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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5197 Data: 26 de setembro de 2015
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SABADOIDO
-Claudio, trouxe o doce do Daniel. – disse logo que
ele abriu a porta para mim.
-O aniversário do Daniel é amanhã.
-São Cosme e Damião também, mas já trouxe o presente
da minha mãe e o meu.
-Foram todos para o Parque da Cidade. – informou-me.
-Nunca fui lá, Claudio. Onde fica?
-Em Niterói; de lá se tem a melhor vista da cidade.
-Os niteroienses têm a vantagem das vistas da própria
cidade e do Rio de Janeiro. – concluí.
-Sim; mas os assaltantes daqui estão indo para lá.
Este foi nosso diálogo enquanto rumávamos para a
cozinha.
-Posso sentar na sua cadeira de ler jornal?
-Claro, eu já li; o entregador passou cedo.
Sentei-me e ele, que antes pegara alguma coisa na
geladeira, sentou-se na sua cadeira de chupar laranjas.
-Carlinhos, o Luca deixou um envelope aqui para você;
já lhe entregaram?
-Sim; eram cartas da Rosa; numa delas, ela conta que
fez o supletivo de 1974, quando o Romualdo Carrasco aprovou todo o mundo, em Matemática,
com a nota 4,5.
-Foi o mesmo que eu fiz. Eu me lembro até da escola da
prova de Matemática.
Não prestei atenção quando revelou o nome da escola,
pois me detive no que ia dizer a seguir.
-Ela se viu em palpos de aranha nessa matéria;
beneficiou-se desse meio pontinho do “Bourreau”, como ela chama, de
brincadeira, o Carrasco.
-E as outras matérias?
-Ela tirou com os pés nas costas. Claudio, a erudição
da Rosa é espantosa. Ela envia para o Luca, para mim também, recortes de jornais,
principalmente os artigos da Folha de São Paulo e corrige os erros com que se
depara. Certa vez, corrigiu o Carlos Heitor Cony; ele escreveu que o mito da
Fênix era grego; a Rosa sublinhou em vermelho e pôs ao lado: “mito egípcio”.
-Na Academia Brasileira de Letras, ele se tornou amigo
do Roberto Campos e os dois recitavam poemas em grego. – lembrou-se.
-É verdade; os dois foram seminaristas e ensinavam um
pouco de grego nos seminários. Mas a Rosa estava certa.
-Diferentemente do Doutor Sardinha, o negócio da Rosa
não são os números, são as palavras. – deduziu o Claudio.
-Sim, mas quando ela diz que passou em Matemática
chutando todas as questões está sendo modesta, pois ela estudou, alguns anos no
Instituto de Educação, onde até o Ary Quintella deu aulas.
-Às vezes, Carlinhos, você fica na dúvida entre uma
alternativa e outra, então, a sua chance de acertar é 50%.
-Lembra-se de uma época em que, nas provas de
português do vestibular, só apareciam trechos do Carlos Drummond de Andrade
para serem interpretados?
-Claro; os formuladores das questões se fixaram nele.
– respondeu.
-Isso deu uma confusão danada, pois muitos candidatos
não concordavam com as respostas oficiais. Assim, o telefone do Carlos Drummond
não parava de tocar...
-Queriam que ele dissipasse as dúvidas. – atalhou.
-Sim; e para acabar com essa aporrinhação, o Drummond
declarou: “Não sei me interpretar”.
-Carlinhos, não é raro um leitor enxergar uma coisa
que o autor não percebeu.
-Concordo. Ao ouvir a leitura que o maestro Toscanini
dera ao “Bolero”, Ravel reclamou que ele dera um andamento acelerado; réplica
do Toscanini: “Você não entende nada sobre a música que compôs”. É claro que
não é isso, pois o criador não é médium, mas uma obra pode ter interpretação
diferente de quem a pôs no mundo, é subjetiva.
-Estou cortando uma roseira e está pior do que quando
podei a árvore. -mudou de assunto, em termos, pois a Rosa não saiu inteiramente
da conversa.
-Todo o cuidado é pouco com as roseiras; sempre nos
espeta um espinho camuflado.
-Estou cortando os galhos com luvas, mesmo assim não
estou protegido.
-Falando em proteção. Claudio, o que você tem a dizer
sobre os arrastões?
-Grande parte da culpa é dessa juíza com aquele
parecer de não abordar os suspeitos, a não ser com a constatação do flagrante
delito. A PM fez uma espécie de greve branca,
-Há um internauta no Facebook que postou um vídeo em
que se vê como a polícia trata os ladrões em via pública na Índia.
-Imagino.
-Dois, às vezes três policiais, agarram o infeliz,
enquanto um espancador, com uma enorme vara de bambu, castiga inapelavelmente;
são mais de dez varadas nas nádegas e nas pernas. Não sei se isso está
resolvendo a criminalidade na Índia, mas esse internauta, que mora em
Copacabana, pede esse corretivo para os que fazem arrastões no Rio de Janeiro.
-Vara de bambu deve doer pra burro.
-Claudio, esse internauta chama o Obama e o Papa
Francisco de comunistas.
-Ele quer, então, o Bolsonaro para a presidência da
República.
-O Capitão Bolsonaro... Cláudio, só na ditadura da
esquerda um capitão pode chegar ao poder na América do Sul. Na Venezuela, por
exemplo, o Chaves, que criou a ditadura bolivariana, era coronel. A missão do Bolsonaro é defender os
interesses dos militares e para por aí. Nas Forças Armadas, a hierarquia é um
tabu, apenas generais chegariam ao poder maior.
-O Luís Fernando Veríssimo diz que os saem à rua para
protestar contra o PT são adeptos do Bolsonaro.
-O Veríssimo está com hemorragia desatada de
neurônios.
-Viu algum filme? – saiu, em boa hora, da política.
-Eu assisti, no Telecine Cult, a um filme do Ettore
Scola “Que Estranho Chamar-se Frederico”; uma espécie de cinebiografia sobre o
Fellini.
-O Ettore Scola dirigiu aquele filme que eu tenho em
DVD, “Nós Que Nos Amávamos Tanto”.
-Ele narra que suplicou ao Fellini para atuar nesse
filme, que você tem e venceu pelo cansaço.
-O Fellini já havia contracenado com a Anna Magnani,
no papel de um pastor, que ela toma por São José, num filme de Roberto
Rosselini, de 1948. A partir de então, ele só queria ficar atrás das câmeras,
mas o Ettore Scola o convenceu abrir uma exceção.
-“Nós Que Nos Amávamos Tanto” é de 1975, por aí. -
puxou pela memória.
-No filme “Que Estranho Chamar-se Frederico”, Ettore
Scola conta que Fellini sofria de insônia, por isso, pegava o carro e saía pela
noite, levando-o no banco do carona. Certa vez, Fellini levou, no banco de
trás, pois o da frente já estava ocupado, uma prostituta. Ela fala
animadamente, enquanto ajeita a maquiagem. Dizem que essa carona o inspirou a
filmar “Noites de Cabíria”.
-Bem Carlinhos, fique aí, com o jornal, que vou cortar
a roseira de novo.
-Não se esqueça das luvas de borracha.
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