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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4908 Data: 22 de julho de 2014
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133ª VISITA À MINHA CASA
1ª PARTE
E eis que Cartola, o grande nome do samba, me honra com sua presença.
-Cartola, por que Cartola?
-Na minha adolescência, eu trabalhei como pedreiro. Para que o cimento não caísse nos meus cabelos, passei a usar um chapéu de coco que, diziam, mais parecia uma cartola.
-Imaginei que tivesse alguma coisa a ver com o Fluminense.
-Sou tricolor, fui enterrado com a bandeira do Fluminense cobrindo meu caixão.
-E como você passou a torcer pelo clube de Álvaro Chaves?
-Porque, quando eu tinha oito anos de idade, minha família se mudou para Laranjeiras, um bairro que marcou muito a minha vida. Antes, morávamos no Catete, onde nasci, fui o primogênito dos oito filhos que meus pais tiveram.
-Sua família era daqui, Cartola?
-Meus antepassados, pelo lado materno, foram escravos em Campos. Lá, nasceu o pai da minha mãe, que foi um cozinheiro de mão cheia. Ele foi para Macaé, onde trabalhou na Fazenda de Bertioga. A esposa do Epitácio Pessoa, futuro presidente do Brasil, que era prima da dona da fazenda, de tão cativada pela comida do meu avô, o atraiu para ser seu cozinheiro. E, por isso, ele foi, mais tarde, trabalhar no Palácio do Catete.
-Entendi.
-Do Catete, fui para Laranjeiras, como já disse, e lá, eu me encantei com os ranchos carnavalescos “União da Aliança” e “Arrepiados”. Nos “Arrepiados”, eu tocava cavaquinho.
-O cavaquinho foi seu primeiro instrumento musical?
-Sim; ganhei do meu pai quanto tinha nove anos.
-No carnaval os ranchos desfilavam.
-Havia desfiles de ranchos também no Dia de Reis, quando minhas irmãs saíam de pastorinhas.
-As cores dessa agremiação, verde e rosa, o inspiraram na escolha das cores da Estação Primeira da Mangueira?
-O Carlos Cachaça lembrava um rancho antigo do morro da Mangueira, “Os Caçadores da Floresta”, que também usava essas cores. Não havia como a nossa escola não ser verde e rosa.
-E como você, que nasceu no Catete e lá fruiu a sua infância, mudou-se, depois para Laranjeiras, foi parar na Mangueira?
-Em 1919, meu pai se afundou em dificuldades financeiras; fomos, então, para o morro da Mangueira que, na época, não tinha cinquenta barracos.
-Carlos Cachaça já morava num desses barracos?
-Sim; e ele seria meu amigo por toda a vida; a nossa parceria não era apenas na música.
-Foi nessa época que você trabalhou de pedreiro, Cartola?
-Antes, eu fui aprendiz de tipógrafo. Isso porque larguei os estudos com 15 anos de idade.
-Mas as suas letras são tão tem elaboradas, que custa crer que você não tenha dedicado mais anos aos estudos.
-Meu pai era rigoroso, acompanhava o meu aprendizado e cobrava boas notas. Como larguei o estudo, fui obrigado a trabalhar. Como eu era atraído pela boemia, meu pai, irritado com a minha conduta de vadio, expulsou-me de casa.
-Faltou-lhe a mãe?
-Eu a havia perdido quando estava com 17 anos, fez-me muita falta, e meu pai ficou mais duro.
-E como se arranjou expulso de casa?
-Fiquei inteiramente largado; bebia, namorava, frequentava a zona, contraía doenças venéreas, dormia nos trens...
-Caiu doente, com toda certeza?
-Fiquei arriado no colchão do meu barraco, sem força para me levantar e seguir em frente, quando um anjo me salvou.
-Um anjo?- estranhei.
-Uma vizinha, Deolinda, uma mulher feita de gordura e músculos, alguns anos mais velha do que eu, casada e com uma filha de 2 anos. Ela cuidou de mim mais ainda quando largou o marido e fomos viver juntos, passando a sua filha a ser minha filha também.
-E como foi a sua nova vida, Cartola?
-Nosso barraco era visitado por muitos amigos. Para que você tenha uma ideia, Noel Rosa, mais de uma vez nos visitou.
-Noel Rosa?!... Eu não sabia.
-Ele havia estudado medicina, antes, cursou o Colégio Santo Inácio, morava em casa de classe média, em Vila Isabel, mas me achava mais inteligente do que o pessoal com anel no dedo. Fizemos alguns sambas juntos.
-E você voltou a trabalhar para sustentar o seu novo lar.
-Eu não me conformava que a casa fosse sustentada pela Deolinda, que lavava e cozinhava para fora. Assim, por mais que eu odiasse, voltei a trabalhar como pedreiro. Mas a minha vocação de compositor de samba passou a tomar todo o meu tempo. Largava tudo, pegava meu violão e ia tocar nos bares e tendas do morro da Mangueira.
A veia artística do artista aflorava depois de ter superado um duro momento da sua vida.
-Você, Cartola, com Carlos Cachaça e mais outros amigos formaram um bloco?
Seus olhos faiscaram com a lembrança.
-Ah, o “Bloco dos Arruaceiros”. Poucos anos depois, em 1928, com o seu crescimento, criamos a segunda escola de samba, porque já havia a “Deixa Falar”, do Estácio, a Estação Primeira da Mangueira.
-Por que Estação Primeira?
-Porque, depois da Central, Mangueira era a primeira estação de trem em que predominava o samba.
-Como fundador da escola, qual foi a sua função?
-Diretor de harmonia.
-Bem, Cartola, o seu talento de compositor de sambas não estava, agora, mais restrito ao morro da Mangueira, ia muito além.
-De fato, uma vez, o Mário Reis veio comprar um samba. Eu não sabia negociar e pensei em cobrar 50 contos, disseram-me para deixar de ser bobo e pedir 500. Cobrei, mas ficou por 300 contos; exigi, porém, que entrasse o meu nome como autor na gravação; saiu direitinho, mas quem gravou foi o Francisco Alves, porque não deu para a voz do Mário Reis.
-Você abria mão da receita que a gravação gerasse, não a sua autoria?
-Isso.
-Foi nessa época que você conheceu o grande Noel Rosa, como falamos.
-Ele foi meu parceiro; compusemos “Não Faz, Amor”, “Qual Foi o Mal Que eu Te Fiz”, “Tenho Um Novo Amor”, este, gravado pela Carmem Miranda.
-Sílvio Caldas também gravou um samba seu com Carlos Cachaça em que ele também aparece como autor.
-”Na Floresta”. - lembrou.
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