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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5231 Data: 14 de novembro de
2015
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127ª VISITA À MINHA CASA
-Cole Porter, eu só sei dormir, ler e escrever ouvindo
música. Uma mania, pois se me perguntarem uma hora depois o que ouvi, não sei
responder na maioria das vezes, porque não presto a menor atenção; a música me
é necessária como a respiração, é isso. Entrementes, há cinco ou seis canções
que me fazem parar tudo para ouvi-las e “So
In Love” é uma delas.
-Pertence ao meu musical “Kiss Me, Kate”. Pensavam que eu estava acabado, mas mostrei a
todos que as músicas não me tinham abandonado.
-Uísque? - ofereci-lhe.
-Precisei beber um oceano de uísque para não cair de
vez depois de quebrar as duas pernas. Não vou abandonar o uísque, agora, que
estou morto. Aceito um copo.
-Um dos seus maiores intérpretes, Frank Sinatra, pediu
para ser enterrado com uma garrafa de Jack Daniels.
-Prefiro o Scotch, talvez porque tenha vivido muitos
anos na Europa, em Paris, precisamente.
-É interessante, provocante... não sei a
palavra exata, que os Estados Unidos tenham deixado um artista com o seu
talento extraordinário mudar-se para outro país.
-Eram os anos 20, da “Geração Perdida”. Em Paris, eu
não era o único americano, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, por exemplo,
também estavam lá.
-Você nasceu em 1891?
-Sim; nasci no Peru... cidade do estado de Indiana,
bem entendido (acrescentou com um sorriso zombeteiro).
-Há no seu estado, também, uma cidade chamada Brazil,
se você nascesse lá, diriam por aqui que você é brasileiro.
-Nem sequer estive no Brasil enquanto vivo.
-Dia desses, recebi uma mensagem eletrônica com um
vídeo de marchas de bandas brasileiras acompanhado de um texto...
-Embora, eu não saiba bem o que seja mensagem
eletrônica, prossiga, por favor.
-No texto, lia-se que você ficou tão deslumbrado com o
jeito de os músicos brasileiros marcharem que perguntou ao Ary Barroso qual era
o segredo.
-O Ary Barroso esteve nos Estados Unidos, mas eu não
estive, com toda certeza, no Brasil.
Riu e prosseguiu:
-Por que o Ary Barroso não se fixou nos Estados
Unidos?... Ele ganharia muito dinheiro.
-A justificativa dele é que não havia Flamengo e couve
mineira nos Estados Unidos, mas o implacável crítico de música popular, José
Ramos Tinhorão, escreveu que ele não ficou porque não sabia ler uma partitura,
o que era fundamental para se trabalhar como músico do Estúdio da Disney.
Falando nisso, Cole Porter, você conhecia os meandros musicais profundamente.
-Desde a primeira infância, eu já aprendia música com
a minha mãe. Estudei violino com seis anos de idade e piano, com oito. Com dez
anos, escrevi a minha primeira opereta, a minha mãe me ajudou, é claro.
-Você era um Mozart?
-Guardadas as infinitas proporções, faça-se essa
comparação. A minha mãe chegou a modificar o ano do meu nascimento, 1891, para
1893, para eu parecer ainda mais precoce.
-Você pertencia a uma família de posses.
-O pai da minha mãe era especulador de carvão e
madeira. Ele tinha muito dinheiro e, consequentemente, poder. Assim, determinou
que eu seria advogado.
-Pena que a sua mãe, Cole Porter, não conseguiu
demovê-lo dessa ideia que o desviava da sua vocação.
-Fui para a Academia de Worcester, em 1905, e, em
1909, para a Universidade de Yale.
-Ficou, assim, afastado da música. - lastimei.
-O que não me impediu, na Universidade de Yale, de
compor umas 300 canções. “Bulldog Bulldog” e “Bingo Eli Yale”, que compus para
o time de futebol americano de Yale, sempre foram tocadas, soube que mesmo
depois de eu ter morrido.
-Quando você foi para a Universidade de Harvard?
-Fui, em 1913; estava, vejamos... com 22 anos, Fiquei
um ano na Faculdade de Direito e, depois, mudei para a Faculdade de Artes e
Ciência.
-Assim, pelo menos, você ficava mais próximo da
música.
-Com 25 anos de idade, estreei, como compositor, a
primeira produção na Broadway com “See
American First”, o libreto era de Lawrason Riggs. Um fracasso, apenas duas
semanas em cartaz.
-Mas você é músico e letrista, talvez, o fracasso
fosse causado pelo libreto, que não ser seu.
-Outros fracassos meus se sucederam na Broadway. Não
sei se os americanos não entendiam a minha música... não sei. Parti, então,
para a buliçosa Paris.
-Essa sua ideia não custou pouco dinheiro para quem
possui o seu padrão de vida, acredito.
-Vendi músicas e recebi mesadas da minha mãe e do meu
avô.
-A França vivia um momento terrível quando você se
mudou para lá.
-Ah, sim: vivia a Primeira Guerra Mundial; se, por um
lado era ruim, por outro era bom, pois os franceses necessitavam da muita
música para esquecer as agruras da realidade.
-Você vivia em Paris, nas luxuosas festas, desfrutando
da amizade de celebridades, querido por homens e mulheres.
-Eu era disputado nessas festas, havia sempre um piano
bem afinado, esperando por mim. Eu tocava e podia até cantar, que todos adoravam.
-Numa dessas festas, você conheceu a sua futura
esposa, Linda Lee Thomas?
-Ela era divorciada e me amou de verdade.
-Eu assisti a um filme, Cole Porter, sobre a sua vida,
que mostra o Irving Berlin, outro músico extraordinário, com mais de três mil
composições, letra e música, convencendo-o a mostrar o seu talento no seu
próprio país.
-Dei adeus aos rapazes e retornei para os Estados
Unidos com a Linda; agora, com o firme propósito de ser reconhecido pela
crítica e pelo público americano.
-E como foi!... – exclamei.
-Eu não era Arnold Schoenberg para, desdenhosamente,
virar as costas para a plateia que o aplaudia.
E prosseguiu:
-Nos primeiros anos foram só vitórias, até que a Linda
me deixou porque eu estava saindo muito com os rapazes.
-Disseram que você era mais homossexual do que
bissexual.
-Rotulem-me como quiserem, mas a ausência da Linda era
uma lacuna insuportável. A queda do cavalo foi tenebrosa para mim, mas, pelo
menos, me trouxe de volta a minha esposa.
-Foi em 1937, quando você estava com 48 anos?
-Sim; quebrei as duas pernas. Os médicos aconselharam
à minha esposa e à minha mãe que a minha perna direita, pelo menos, fosse
amputada. Elas não concordaram.
-Você, também, não.
-É verdade, mas sofri dores crônicas por toda a minha
vida. Fui submetido a mais de trinta operações enquanto vivi. Afoguei-me num
oceano de uísque.
-Mas nunca deixou de compor. – assinalei.
-Mas a inspiração não era a dos velhos tempos. Eu não
reeditava os êxitos das minhas produções da Broadway, mas mesmo quando o sucesso
não era o esperado, despontava uma canção como “Begin the Beguine”.
-Ela foi composta depois de “Night and Day”?
-Foi; ela é de 1935, e “Night and Day”, da minha peça
“Gay Divorcee”, de 1932.
E prosseguiu:
-Depois da minha tragédia, com tantos fracassos na
Broadway, fui tido como acabado. Então, em 1948... um pouco antes, resolvi
transformar “A Megera Domada”, de Shakespeare, num musical intitulado “Kiss me, Kate.” Foi um sucesso que me
fez esquecer as muletas, as dores...
-É nesse musical que está a fascinante canção “So In Love”, de que lhe falei quando
aqui chegou.
-Foi, de certa maneira, uma segunda volta minha ao
triunfo no meu país, a grande diferença era que, quando retornei de Paris,
estava cheio de vida.
-Maravilhosas canções foram compostas nessa sua nova
fase.
-Em 1952, perdi a minha mãe; dois anos depois, Linda
perdeu a batalha contra um enfisema.
-Ela era uma fumante inveterada. - comentei para, em
seguida, arrepender-me.
-Quatro anos depois, em 1958, amputaram-me a perna
direita. Como eu vou ficar de pé sem elas para me ampararem?... Não quis saber
mais de compor nos meus últimos seis anos de vida. Eu estava com 67 anos de
idade; com muito sofrimento, cheguei aos 73 anos. Há muito tempo que o fio das
Parcas estava tensionado demais, para o meu alívio, ele arrebentou.
-Você foi enterrado na sua cidade natal?
-Sim, ao lado dos túmulos da minha mãe e da minha
esposa, as duas pessoas mais importantes da minha vida.
-Você, que não teve filho, deixou uma enorme herança,
não foi?
-Ah, sim; eu tinha de pensar nessas coisas antes de
morrer. Metade das receitas dos meus direitos autorais foi para os filhos de
Ray Kelly, que foi meu amigo durante décadas. A outra metade eu espalhei por
aí.
Com a mesma naturalidade com que chegou, Cole Porter
se foi. (*)
(*) Sem terminar o uísque. Pena que só
durou um.
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