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domingo, 27 de julho de 2014

2659 - A cachaça do Cartola 2



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4908                       Data:  22 de  julho de 2014
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133ª VISITA À MINHA CASA
CARTOLA - 2ª PARTE

-1932 foi um bom ano para você, além desses sucessos, a Mangueira seria campeã do desfile de escolas de samba promovido pelo jornal “O Mundo Esportivo”.
-Era o jornal do Mário Filho, surgiu dele a iniciativa de concursos de escola de samba. - assinalou.
-É verdade que você se afastou, por um tempo, dos artistas estelares e do universo discográfico?
-Resolvi me dedicar mais à minha escola de samba.
-A Mangueira, ainda assim, ganhava o carnaval de 1935, com um samba seu, do Carlos Cachaça e do Zé da Zilda, “Não Quero Mais”.
-A Araci de Almeida gravou no ano seguinte, e, em 1973, Paulinho da Viola regravou, o título foi mudado para “Não Quero Mais Amar A Ninguém”.
-Villa-Lobos, o grande compositor da música clássica, que sabia reconhecer os talentos produzidos nos estratos populares, o admirava muito.
-Em 1940, ele me convidou para me juntar a um grupo de sambistas formado por Donga, João da Baiana, Pixinguinha, entre outros, porque o maestro americano, Leopold Stokowski, pretendia realizar gravações da música popular brasileira.
-Leopoldo Stokowski era mundialmente conhecido, nesse ano, foi lançado “Fantasia”, de Walt Disney, sob a sua regência.
E acrescentei a pergunta:
-Como foi isso?
-Ele percorria a América Latina recolhendo músicas nativas. Fomos a bordo do navio Uruguai, ancorado no pier da Praça Mauá, onde ele estava, levados pelo Villa Lobos, e fizemos algumas gravações em quatro discos em 78 rotações por minuto pela Colúmbia. “Quem Me Vê Sorrindo”, meu e do Carlos Cachaça foi um desses discos.
E concluiu:
-Foi lançado comercialmente apenas nos Estados Unidos.
-Uma raridade! - exclamei.
E prosseguiu, incentivado pela nostalgia:
-Foi registrada em gravação o coro da Mangueira com as vozes das minhas irmãs e da Dona Neuma. Havia um álbum com a flauta do Pixinguinha e mais as participações do Donga e do João da Baiana, as emboladas do Jararaca e Ratinho, o clarinete do Luiz Americano. E o Villa Lobos ainda fez um arranjo para um tema indígena.
Leopold Stokowski teve, assim, ideia da qualidade da música popular brasileira. - afirmei.
-Certamente.
-Você já havia voltado ao circuito artístico, deixando de se restringir apenas à Mangueira?
-Sim, cantei até músicas minhas e de outros autores no rádio. Fiz, em seguida, um programa na Rádio Cruzeiro do Sul, com o Paulo da Portela, “A Voz do Morro”.
-E você continuou ligado a Paulo da Portela?
-Formei com ele, depois, mais o Heitor dos Prazeres, o Conjunto Carioca, e nos apresentamos na Rádio Cosmos, em São Paulo.
-Isso em 1941?
-Por aí, em 1942, meu samba com Alcebíades Barcellos “Não Posso Viver Sem Ela” era o lado B do disco “Ai Que Saudades da Amélia”, do Ataulfo Alves e Mário Lago.
-E o tempo das vacas magras e esqueléticas do sonho do faraó chegou a você de novo?
-Começou o mau presságio com a nova direção da escola de samba, que não simpatizava comigo. A minha saúde se foi; contraí meningite, estive três dias em estado de coma, durante um ano andei de muleta.
-A Deolinda cuidava de você?
-Sempre ela, porém, um ataque cardíaco a levou. Saí do morro da Mangueira, mudei-me para Nilópolis.
-Você desapareceu, imaginavam que tivesse morrido.
-Fui viver com uma companheira numa favela do Caju, mas ainda afastado do mundo musical.
-Você voltou a viver largado como nos dias que antecederam à chegada da Deolinda?
-Eu estava entregue às baratas, sem dentes, bêbado, pegando um servicinho aqui e ali para não morrer de fome. Para culminar, ainda contraí uma doença no nariz, rinofina.
E prossegui com a mão no nariz:
-Ele inchou, tornou-se bulboso... mais um motivo para aniquilar a minha autoestima.
-Foi quando você conheceu Eusébia Silva do Nascimento, a Zica?
-Sempre precisei de uma mulher, de um anjo salvador para ressuscitar.
-Ela, que já conhecia as sua músicas, se apaixonou.
-Levou-me de volta para o morro da Mangueira, onde nos instalamos e, de novo, me tornei vizinho do Carlos Cachaça.
-Mas você estava fora do universo discográfico, ainda não tinha sido redescoberto. Parecia que você não reconhecia mais o seu próprio valor acomodando-se a uma vida que não era para você.
-É verdade. Em 1957, eu trabalhava como vigia e lavador de carros de um edifício em Ipanema.
-Foi quando Sérgio Porto o viu como lavador de carros?
-Ele me viu todo esculhambado, vestido num macacão úmido de água e sabão.
-Procuro imaginar o espanto dele. “O músico que teve o talento reconhecido por Villa Lobos neste estado!”
-Sérgio Porto agiu mais do que falou; ou agiu falando, não sei bem o que dizer de tanto que ele me ajudou.
-Ele o fez retomar a sua carreira de artista popular.
-Promoveu-me o que pôde como jornalista influente que era. Matérias sobre mim apareceram em jornais e revistas. Os mais antigos souberam que eu ainda vivia. Vieram, então, convite para eu me apresentar na Rádio Mayrink Veiga e em casas noturnas.
-Você superou a depressão e foi em frente.
-De maneira nenhuma eu decepcionaria o Sérgio Porto. Ele conseguiu também um emprego de contínuo para mim no Diário Carioca e, no ano seguinte, 1958, no Ministério da Indústria e Comércio.
-E a sua criatividade entrou, de novo, em erupção?
-Nesse ano, meu samba “Grande Deus” foi gravado por Jamelão, e “Festa da Penha”, por Ari Cordovil. Depois, Nuno Veloso gravaria “Vale do São Francisco”, samba meu e do Carlos Cachaça.
-E como surgiu o Zicartola?
-Eu me reunia, num velho sobrado no Centro, com muitos sambistas. Nas rodas de samba, a Zica deixava todos salivando com as comidas que fazia. Fomos, então, incentivados a unir música e comida. Era um projeto ambicioso, mas empreendedores que gostavam da Mangueira, entraram com o dinheiro e surgiu o Zicartola na Rua da Carioca.
-Isso foi quando?
-No início da década de 60.
-O Zicartola se tornou um templo do samba. - vibrei.
-Bem, lá se reuniam os sambistas das favelas com os músicos da classe média, esses, mais ligados à bossa-nova, que surgiu poucos anos antes. Apareciam por lá o jornalista Sérgio Cabral, o Hermínio Bello de Carvalho, o Nélson Cavaquinho, o Zé Kéti, e muitos outros, sem esquecer os talentosos que despontavam como o Paulinho da Viola e o Élton Medeiros.
Animado pela lembrança, ainda citou Elizeth Cardoso e Nara Leão, a musa da bossa-nova, como frequentadoras do Zicartola.
-Lá, você foi mesmo desafiado pelo empresário do Zicartola, Renato Agostini, a compor um samba em 30 minutos?
-É verdade, e compus, com o Élton Medeiros, “O Sol Nascerá”.
-Outro clássico da música popular brasileira, “Alvorada”, também surgiu no Zicartola?
-”Alvorada” eu compus com o Carlos Cachaça mais o Hermínio Bello de Carvalho, que escrevia a letra da segunda parte enquanto eu musicava.
-Infelizmente, o Zicartola não foi bem administrado e só durou dois anos. - lamentei.
-O Renato Agostini, apesar de empresário, era um pouco como nós, sambistas, não sabia ganhar dinheiro.
-Mas as fases de agrura ficaram para trás?
-Sim, tive até o meu nariz bulboso retocado pelo Ivo Pitangui. Tornei-me artista de cinema, uma gentileza do marido da Nara Leão, que me levou para atuar no Ganga Zumba.
-E o seu primeiro disco-solo?
-Este veio em 1974, pouco antes dos meus 66 anos de idade.
-Uma lástima para a cultura popular do Brasil que tenham passados tantos anos até o reconhecimento.
-Ah, mas foram tantos os prêmios que recebi por esse disco, que compensou a espera. - disse movido por um coração sem amarguras.
-Você faria, pouco depois, com o Conjunto Galo Preto a sua primeira exibição individual, no Teatro da Galeria, no Catete.
-Nos sete anos que se seguiram até a minha morte, só tive alegrias.
-O seu prestígio já estava inteiramente consolidado.
-Espero que não me esqueçam.
-Isso não vai acontecer, seu centenário foi comemorado, embora você merecesse muito mais.
-Hora de partir.
-Mas ainda temos muito a falar das suas criações.
-Sinto muito, mas tenho de partir.
E se foi.


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