Vagner, estamos falando em
pioneirismo, mas você, bem antes de o Émerson Fittipaldi levar todo o mundo a
se interessar pelo automobilismo, já falava dos grandes pilotos. - intervim.
-Você dizia que o Luiz Pereira Bueno era
melhor que o Émerson.
-E era, Claudiomiro; Luizinho Pereira
Bueno já tinha muita experiência com os carros de corrida quando o Émerson
apareceu.
-Ele não teve tanta sorte quanto o Émerson. -
disse-lhe eu para evitar polêmicas.
-Dirigir carros era o que eu mais
gostava na vida.
-E as mulheres, Vagner?
-As mulheres, Claudiomiro, são um caso à
parte. - manifestou-se com a expressão maliciosa.
Vagner era como o pai dos Irmãos Karamazov,
que não dispensava nenhuma, dizendo que todas eram filhas de Deus.
Vagner tinha estilo. Grande Vagner.
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