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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4977 Data: 31 de outubro de
2014
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SABADOIDO SEM BRIGA
POLÍTICA
PARTE II
-Do que vocês estavam falando? -
expressou o Claudio curiosidade, quando trouxe os copos de bebida.
-Dos dentes podres da Josefina
Bonaparte, porque, desde criança, na Martinica, ela consumia muito açúcar.
-O açúcar é ótimo para apodrecer os dentes.
- limitou-se a dizer.
-Há um programa no Canal Escola chamado
“Deu a Louca na História”, inspirado no Monty Python. Num desses programas, um
sujeito maluco encontra o esqueleto de um saxão do século XI, por aí, e diz que
a dentição dele era perfeita, apareceu, então, uma placa na telinha da TV
dizendo que era verdade, porque o consumo de açúcar do povo saxão era mínimo,
só através das frutas, creio. - manifestei-me.
-Prefiro encarar a broca de um dentista
a ficar sem uma coisa açucarada como uma caipirinha.
-Sei não, Claudiomiro. - mostrou-se o
Luca dubitativo e prosseguiu:
-Quando me chamaram para participar da
luta contra a ditadura militar, eu avisei logo: se me torturarem, eu entrego
todo o mundo, pois não suporto a dor.
Meu irmão ria, e eu lhe disse que o Luca
ultrapassou heroicamente barreiras que derrubam a maioria das pessoas. Com esse
assunto, ocorreu ao Claudio um filme que ele vira nos anos 70.
-No “Maratona da Morte”, Laurence
Olivier era um dentista, criminoso de guerra nazista que tortura o Dustin
Hoffman com aquele motor para tratamento de canal...
-Sem anestesia?!... - colocou-se o Luca
no lugar do torturado com a expressão de horror.
-Uma colega minha, que esteve em
Portugal, ficou abismada com o número absurdo de portugueses de dentes
estragados.
-Os dentistas de lá fizeram a maior
guerra contra os dentistas brasileiros que foram trabalhar lá?! - lembrou meu
irmão esse fato que ocupou as páginas dos jornais nos idos da década de 90,
quando esses profissionais fugiam da nossa hiperinflação.
-Lá, em Portugal, antes de se praticar a
odontologia, tem-se de se formar em medicina, por isso, o tratamento é mais
caro para os habitantes de lá, por isso, eles rechaçaram os nossos dentistas.
-Por isso, eles têm os dentes podres, -
completou o Luca as minhas palavras.
-O doutor Elói, do Manoel Bomfim, sofreu
comigo. - ocorreu ao Claudio o dentista do colégio onde cursamos o primário.
-Claudiomiro, nada mais justo, você se
vingou depois de sofrer na cadeira dele. - comentou o Luca com um sorriso.
-O motor dos dentistas, naquela época,
mais parecia um furador de paredes.
-Não lembra, Claudiomiro. - rogou o
Luca.
-Quando o doutor Elói perguntou, ao
preencher a ficha do Claudio, o nome do nosso pai, ele respondeu, Amaury,
goleiro do Botafogo, quase matando de vergonha a mamãe.
-O Botafogo não tinha um goleiro com
esse nome, quando o do Fluminense era o Castilho?
-Isso, Luca, mas quem se tornou titular,
campeão carioca de 1957, foi o Adalberto, um negão forte; depois dele, veio o
Ernâni, que agarrara no Bangu.
-Carlinhos é lembrudo. - exaltou-me o
Luca.
-Conheço mais os jogadores de tempos
pretéritos do que os de hoje.
-Vocês tinham tratamento dentário no
colégio interno da rua Ernâni Cardoso em Jacarepaguá? - indagou o Claudio.
-O Itamar, aquele beque truculento do
Flamengo que saltou com os dois pés no peito do Ladeira, quando ele corria do
Almir, na decisão do carioca de 1966... O Itamar que estudou com a gente,
quando menino, no internato...
E arrematou com a piada:
-Ele extraía os nossos dentes a
chuteiradas nas peladas do colégio.
-Escolas do curso fundamental com
dentistas, hoje, é impensável. - retornou a seriedade àquela sessão do
Sabadoido com a observação do Claudio.
-Havia médicos também no Visconde de
Cairu da década de 60. Certa vez, senti dores abdominais, e meus colegas de
classe me conduziram para o consultório do médico; ele não se encontrava no
colégio. Para ser sincero, nunca vi médicos no meu curso ginasial. Os médicos de lá eram como as bruxas do Dom
Quixote: “Yo no creo, pero que las hay, las hay.”
-Já não vou ao dentista há um bom tempo.
- manifestou-se o Luca.
-Acomodado, já fazia dois anos que eu
fugia da doutora Flávia, que me catava para a limpeza dos tártaros. Eis que,
menos de um mês atrás, caiu-me um inciso, um pivô...
-Carlinhos parecia a senadora Heloísa
Helena. - gozou-me meu irmão.
-Meu tratamento é feito às segundas-feiras
no cair da tarde. Voltando da Torre NorteShopping para casa, nessa última
segunda-feira, o taxista disse para mim que os obreiros, nas cercanias da sede
da Igreja Universal, vendem, em quiosques e barracas, “água milagrosa” para os
fiéis, e o faturamento vai para o bispo Edir Macedo.
Meu irmão tomou a palavra.
-Ali, na Rua Capitão Sampaio, perto do
posto de gasolina, há um galpão com garrafões dessa “água milagrosa” do chão
até o teto.
-Eles exploram a ignorância do povo. -
frisou o Luca.
-Se o Crivella entrar como governador do
Rio de Janeiro, os evangélicos não largam mais o poder do nosso estado. Nada
mais lucrativo do que explorar a ignorância do povão.
Fiz a observação acima, mas tentei logo
de evitar que a nossa conversação descambasse para a política.
-Tem ouvido os programas do Rádio
Memória sobre o Orlando Silva, Luca?
-Carlinhos, depois, vocês dizem que eu
sou chiquista fanático, mas eu nunca disse que o Chico Buarque é o maior
compositor popular brasileiro. Coloco o Tom Jobim acima dele. O Jonas Vieira,
sim, não vê ninguém superior ao Orlando Silva. (*)
-O papai ouvia muito o Orlando Silva.
-Meu pai também, Claudiomiro. Depois da
Bossa Nova, todo o mundo se meteu a cantar as próprias composições e a época
áurea das grandes vozes recebeu um forte impacto, os cantores antigos, então...
- parou o Luca nas reticências.
-Você Falou no Chico Buarque, meu pai,
sem fanatismos, pois cultivava mais as óperas, considerava o Noel Rosa o maior
compositor popular brasileiro. Além do talento inacreditável do Noel, havia o
fator afetivo, pois ele, seis anos mais novo do que o Noel, viu-o algumas
vezes, pois morou também, por um tempo, na Vila Isabel. Um belo dia, meu pai me
disse que, pelas músicas que o Chico Buarque vinha compondo, não restava dúvida
que ele era o novo Noel Rosa. Bem entendido: só os comparou no terreno musical.
-Os copos estão vazios, vou enchê-los. -
ergueu-se, resoluto, da sua cadeira, o Claudio.
(*) Orlando
Silva... Respeito os admiradores, mas logo depois do Homem-Calendário, eu mudo
de estação.
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